Amados irmãos, amadas irmãs,
em 1971 o ex-Beatle John Lennon gravava e lançava seu disco Imagine (imagine) cuja primeira música, também chamada Imagine, diz: “Você pode dizer que eu sou um sonhador. Mas eu não sou o único. Espero que um dia você junte-se a nós. E o mundo será como um só. Imagine todas as pessoas vivendo a vida em paz”1. Naquele momento, o mundo estava no meio da guerra fria onde Estados Unidos e a União Soviética – URSS – ameaçavam-se com bombas nucleares quase que diariamente. Se houvesse uma guerra nuclear, certamente a vida humana, animal e vegetal seriam extintas do planeta. John Lennon foi assassinado em 08 de Dezembro de 1980. Em um mundo violento, quem é contra a violência, é assassinado.
O clamor pela paz não aparecia apenas em músicas. Também cientistas e pensadores estavam preocupados com o futuro da humanidade. Carl Sagan, um astrofísico norte-americano, diz no seu livro Cosmos que também se tornou uma premiada série de televisão: “Toda pessoa pensante teme uma guerra nuclear e todo Estado tecnológico tem planos para ela. Todos sabem a loucura que ela representa e toda nação tem um pretexto para ela”2. Ele diz também: “Na nona década do século XX os mísseis estratégicos e os bombardeios da União Soviética e dos Estados Unidos têm como alvo de suas ogivas 15 mil pontos designados. Nenhum lugar do planeta é seguro”3.
Aparentemente, a ameaça nuclear foi superada. Porém, as ameaças à paz deixaram de ser globais e passaram a estar ainda mais no nível local e individual. Vemos constantemente a violência nas ruas quando pessoas são assaltadas e mortas; também dentro das casas onde maridos batem em suas esposas; no trabalho onde pessoas enfrentam assédio moral; as mulheres que são abusadas; na cultura do linchamento que não conhece o que é justiça.
Miquéias – profeta do Senhor – também vive em um contexto em que não há paz. Miquéias, porém, não está falando da paz nos moldes do mundo atual. A paz bíblica não significa apenas a ausência de guerra. Ao contrário, o termo hebraico Shalom
quer dizer “estar completo”, “estar são”, “estar bem em todos os sentidos”. Ela tem um sentido social e religioso. Não se trata apenas da ausência de guerras e conflitos entre as pessoas, mas também da reconciliação com Deus, que possibilita a paz com os nossos semelhantes. É uma paz com justiça, que gera total satisfação pessoal e coletiva.4
Esta ausência de Shalom não era uma ausência de paz no sentido de haver muitas guerras, violência ou ódio. Ao contrário, a ausência do Shalom em Israel significava que o povo não possuía segurança nenhuma em sua vida. Shalom era a possibilidade das pessoas possuírem tranquilidade, segurança, integridade física ou saúde, segurança alimentar, bem-estar, convivência social harmoniosa5. Portanto, Shalom não era apenas a ausência de guerras, mas a ausência de tudo aquilo que possibilitava uma vida com dignidade.
Muitos intérpretes da Bíblia chamam Miquéias de “o profeta agricultor”. Diferente de outros profetas, “Miquéias provinha de um meio rural e por isso conhecia muito bem as amarguras dos homens do campo humilde, submetido à exploração que vinha da capital Jerusalém e à prepotência dos grandes proprietários rurais”6. Miquéias – em sua profecia – faz uma crítica ao Estado e à sociedade da sua época em que a ordem econômica arruinava os pequenos agricultores através da prática do endividamento7. Não havia como haver Shalom no meio do povo de Deus porque o próprio povo de Deus estava passando por necessidades e ainda sustentando aqueles que se encontravam no poder.
Por isso, Miquéias poderia ser chamado de “o profeta do interior” que faz uma grande crítica à cidade grande por ser um símbolo de exploração, de pobreza e de violência. Enquanto muitos elogiavam Jerusalém, Miquéias a vê como uma cidade que se perdeu do amor de Deus e que, por causa disso, explora irresponsavelmente os proprietários rurais que a sustentam. É neste mundo, sem Shalom, que Miquéias viveu.
