Diante da verdade, não se esquivar!

Busca de compreensão da aléteia em meio à ânsia social por novos rumos.

29/10/2018

Hoje celebramos antecipadamente o Dia da Reforma Luterana. Sempre o fazemos com alegria e apreço, lembrando que no dia 31 de outubro de 1517 aquele monge rebelde não mais consegue segurar se ímpeto e propõe uma discussão acadêmica mais profunda sobre um tema existencial: a segurança da vida eterna. Este tema, segundo Martin Luther, não pode ser debatido à margem do conceito de JUSTIÇA. Como tenho colocado em minhas últimas pregações, JUSTIÇA nada mais é que um exercício de alteridade, buscando o bem estar e a distinção da outra pessoa.

Dito isto, preciso lhes recordar que a nossa IECLB, em um Concílio no ano de 2006, decidiu seguir o Lecionário Comum, ordem de textos bíblicos ecumênicos para as pregações dominicais. Excessão para datas festivas, como é a de 31 de Outubro, quando nossa igreja escolhe textos apropriados ao momento. Quando o Dia da Reforma cai durante a semana, sempre antecipei a mensagem correspondente para o domingo anterior. É exatamente o que faço para o domingo de hoje, ao respeitar a ordem de textos e basear a pregação em João 8.31-36. E, ainda para não levantar suspeitas, a base desta pregação está em artigo publicado no portal Luteranos por mim há dois anos.

João 8. 31 Então Jesus disse para os que creram nele:
— Se vocês continuarem a obedecer aos meus ensinamentos, serão, de fato, meus discípulos 32 e conhecerão a verdade, e a verdade os libertará.33 Eles responderam: — Nós somos descendentes de Abraão e nunca fomos escravos de ninguém. Como é que você diz que ficaremos livres? 34 Jesus disse a eles:
— Eu afirmo a vocês que isto é verdade: quem peca é escravo do pecado.  35 O escravo não fica sempre com a família, mas o filho sempre faz parte da família. 36 Se o Filho os libertar, vocês serão, de fato, livres. 

Diante da verdade, não se esquivar!

Veracidade. Confiança. Retidão.

De onde surgiu esta palavra - verdade - aléteia - e qual seu real significado?

Especialistas em línguas antigas concordam que a origem seja léthó ou lanthanó que expressam o desejo de escapar de uma situação, de se safar de um momento de envolvimento com o que é enganoso ou de deixar algo cair no esquecimento. É a negação da realidade circundante. A negação da realidade. É tapar os olhos e viver uma falsa realidade. Como a palavra ganhou o sufixo a, mudou seu sentido. Passou a significar justamente o contrário: enfrentar os fatos e chegar à elucidação da realidade circundante. Trocar o falso pelo real. Enquanto o novo termo foi se consolidando como palavra autônoma, surge também seu antônimo: pseudo, que significa falso. Aléteia versus pseudo.

O que é a verdade? Minha verdade é a sua verdade? Esta é uma discussão que acontece há milênios. Os filósofos gregos, por exemplo, sentavam em uma pedra e pensavam a respeito da verdade e, de uma ou outra forma, todos concordavam que a verdade é um privilégio dos deuses. Tomás de Aquino, filósofo e também teólogo, definiu a verdade como sendo a adequação da mente com as coisas como elas são. Ou seja, verdade e consciência tranquila seriam, assim, parceiros. Bem mais tarde René Descartes se expressou sobre o assunto dizendo ser capaz de descansar enquanto imagina a verdade como sendo aquilo que dá confiabilidade ao ser humano, enquanto este confia em Deus.

Se Martin Luther propôs a discussão acadêmica de um assunto existencial, se filósofos e sábios sentavam sobre uma pedra e ensinavam seus ouvintes, Jesus também, ao amanhecer apareceu novamente no templo, onde todo o povo se reuniu ao seu redor, e ele se assentou para ensiná-lo” (v.2). Este é o contexto inicial do capítulo 8 do Evangelho de João. 

Jesus fala da verdade no Templo. Diante da investidas dos fariseus, aqueles falsos religiosos, propôs a palavra da reconciliação ao invés do julgamento. Ele diz: eu não julgo ninguém. Mesmo que eu julgue, as minhas decisões são verdadeiras, porque não estou sozinho. Eu estou com o Pai, que me enviou.” (v.15-16). Os falsos religiosos continuaram sua investida contra Jesus perguntando quem é esse Pai. Era uma provocação ateia. Quando vocês levantarem o Filho do homem, saberão que Eu Sou” (v.28), respondeu Jesus aos seus oponentes. Dirigindo-se às pessoas que creram, e apenas a estas, Jesus acrescenta: — Se vocês continuarem a obedecer aos meus ensinamentos, serão, de fato, meus discípulos e conhecerão a verdade, e a verdade os libertará”.

