Ele, o autor; nós, o alvo

O sofrimento como aprendizagem de obediência. Isso ainda faz sentido hoje?

18/03/2018

18032018 – Rio


Hebreus 5.7-9 - “ Ele, Jesus, nos dias da sua carne, tendo oferecido, com forte clamor e lágrimas, orações e súplicas a quem o podia livrar da morte, foi ouvido por causa da sua reverência. Embora fosse Filho, aprendeu a obediência pelas coisas que sofreu e, tendo sido aperfeiçoado, tornou-se o Autor da salvação eterna para todos os que lhe obedecem.” (NA17)‬‬

Prezada Comunidade,
sempre que se elabora uma pregação para o culto dominical, vem primeiro a oração para que Deus dê, através do Espírito Santo, a inspiração. Pregação é inspiração e transpiração. Muita transpiração de raiva e indignação com o que precisamos conviver nestes dias. Depois dos 60.000 homicídios não resolvidos no Brasil, depois dos 40 vereadores e prefeitos mortos no Brasil desde 2017, depois da morte de 26 policiais até aqui neste ano, depois da morte não menos e não mais trágica da vereadora dona de 46.000 votos, Marielle Franco, mãe de uma garota, e do motorista que lhe servia naquela hora, Anderson Pedro Gomes, pai de uma criança com necessidades especiais – depois de tudo isso vem a notícia da morte daquela criança de um ano, de quem só sabemos o nome, Benjamin, mas que ainda não tem história, que teve seus miolos estourados dentro do carrinho de bebê, miolos que se espalharam pelo chão de algum lugar da complexo da Maré. Nunca saberemos a que lote de fabricação e compra a que pertencem as balas que mataram Benjamim. Entram na estatística das “balas perdidas”, um eufemismo criado para lavar as mãos das nossas autoridades: ninguém foi; foi bala perdida na troca desastrada de tiros entre bandidos e a Polícia Militar que não pode matar bandidos por causa das críticas que sofrerão. Ou, como no caso do pai rendido por outros bandidos, que morre porque policiais entram na cena do delito, atirando! Seu filho de cinco anos sobreviveu, mas viu tudo. Toda esta transpiração deverá me servir de inspiração para anunciar o Evangelho, consolar, animar, orientar... Afinal de contas, estou entre as poucas pessoas têm o privilégio de ter diante de si uma comunidade cristã atenta a ouvir.


O texto dentro do tratado
A carta aos Hebreus é uma grande incógnita para a teologia. Orígenes (Alexandria, Egito, c. 185 — Tiro, 253), ao citar Eusébio, dizia: “Quem escreveu esta epístola, só Deus sabe.” Esta carta, porém, tem o talento de convencer, tem beleza e força de expressão. Apresenta a Cristo como o verdadeiro Deus, criador, exaltado acima de tudo e de todos – o sumo-sacerdote. Este tratado para as comunidades – nem sempre poderemos classificar este escrito aos hebreus como uma carta – mostra a trajetória real de Cristo Jesus tendo como pano de fundo o que é invisível. Ou seja, apresenta os fatos, aquilo que está diante dos nossos olhos, sempre tendo uma percepção daquilo que ainda não vemos, que ainda não sabemos, porque ainda não nos foi revelado por Deus. Acredito que exatamente nesta dimensão a perícope escolhida para este dia deve ser lida.

“Durante sua vida... voz alta... lágrimas...”
A vida é efêmera. Jesus morreu cedo, na cruz. Executado friamente após uma sórdida perseguição durante os três anos de seu ministério. Tinham projetos e desafios à sua frente. Clamou entre lágrimas e voz alta para que não morresse. Suou sangue. Emera é o tempo em que Jesus teve a aparência carnal. Este tempo emera pode ser mau e precisa ser abreviado (cf Ef 5.16 – “remindo o tempo, porque os dias são maus” – razão pela qual é urgente a necessidade de “compreender a vontade do Senhor” de acordo com a complementação de Paulo no mesmo uso da palavra encontrada em Hebreus.)