A população está desesperada. Porém, a grande verdade é que todos se afastaram da presença de Deus, adorando e confiando nos deuses dos povos vizinhos. Se tem algo que destrói o nosso relacionamento com Deus, a nossa vida e acaba com a nossa paz, é a idolatria. Ela sempre foi um problema recorrente na história do povo de Deus no Antigo Testamento. A idolatria sempre foi uma fonte de desgraça para o povo. Agora, não é diferente. Estão desesperados porque não sabem mais como retornar ao Deus vivo.
Miquéias expressa esse desespero um pouco antes do texto previsto para hoje. O profeta fala da angústia do povo usando três vezes a palavra agora:
- “Agora, por que você está gritando tão alto? Será porque você não tem rei? Morreram os seus conselheiros? Apoderou-se de você a dor como da mulher que está dando à luz?” (Miquéias 4.9);
- “Agora, muitas nações se reuniram contra você, dizendo: “Que Jerusalém seja profanada! Que os nossos olhos se deliciem com a ruína de Sião!” (Miquéias 4.11);
- “Agora, ajuntem-se em tropas, ó filha de tropas, porque fomos sitiados, e ferirão com uma vara a face do juiz de Israel.” (Miquéias 5.1).
Os três “agoras” de Miquéias revelam a situação em que o povo se encontrava: o primeiro revela que eles se sentem órfãos quanto às suas autoridades. Há governo, mas é como se não houvesse; o segundo, que as nações já estão vendo a decadência de Jerusalém e planejando atacá-la; o terceiro, quando o povo de Deus em Samaria foi cercado para depois ser deportado para a Assíria. Diante dos “agoras” de Miquéias, poderíamos perguntar: e agora?
Então, surge a promessa de um Messias, o Salvador. Miquéias anuncia através do profeta que virá alguém que “será a nossa paz” (Miquéias 5.5a -> וְהָיָה זֶה שָׁלוֹם vëhåyåh zeh Shålom). De Belém-Efrata virá o Messias que apascentará o povo na força do Senhor, promovendo a paz. E o que aconteceu? Vem, então, Ezequias, um rei temente ao Senhor. Ezequias foi um dos reis mais elogiados: “Ezequias fez o que era reto aos olhos do Senhor, segundo tudo o que Davi, seu pai, havia feito” (2 Crônicas 29.2); Ezequias promoveu uma restauração do Templo, retirando dele tudo o que não agravada a Deus (cf. 2 Crônicas 29.4-6). Ezequias fez, inclusive, uma aliança com o Senhor para que a ira de Deus se afastasse do povo (cf. 2 Crônicas 29.10).
De fato, o governo de Ezequias foi excelente. Além de rei, foi um líder espiritual para o seu povo. Se lermos todo o capítulo 28 de 2 Crônicas, perceberemos a diferença entre Ezequias enquanto servo do Senhor e Acaz que foi um rei profundamente idólatra. Com Ezequias, o povo de Judá experimentou um pouco do Shalom. Porém, embora Ezequias tivesse sido muito elogiado, ele não era o Messias. O próprio profeta Isaías reconhece que Ezequias não será capaz de salvar o povo afastado de Deus da desgraça iminente. A Palavra de Deus nos diz: “Então Isaías disse a Ezequias: – Ouça a palavra do Senhor dos Exércitos: “Eis que virão dias em que tudo o que houver no seu palácio, isto é, tudo o que os seus pais ajuntaram até o dia de hoje, será levado para a Babilônia; não ficará coisa alguma, diz o Senhor” (Isaías 39.5-6). “Então Ezequias disse a Isaías: – Boa é a palavra do Senhor que você valou. Pois ele pensava assim: “Enquanto eu viver haverá paz e segurança” (Isaías 39.8).
Ezequias, mesmo sendo alguém temente a Deus, estava erroneamente considerando a si mesmo um Messias. Por isso, o profeta Isaías trouxe a ele a palavra do Senhor para que ele percebesse em que engano se encontrava, mesmo andando nos caminhos do Senhor. Aliás, este é um grande perigo: quando consideramos que apenas um governante poderá ser Messias e nos salvar de alguma coisa. Miquéias e Isaías estão nos dizendo que Ezequias até poderia ser um rei temente a Deus, mas que ele não seria responsável por trazer paz e segurança – ou seja, Shalom – ao povo. O Messias virá, mas ele não é Ezequias e nenhum outro governante, seja do passado, do presente ou do futuro.