Vamos continuar dando voz à palavra de Deus. Um uso clássico do termo aléteia no Novo Testamento pode ser sacado do primeiro Evangelho escrito: Então a mulher, sabendo o que lhe tinha acontecido, aproximou-se, prostrou-se aos seus pés e, tremendo de medo, contou-lhe toda a verdade. (Marcos 5.33) Esta era aquela mulher com hemorragia que nitidamente tentou usar o conceito do “esquece” e acabou se rendendo à verdade; ajoelhando-se diante do Mestre admitiu o que aconteceu e saiu abençoada.

Na realidade, a palavra aléteia pouco aparece nos Evangelhos. Quem mais a usa são João, no Evangelho, e o apóstolo Paulo. Gostaria de exemplificar o uso da palavra no seguinte versículo: “Mas quem pratica a verdade vem para a luz, para que se veja claramente que as suas obras são realizadas por intermédio de Deus”. (João 3.21). Ao lado do texto de João 8, gosto muito destes versículos por ilustrarem bem aquilo que Platão, Sócrates, Aristóteles ao seu modo imaginaram sobre a verdade divina.

A verdade é libertária! Ela dignifica a pessoa. A verdade restaura confiança. Mesmo que seja dolorida, a verdade sempre acabará aproximando as pessoas. É falso dizer que o compromisso com a verdade pode fazer da pessoa um prisioneiro. A verdade sempre liberta! E o efeito colateral dessa libertação pela verdade é a parceria, é olhar para o mesmo alvo juntos. Podem me chamar de romântico, mas acho que a verdade é a única forma de um povo viver a igualdade, alcançando e mantendo avanços no campo social e mantendo avanços na distribuição de renda, por exemplo.

O teólogo Karl Rahner observa que uma das consequências do relativismo e do ceticismo em nossa época são bastante evidentes: falta a reverência para com a verdade. Sim, quando não há reverência para com a verdade, tanto faz se é verdade ou é mentira. E, pior, quando é mentira e a mentira é repetida infinitas vezes até que se torne uma verdade, torna-se difícil definir o que é verdade. Já outro teólogo luterano, Pannenberg, apontou o caminho a seguir para recuperar um sentido de unidade e abrangência da verdade: aproximar-se das coisas de Deus. Se nos permitirmos ainda unir opiniões de Hegel e Bradley, veremos que toda a verdade só pode ser encontrada em um só território, isto é, a partir de uma perspectiva bíblica. 

Isso não significa fundamentalismo ou, como algumas pessoas confundem, não é fascismo. Isso significa que toda a verdade emerge plenamente apenas no final da história, quando a história atinge o objetivo. É assim que a Bíblia evidencia a verdade libertadora. E é assim que verdade tem como consequência evidente seu alcance para todas as pessoas. A Verdade é personificada em Jesus Cristo. Somente Cristo liberta da intolerância injusta e leva à verdade inclusiva e transformadora.

O texto bíblico analisado termina com mais investidas dos falsos religiosos. Apelaram para a tradição - a descendência de Abraão - mas Jesus reage. Com toda Sua autoridade, vinda do Pai, e sem julgar ninguém, lhes diz que quem não crer no Filho continua escravo do pecado. Crer no Filho é abraçar a verdade libertadora.

Verdade! Temos um longo caminho a trilhar juntos. Como pessoas cristãs não podemos nos esquivar da verdade. 

Aléteia para todos!

Amém! 


Autor(a): Pr. Rolf Rieck
Âmbito: IECLB / Sinodo: Sudeste / Paróquia: Rio de Janeiro - Martin Luther (Centro-RJ)
Área: Confessionalidade / Nível: Confessionalidade - Prédicas e Meditações
Testamento: Novo / Livro: João / Capitulo: 8 / Versículo Inicial: 31 / Versículo Final: 36
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Prédica
ID: 49707
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Ó Senhor Deus, o teu amor chega até o céu e a tua fidelidade vai até as nuvens. A tua justiça é firme como as grandes montanhas e os teus julgamentos são profundos como o mar.
Salmo 36.5-6
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