O “forte clamor” que seu ouviu deste Jesus – “voz alta” – iketeria – é um adjetivo que demonstra não apenas uma atitude substantivada, mas a qualidade e intencionalidade desta atitude. É a súplica diante da iminência do suplicio. Súplica feita aos gritos! Krayge é usado por Paulo em Ef 4.31 de forma negativa e questionadora – gritaria – que junto a blasfêmias e malícias desvirtuam a santidade das pessoas cristãs. E é usada por Mateus de forma positiva para significar a urgência do grito que anunciava a chegada do noivo na parábola das dez virgens (25.6). Oração aos gritos em meio às lágrimas. Dakryon são as lágrimas derramadas neste processo de clamor e inconformidade. Não são lágrimas para constranger – como numa chantagem emocional – mas como mostra do amor e comprometimento envolvido na causa (assim o termo é usado em Mc 9.24, At 20.19, Hb 5.7 e 12.17 além de 2 Co 2.4).


Aprender a obedecer em meio ao sofrimento e violência?
Por mais improvável que possa parecer, é exatamente assim que o texto aos hebreus continua. O sofrimento, a angústia, as lágrimas e os gritos inconformados levam ao aperfeiçoamento da obediência. Isso ainda faz sentido nos nossos dias? Basta ver a polarização das opiniões políticas entre nós. É de se perguntar se algum grupo ou alguma pessoa ainda tem a disposição de recuar e dialogar com oponentes, divergentes na opinião? 

Acredito que exatamente este exercício de recuar e dialogar – ou recuar e sofrer a morte – que Jesus, vamos assim dizer, entre aspas mesmo, “teve que aprender para ser aperfeiçoado”. Exatamente isto! Clamor e lamentação, gritos e lágrimas, a execução de Deus na cruz – não como um “comicídio”, o comício motivado pelo homicídio – redundam na honra de Cristo porque mostrou-se obediente a Deus, mesmo com a morte. Não há, aparentemente, outro caminho que não o da morte. Não há desvio quando se quer ver o Reino de Deus entre nós.


É realmente necessário sofrer?
Sim, o sofrimento é análogo à existência humana. A doença severa ou incurável, uma briga terrível na família, o luto e a solidão, a decepção, a depressão, a falta de perspectiva, são contingências que nos fazem sofrer. 

Alberto é um jovem de 17 anos, bem-sucedido nos estudos, primeiro da classe, mas que está em profundo sofrimento porque não passou no seu primeiro vestibular. Foi procurar ajuda pastoral. No aprofundamento da conversa se percebe o real motivo de seu sofrimento: ... a vida no Brasil não faz mais sentido, já que quem faz o certo não consegue o que deseja. O jovem conseguiu se expressar porque teve ajuda de quem o ouvisse. Nós, muitas vezes, ao contrário, nos calamos ou nos escondemos atrás de mecanismos que nos preservam de ter que encarar olho-no-olho, dialogar. Afinal, quem gosta de sofrer?

Na lista das bem-aventuranças (Mt 5) encontramos algumas que falam do sofrimento e as consequências positivas que delas surgem: o reino dos céus, a fartura, o galardão nos céus. Embora seja inevitável ter que lidar com o sofrimento, evidentemente não queremos sofrer e – mais comprometedor ainda – não vamos permitir que outros sofram.


Ele o Autor; nós, seu alvo
Como vimos no exemplo de Jesus Cristo descrito pelo autor deste tratado, o sofrimento se expressa primeiramente na sua forma verbal (hoje deveríamos incluir os mecanismos das páginas sociais). Jesus Cristo expressa sua angústia e pede libertação ou livramento. Ele não foi atendido em sua petição, “embora fosse Filho” (v.8). 