Mas, então, quem é o Messias? De quem Miquéias estava falando? Miquéias falava daquele que nasceu em Belém: “E você, Belém-Efrata, que é pequena demais para figurar como grupo de milhares de Judá, de você me sairá aquele que há de reinar em Israel e cujas origens são desde os tempos antigos, desde os dias da eternidade” (Miquéias 5.2). O povo acreditou que a profecia se cumpriu em Ezequias e que em seu reinado nenhum mal lhes iria acometer; porém, o Messias não é Ezequias, mas Jesus, que no tempo certo nasceu na cidade de Belém, assim como profetizado tantos anos antes por Miquéias. É Jesus quem existe desde os dias da eternidade. João 1.2-3 nos diz sobre Jesus: “Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez.” O Messias anunciado por Miquéias não é nenhum governante terreno, mas o próprio Senhor Jesus. O Messias não vai vir da grande e pomposa Jerusalém, mas irá nascer na pequena e insignificante Belém, a cidade de Davi.
A descrição de que o Messias é Jesus se torna ainda mais clara na continuidade do texto: “Portanto, o Senhor os entregará até o tempo em que a que está em dores tiver dado à luz; então o restante de seus irmãos voltará aos filhos de Israel. Ele se manterá firme e apascentará o povo na força do Senhor, na majestade do nome do Senhor, seu Deus” (Miquéias 5.3-5). É Jesus quem nasceu das dores de Maria (cf. Lucas 2.6); é Jesus quem se manteve firme ao não cometer nenhum pecado (cf. 2 Co 5.21); Jesus é o Bom Pastor que deu a vida pelas suas ovelhas (cf. João 10.11); é Jesus quem ressuscitou em majestade, desejando a paz (cf. Lucas 24.36), tendo o nome sobre todo nome (cf. Filipenses 2.10-11). Jesus é o príncipe da paz (cf. Isaías 9.6).8
Em Miquéias, o povo de Deus possuía apenas a promessa da vinda do Messias. A promessa não eliminou a necessidade de ter que passassem pelo juízo de Deus para que fossem purificados de seus pecados. O Reino do Norte, Israel, foi levado à Assíria e nunca mais retornou; o Reino do Sul, Judá, foi levado à Babilônia onde permaneceu por 70 anos até retornar. Deus não poderia simplesmente inocentar a corrupção do seu povo (cf. Miquéias 6.11). Não havia piedosos em Israel (cf. Miquéias 7.2). A situação era tão dramática que ninguém deveria confiar em ninguém (cf. Miquéias 7.5-6), mas tão somente na espera pela salvação do Senhor (cf. Miquéias 7.7).
O próprio Deus quer perdoar ao seu povo. Não há ninguém semelhante ao Senhor nesse sentido (cf. Miquéias 7.18). A intenção do coração de Deus não é castigar, mas perdoar. Onde Deus realizou esse perdão? Naquele que no tempo certo nasceu das dores de Maria na cidade de Belém: Jesus Cristo. Nele, todas as promessas proferidas por Miquéias foram cumpridas. Ele morreu na cruz, assumindo o nosso pecado para que fôssemos inocentados. Na cruz, ele assume a nossa injustiça para nos doar a sua justiça, ou seja, para que fôssemos justificados – tornados justos. A ira do Senhor recai sobre o seu próprio Filho – o Messias – para que nós possamos ser poupados do seu castigo. Nossos pecados foram jogados em Jesus. No verdadeiro Messias somos novas criaturas. Jesus Cristo é o Messias por ele ser “o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (João 1.29), uma função que Ezequias ou qualquer outra autoridade deste mundo não poderia cumprir, mas que se realizou e se consumou de uma vez por todas na obra de cruz.
