Entre crises moral e moral em crise

14/08/2013

“Seja a paz de Cristo o árbitro em vosso coração, à qual, também, fostes chamados em um só corpo; e sede agradecidos. Habite, ricamente, em vós a palavra de Cristo; instruí-vos e aconselhai-vos mutuamente em toda a sabedoria” (Cl 3.15-16a).

O Evangelho surge dentro da compreensão do mundo do Antigo Testamento. Nele, o ser humano é um corpo vivificado e não uma alma ou espírito encarnado, ideia vinda do dualismo grego. Entretanto, a vivificação do corpo é um acontecimento simultaneamente social e político. Isso significa que o Evangelho só acontece se concretizado no social. E, uma das suas concretizações tem lugar por meio das normas morais. Por isso, não é estranho que o apóstolo Paulo escreva no capítulo 3 da carta aos Colossenses orientações morais a serem seguidas.

Num primeiro momento pode parecer que essas orientações morais facilitaram a vida da comunidade de fé. Mas, a história da cristandade mostra que muitas vezes a fé ficou identificada e reduzida a um conjunto de normas morais. Consequentemente, o trabalho missionário da comunidade cristã, não raro, consistiu na promoção e concretização dessa moral. Assim, uma determinada moral acabou se consolidando e se solidificando como única expressão da fé e Evangelho.

Exemplo disto é que para muitas pessoas a fé cristã consiste principalmente numa lista de proibições, como não fumar, não beber, não ir a festas, entre outras coisas. Outro exemplo encontra-se nas recentes palavras do Papa quando chama a construção de uma cultura da paz, mas, isto segundo as orientações morais contidas no Novo Catecismo da Igreja Católica.

Essa tensão entre fé a moral também se fez e faz presente nas igrejas protestantes da qual fazemos parte. Não é segredo que a proposta evangélica protestante na América Latina foi altamente beneficente para a implantação do capitalismo que logo iria a explorar os povos. Para quem não lembra, as nossas igrejas protestantes entenderam que fazia parte da concretização do evangelho: lutar contra o analfabetismo, o alcoolismo, a destruição da família. Bem como fomentar a educação, a cultura da poupança e a ordem pública. Quem assim fazia era uma boa pessoa cristã.

Sem perceber criaram-se as condições necessárias para a implantação do processo de industrialização que teve inicio nos anos 50s. E, quando vieram a acontecer os processos vindicações sociais, promovidos pelas esquerdas políticas, a maioria das igrejas protestantes solidarizou com as expressões repressoras das diferentes ditaduras. Ficou assim evidente que nossa fé protestante defendia também uma determinada moral.

E, hoje ainda permanece a pergunta: como concretizar o evangelho? Qual conjunto de normas morais está mais perto da fé evangélica? Mesmo num mundo pluralista, onde a verdade foi estilhaçada e disseminada em todas as perspectivas, discursos ou cosmovisões. Mesmo numa sociedade que organiza seu viver a partir de regras pragmáticas e heterogêneas.

Segundo alguns, responder ao desafio da concretização do evangelho passa necessariamente pela denuncia de que vivemos uma “crise moral”. Que aquele conjunto de normas morais estabelecida uma vez para a concretização de ideais como: o da justiça, da paz e da igualdade, entre outros, precisa ser recuperado e vitalizado. Aqui a fé ficou profundamente identificada com essa moral. Assim sendo, no âmbito religioso, o que se está defendendo não é um determinado conjunto de normas morais, mas a própria fé evangélica. Por isso, não é raro que na discussão sobre temas sociais, que envolvem a moral, os opositores sejam qualificados de: inimigo da fé, sem Cristo no coração, sem compreensão da Bíblia.

Outras pessoas, no entanto, entendem que a concretização do evangelho requer de uma avaliação daquelas normas morais que até um tempo atrás concretizavam os ideais da justiça, da paz, da igualdade, entre outros. Isto, porque bem pode ser que essas normas não mais consigam concretizar esses ideais perante as novas demandas sociais. Se assim for, hoje não teríamos uma “crise moral”, e sim, uma “moral em crise”. Quer dizer, a concretização do Evangelho julga toda e qualquer construção criada pela própria comunidade de fé para sua concretização. Esta é a tarefa de cada nova geração: desde o Evangelho ampliar o horizonte suas normas morais ou criar um novo conjunto de novas normas para orientar a novas relações presentes na sociedade. E isto é o que vem acontecendo nos últimos tempos.

Esta novidade no âmbito da moral tem provocado algumas situações. Uma delas é que para a consolidação destas novas propostas morais, elas foram envolvidas no status de serem “politicamente corretas”. Isto trouxe como consequência a ausência do debate e do diálogo dessas normas, dificultando a construção e aprofundamento do necessário discernimento moral. É assim que hoje temos novas normas morais, mas poucas pessoas sabem fundamentar a razão das mesmas. Fragiliza-se, desta forma, sua vivência no cotidiano. Por outro lado, esta novidade no moral tem impactado significativamente as comunidades cristãs que identificaram a fé com um conjunto de normas morais que poderíamos chamar de “tradicional”. Por isso, situações como o aborto, a eutanásia, a homoafetividades, a liberdade religiosa, entre tantos outros desafios sociais, são vistos como ameaças ao Evangelho e a fé.

O desafio nosso hoje é diferenciar entre Evangelho e Moral. Entender que a fé é maior que qualquer moral ou um conjunto de normas ou de virtudes. Que sempre será necessário revisar aquelas construções feitas pelas comunidades de fé para dar visibilidade e concretude ao Evangelho. Assim sendo, o que significa hoje a afirmação da justificação por graça e fé? Essa graça ainda alcança a todas as pessoas sem distinção e condição previa? O que significa para a pessoa cristã viver da graça e na graça? Será que o viver na graça desfaz o fato de sermos justos e pecadores ao mesmo tempo? Como fazer pertinente em meio às normas morais o seguimento de “tão somente Cristo”? Como ler as Escrituras de forma que a graça libertadora abrace criticamente todas as mudanças sociais, com seus novos atores e situações? A igreja da Reforma, da qual fazemos parte, afirmou de si mesma estar “sempre se reformando”. Então, como incorporar este principio ao trabalho de concretizar o Evangelho transformador nas normas morais, mas sem que ele seja reduzido as mesmas?

Voltando a Carta aos Colossenses. Somos de Cristo, diz Paulo, sua vida e mensagem determinam nosso viver neste mundo. Contudo, Cristo e o seu Evangelho é maior que qualquer concretização social que dele façamos. Mas, ao mesmo tempo, sem essa concretização o Evangelho não se encarna, não liberta, não transforma. Então, o desafio está posto, vamos trabalhar nisto diariamente de novo e assim construir uma sociedade mais justa, mais fraterna, menos violenta, mais inclusiva. Amém.

Dr. Pedro Puentes Reyes

Pastor Paróquia Bom Samaritano - Ipanema - Rio de Janeiro/RJ
 


Autor(a): P. Dr. Pedro Puentes Reyes
Âmbito: IECLB / Sinodo: Sudeste
Testamento: Novo / Livro: Colossenses / Capitulo: 3 / Versículo Inicial: 15 / Versículo Final: 16
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Meditação
ID: 23999
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