Deuteronômio 30.15 e 19b - DIA DA COMUNIDADE EVANGÉLICA
(São Leopoldo, Morro do Espelho, 3 de outubro de 1976)
A graça do nosso Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo sejam com todos nós. Amém.
Um dos textos para a nossa prédica de hoje encontra-se num anúncio comercial que ouvi no rádio há alguns dias: Aproveite melhor o tempo que Deus lhe deu para viver — ponha em sua casa um condicionador de ar Springer Admiral.
Não sei bem o que foi que trouxe vocês aqui esta manhã. T aproveitaram a oportunidade para fugir da cidade e Talvez um domingo diferente. Talvez vieram na esperança de encontrar conhecidos e conviver com eles. Talvez por curiosidade, para ver que negócio é esse, Dia da Comunidade Evangélica. E talvez muitos vieram porque são fiéis, gente de casa, que acompanha quando pode as programações da comunidade.
Também não sei se já pensaram um pouco sobre o lema que está nesse cartaz amarelo: TEMPO PARA VIVER. Os que pen saram deram cada qual a sua própria interpretação. Tenho a-- impressão de que a maioria pensou: É, não se tem mais tempo para viver. A gente corre o tempo todo de um lado para o outro, só trabalhando e se preocupando. Não há mais tempo pra nada. Isso não é vida.
Eu também tive lá as minhas ideias, mas fui buscar socorro no Antigo Testamento. O AT é um livro que sabe falar das coisas bem concretas que se passam com a gente. Ele diz muita coisa sobre a vida. E o que eu vou fazer agora é mastigar com vocês algumas dessas coisas.
Antes de mais nada, as pessoas do Antigo Testamento sabem que viver e existir não é a mesma coisa. Mesmo existindo, já se pode estar morto ou semi-morto. Para o AT, a pessoa — ainda que respire, e ande, e coma, e durma — já vai morrendo quando não vê sentido na vida, quando não consegue realizar-se, quando se desliga das outras pessoas e passa a levar uma existência isolada, fechada.
Hoje, mais de dois milênios mais tarde, nós fazemos a mesma experiência. Nós dormimos, bem ou mal, e acordamos , comemos, estudamos, corremos da casa para o trabalho e do trabalho para casa, ficamos plantados horas engolindo tudo que a TV nos empurra olhos e ouvidos a dentro, no fim da semana nos quedamos apáticos ou fugimos da cidade para as estradas lotadas; para recomeçar tudo na segunda-feira. As coisas vão simplesmente acontecendo e sem que o percebemos arrastam-nos consigo.
E se eu perguntasse agora: Para que vocês vivem?, que é que vocês me responderiam? Para que é que eu vivo? Para estudar e um dia ser alguém na vida, ganhar um bom tutu. Para trabalhar, ganhar dinheiro, sustentar a família, pagar o colégio dos filhos. Para pagar a prestação da televisão, comprar aquele condicionador de ar, ser promovido na firma. Para satisfazer minha comodidade. Para... sim, para quê.? Não é assim que a maioria de nós vive sobretudo para ser alguém perante os outros? Para que os outros vejam minha família (minha mulher bem vestida, meus filhos na universidade), minha casa, minha posição profissional, meu circulo de amigos — e saibam quem eu sou, e me respeitem: Não são estes os valores que perseguimos? Sim, é a estes valores que dedicamos e nos quais gastamos a nossa vida. Sempre que atingimos uma etapa, nos sentimos bem e realizados. Por pouco tempo — pois em seguida volta a insatisfação, a necessidade de ir mais além, de acelerar o tranco. Assim, de realização em frustração, vai se levando... Quem se deixou arrastar pela corrente vai parar um dia, forçado pelo coração, pelas úlceras ou pelo câncer, e vai ter que perguntar: Afinal, para que foi que eu vivi? E talvez descubra que viveu muito pouco, que já morreu muito em vida.
Por que, meus amigos, esperar pelo coração, pelas úlceras, pelo câncer? E mesmo que já estejam ai, incomodando, por que não parar hoje e perguntar: Eu estou vivendo pra quê? Seria uma boa coisa para se fazer num Dia da Comunidade Evangélica!