Amados irmãos, amadas irmãs,
o Messias é só Jesus. Apenas Jesus pode nos conceder o verdadeiro Shalom. Não deveríamos esperar paz e segurança de nenhum outro. Ezequias não era o messias, pois o messias é Jesus. Da mesma forma, cuidemos em quem estamos colocando a nossa esperança de salvação. Não depositemos a nossa esperança nas autoridades deste mundo, sejam elas quem forem. Ninguém deste mundo poderá ser um messias definitivo que salvará o nosso país de todos os seus problemas. Esteja atento a isso!
A partir do Shalom doado a nós pelo Messias Jesus Cristo, recebemos três implicações práticas para o nosso dia a dia no mundo:
1) Miquéias 6.8: “Ele já mostrou a você o que é bom; e o que o Senhor pede de você? Que pratique a justiça, ame a misericórdia e ande humildemente com o seu Deus.” Deus espera que pratiquemos a justiça, amemos a misericórdia e que não façamos isso para engrandecimento próprio, mas em humildade diante do Senhor. Portanto, que a corrupção esteja longe de nós; que o “olho por olho e dente por dente” não faça parte do nosso discurso, pois isso não combina com a fé cristã; que a prepotência saia e dê lugar a um coração humilde onde há espaço para Deus morar;
2) Miquéias 7.18-19: “Quem é semelhante a ti, ó Deus, que perdoas a iniquidade e te esqueces da transgressão do remanescente da tua herança? O Senhor não retém a sua ira para sempre, porque tem prazer na misericórdia. Ele voltará a ter compaixão de nós; pisará aos pés as nossas iniquidades e lançará todos os nossos pecados nas profundezas do mar.” Assim como Deus foi conosco, tenhamos atitudes de perdão para com as outras pessoas, de misericórdia mesmo para aqueles que achamos que não a merecem, pois também nós não merecemos a misericórdia de Deus;
3) Miquéias 5.5a: “Ele será a nossa paz.” Que Jesus seja o nosso Shalom. A paz de Deus não significa ausência de guerra e sofrimento, mas a presença de Deus no meio da guerra e do sofrimento. Portanto, sejamos verdadeiros pacificadores. Buscar a paz é um caminho de felicidade, pois Jesus disse: “Felizes os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus” (Mateus 5.9).
Tenhamos uma semana de natal com muita esperança e com o verdadeiro Shalom que só existe em Jesus, nosso Messias, Senhor e Salvador. Amém.
3º DOMINGO DE ADVENTO | VIOLETA | CICLO DO NATAL | ANO C
19 de Dezembro de 2021
P. William Felipe Zacarias
Outras pregações da série Advento é tempo de preparação:
#1: Domingo da Esperança
Link: https://luteranos.com.br/textos/domingodaesperanca
#2: Domingo da Notícia
Link: https://luteranos.com.br/textos/domingodanoticia
#3: Domingo da Justiça
Link: https://luteranos.com.br/textos/domingodajustica
1 LENNON, John. Imagine. Londres: Apple Records, p1971. Disco sonoro. Lado A. Faixa 1. 3:03 min. 33 1/3 rpm. Stérero. 12 pol. Tradução própria.
2 SAGAN, Carl. Cosmos. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. p. 402.
3 SAGAN, 2017. p. 403.
4 DREFREYN, Vanderlei. “Vigília do Natal”. in: HOEFELMANN, Verner; MÜLLER DA SILVA, João Artur (Coords.). Proclamar Libertação. vol. 27. São Leopoldo: Sinodal, 2001. p. 30.
5 Cf. KILPP, Nelson. “Estamos numa espera passiva?” in: HOEFELMANN, Verner (Coord.). Proclamar Libertação. vol. 46. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2021. p. 28-29.
6 DEFREYN, 2001. p. 29.
7 Cf. SANTANA FILHO, Manoel B. de. “4º Domingo de Advento”. in: VOLKMANN, Martin (Coord.). Proclamar Libertação. vol. 34. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2009. p. 31.
8 Ao estudar o texto de Miquéias 5.2-5a, assustei-me ao ver o quanto muitos intérpretes bíblicos têm medo de afirmar a relação entre o Messias prometido por Miquéias e o Messias nascido em Belém, Jesus, uma vez que a relação é óbvia.