Ter sido perfeito, ter sido justo, ter sido misericordioso e, por vezes, também duro, não fez de Jesus o protagonista da salvação. Jesus Cristo nunca seria nada para nós se, em primeiro lugar, não tivesse encarnado. Ele se tornou alguém de nós. Em segundo lugar, Jesus Cristo encarnado faz da sua missão uma passagem sem restrições, culpa ou suspeita do ponto de vista da vontade de Deus – foi obediente. Em terceiro, como Jesus Cristo pós-encarnado, se torna finalmente o aitios da nossa salvação. (Esta palavra grega, à rigor, não seria traduzida como autor, e sim como causa ou fonte dando o sentido positivo de que a “culpa” da nossa salvação é Cristo.)


É pela ação reabilitadora de Cristo que temos a salvação.
A palavra “salvação” sempre precisa ser alvo de uma busca adequada de compreensão. Hoje é comum se perguntar: “mas salvar do que?” Somos tão autossuficientes que não mais precisamos ser salvos por ninguém. Basta ter prazer no que se faz. Soteria é libertação e preservação. Libertação da ação dos inimigos da nossa alma (1Pe 1.9) e preservação em função de uma vida abundante e digna. Hb 2.10 – “Porque convinha que Deus, por causa de quem e por meio de quem todas as coisas existem, conduzindo muitos filhos à glória, aperfeiçoasse, por meio de sofrimentos, o Autor da salvação deles.” (‭NA17); Rm 1.16 – “Pois não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê, primeiro do judeu e também do grego.” (‭NA17); 10.10 – “Porque com o coração se crê para a justiça e com a boca se confessa para a salvação.” (NA17) ‬‬– são textos que usam a palavra soteria com uma qualificação futura.‬‬‬‬

Conclusão

Prezada comunidade,

como pessoas cristãs precisamos retomar o termo “obediência”. Nós nunca seremos autores de salvação, porém, nossa obediência nos levará ao poder reabilitador e salvador do qual a sociedade tanto precisa e pelo qual clama – a maioria das vezes de forma atabalhoada. Obediência a Deus – a isso que me refiro. Deus não quer que fiquemos amarrados ao nosso agir errado, especialmente onde interagimos com as pessoas da nossa sociedade. Tenho plena convicção de que muitas coisas que nos causam sofrimento e revolta são, simplesmente, descaso para com a obediência normativa que Deus espera de nós. Quando escondemos da nossa vida o fato de que devemos obediência, entramos em caminhos solitários – embora coletivo – do descontrole social.

Pelo fato de Cristo ter sofrido por nós, significa que não precisamos mais dar o passo do sofrimento para obter algo de positivo. Ele o fez por nós. Mas nós sofremos porque não perdoamos, porque somos egoístas, porque queremos dar um jeito nas coisas à nossa maneira, e pronto.

O poder de reabilitação, de salvação de Cristo é superior a todas as mazelas que sofremos. Deus é nosso Pai. O Pai quer o melhor de suas filhas e de seus filhos. Por isso Jesus também aprendeu a obedecer. Deus quer nos levar à frente. Se cremos nEle entendemos que Seu objetivo conosco é a Sua salvação. A graça de Deus, através da fé que nos é presenteada por dom do Espírito Santo, nos coloca em atitude de humildade e obediência “porque com o coração se crê para a justiça e com a boca se confessa para a salvação.”O

Exclama em lágrimas a mãe de Benjamim numa dor que ninguém nunca poderá sentir em seu lugar: “Isso não pode ficar assim não, moço!”.
Amém!

O pano de fundo desta pregação é a instabilidade social vivida na cidade do Rio de Janeiro, com assassinatos à granel acontecendo – entre eles o da mulher negra, vereadora, lésbica, de esquerda – quando se completa um mês de intervenção federal/militar nas forças de segurança do estado.
 


Autor(a): Pr. Rolf Rieck
Âmbito: IECLB / Sinodo: Sudeste / Paróquia: Rio de Janeiro - Martin Luther (Centro-RJ)
Área: Confessionalidade / Nível: Confessionalidade - Prédicas e Meditações
Testamento: Novo / Livro: Hebreus / Capitulo: 5 / Versículo Inicial: 7 / Versículo Final: 9
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Prédica
ID: 46438
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Que o Senhor, nosso Deus, esteja conosco. Que Ele nunca nos deixe nem nos abandone!
1Reis 8.57
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