1. São contraditórios os juízos sobre o significado do deprimente quadro oferecido atualmente pela sociedade brasileira. Há quem nele descubra as dores de parto de um novo momento, inaugurador de um processo de moralização das instituições políticas. Conforme outros, a eclosão dos escândalos não passa de um foguetório passageiro, incapaz de sustar a autodegradação do Brasil à categoria de Quarto Mundo mediante institucionalização da corrupção e proliferação generalizada da violência. Ora, qual dos prognósticos virá a se cumprir depende essencialmente da determinação da sociedade. O momento crítico, de modo particularmente insistente, exige o exercício responsável da cidadania e a mobilização democrática.
2. A Igreja de Jesus Cristo, neste processo, cumpre importante papel. Confessa-se herdeira da tradição profética da Bíblia, profundamente comprometida com a paz e a justiça, colocando-a a serviço da sociedade. As graves ameaças que pairam sobre o povo brasileiro não podem deixar apáticas as Igrejas. Devem-lhe o seu alerta e o apelo à reação. Pois Deus não é de confusão; e sim, de paz (1 Coríntios 14.33). Colaborar na percepção e na implantação do que serve à paz (cf. Lucas 19.42) constitui o nobre e inalienável mandato político dos cristãos, aliás, em parceria com todas as pessoas de boa vontade.
3. As mudanças exigidas no Brasil de hoje são incisivas mormente no que tange a relação entre o direito e o poder. Cabe reconhecer que todo poder, ao emancipar-se do direito, inevitavelmente se transforma em violência. É o que tem determinado o passado recente da nação. O jogo do poder e dos interesses individuais ou classistas tem suprimido o direito, corrompido a justiça, causado seríssimos danos ao bem comum. Houve por demais tirania do poder no País.
4. É bem verdade que, desde sempre, os poderosos tentaram impor as regras de jogo e abusar da influência para a obtenção ou manutenção de privilégios. Seja lembrado, porém, que o grau de sanidade de uma sociedade se define pela capacidade de frear o arbítrio e de fazer confluir os interesses corporativistas com os interesses gerais. A situação no Brasil é perigosa justamente pela instalação do poder como valor máximo. Sejam os traficantes no Rio de Janeiro, sejam os parlamentares corruptos em Brasília, sejam os manipuladores da bolsa de valores, o poder lhes serve como meio para o enriquecimento fácil, a garantia de impunidade, a criação de dependências. Que o reverso de tudo isto seja a miséria de enormes contingentes populacionais é cinicamente desconsiderado. Sem o controle do poder a sociedade marchará, a largos passos, em direção à convulsão social.
5. O direito emana da ética e de valores que são fundamentais para o convívio próspero e harmonioso das pessoas. Abrange o direito a educação, saúde, trabalho, justiça, proteção e dignidade de vida para todos. É o critério a nortear a legislação, os programas partidários, a atuação política, representando o mais alto compromisso cívico, coletivo e individual. Nele todo exercício do poder, quer político, econômico, quer militar, religioso ou de qualquer outra espécie, tem seu parâmetro e seu limite. Valores éticos não permitem sejam manipulados a bel-prazer. São normas superiores que determinam também os deveres e decorrem, em última instância, da sagrada vontade divina, zelosa do bem de toda a criação.
6. A corajosa denúncia da infração de direitos civis e humanos, bem como de elementares princípios éticos na vida pública constitui um elemento novo na história brasileira. Inspira a esperança. Entretanto, o Brasil ainda está longe de ser um Estado de direito. A impunidade continua escandalosa. O enorme fosso entre riqueza e pobreza acusa injustiça em alto grau. Fica ignorado que corrupção e desmandos administrativos constituem abomináveis atentados à população, estimulando a violência em outros níveis. A denúncia do crime pouco efeito surtirá enquanto não respaldada por amplo consenso popular. Importa fortalecer a resistência contra o crime, apoiar o anseio por ver respeitado o direito, trabalhar pela paz na sociedade através do empenho por justiça.
7. Para o bem da sociedade, pois, urge recuperar a primazia do direito sobre o poder. A concretização dessa meta na Constituição do País e nos demais códigos legais, bem como na articulação de propostas partidárias e políticas governamentais, certamente pode dar margem a concepções divergentes. Isto é natural em regime democrático. Há que se buscar o acordo. De qualquer forma, o direito é incompatível com o crime, com a ditadura do poder e com a reserva de privilégios indevidos. Cabe ao Estado zelar para que todo cidadão tenha assegurado o amparo do direito e seja cumpridor dos deveres nele implícitos. Para tanto deve servir o poder. É a única maneira de legitimá-lo. O poder se torna útil somente quando se submete ao direito e a ele se presta como braço instrumental.
8. O momento histórico da sociedade brasileira é crucial. Cumpre que ela se mobilize em favor do direito conforme exigido pelo bom senso e pela responsabilidade ética. Convidamos as Comunidades da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil e suas Igrejas-irmãs a se unirem a movimentos correspondentes. Mencionamos, em particular, o Movimento pela Ética na Política, a Ação da Cidadania contra a Miséria e a Fome e pela Vida, além de outras iniciativas. Os escândalos que envergonham o povo brasileiro, e que causam tão graves danos ao presente e ao futuro da Nação, requerem o mais enérgico repúdio. Aliar-se a ela e colaborar no restabelecimento do direito e da justiça - pressupostos indispensáveis da paz social - é mandamento do próprio Cristo.
Porto Alegre, 23 de novembro de 1993