Vamos voltar de novo ao Antigo Testamento. Vocês sabem que lá existe um livro chamado Deuteronômio. E também conhecido como o Quinto Livro de Moisés. Esse livro é quase todo uma coleção de mandamentos. Nesses mandamentos o israelita vê expressa a vontade de Deus sobre praticamente todas as esferas da vida. Também os Dez Mandamentos que nós conhecemos estão lá. Bem, o livro conta como esses mandamentos, como essa vontade de Deus é entregue ao povo. E bem no final é dito o seguinte — e este é o texto para a prédica de hoje — : Vê que te proponho hoje a vida e o bem, a morte e o mal (optando pela minha vontade, você terá vida; desligando-se dela, você terá morte). Escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e a tua descendência. (Dt 30.15 e 19b)
Será que isso é apenas mais uma das tantas e sonoras frases religiosas que se ouvem por aí? Ou poderia ser verdade? Você sé vivera mesmo se fizer a minha vontade; do contrario, é morte já em vida. Agora escolha. E dose! Viver para quê? P'ra fazer a vontade de Deus! Será que isso não é meio exagerado? Bem, o mínimo que podemos fazer é conferir. Vamos testar se fazer a vontade de Deus é um valor pelo qual vale a pena viver.
Todos conhecem os Dez Mandamentos. Vamos toma-los como um resumo da vontade de Deus. Qual é, então, a vontade de Deus? O que é que ele quer de nós? 1º.) Que ninguém e nada mais assuma o seu papel para nós. Que ele, e só ele, seja a primeira e última instância em nossa vida. 2º.) Que o nosso semelhante seja o critério de tudo que fazemos. Que nada do que fazemos prejudique o nosso semelhante. Mais: que devemos viver no sentido de ajudar o nosso semelhante a viver. Em outras palavras, Deus estaria dizendo a nós agora: Vocês só terão uma vida realizada e com sentido (1º.) senão permitirem que qualquer outra instância tome o meu lugar, e (2º.) se viverem para ajudar os outros a viver. - Olhem, pensando bem, isso até que não pode ser tão exagerado assim.
Ganhar dinheiro? Sim. Afinal, para dar condições de vida aos nossos dependentes, para ajudar outros a viver, nos precisamos de dinheiro. Estudar e trabalhar? Sim. E com essa nossa capacidade que podemos ajudar nossos dependentes e outros a viver. Adquirir coisas? Sim. Eu e meus dependentes precisamos de coisas (comida, roupa, teto) para viver.
Mas, ganhar dinheiro à custa dos outros, — não. Trabalhar e galgar posições nas costas dos outros, — não. Subir na vida pisando nos outros, — não. Aí estarei jogando pela janela aquilo que eu poderia aproveitar para ajudar os outros a viver.
Estudar, trabalhar, ganhar dinheiro, adquirir coisas para que os outros saibam quem eu sou, e me respeitem? Não. Aí eu me torno o meu Deus. Aí eu me torno o meu próprio e único semelhante. Aí eu me perco em mim mesmo e acabo morrendo em vida.
Meus amigos, Deus e o semelhante têm que ser a medida: Sem essa medida entramos na roda-viva que todos conhecem . Só com essa medida saímos dela. Quem sente que não está vivendo, quem sofre sob uma vida frustrada e sem sentido pergunte-se agora, e pergunte-se depois, nos grupos-de-es-tudo: Deus é meu Deus, ou eu sou meu deus? Eu vivo para ajudar o meu semelhante a viver, ou vivo para que os outros saibam quem eu sou? Só esta medida - Deus e o semelhante - é capaz de botar as coisas no devido lugar, é capaz de impedir que estudo, trabalho, dinheiro, aquisição de coisas, que tudo isso se agigante, assuma importância exagerada e acabe me escravizando. O prejudicado dessa escravidão sou eu. Só Deus e o meu semelhante podem libertar-me. É, reparem bem. Eu não estou dizendo: Por favor, vamos ser camaradas e ajudar um pouco o nosso semelhante. Eu estou dizendo: Vamos deixar que o nosso semelhante nos liberte da nossa escravidão, da nossa necessidade de ser alguém — e de morrer triturados pela roda-viva.
Em si, era isso o que eu queria dizer. Mas não poderia deixar de lembrar, já que estames falando disso, que o lema deste dia não está bem certo. Deveria ser: Tempo para vivermos, não é mesmo? Se a gente só vive com auxilio do semelhante, é preciso falar no plural.
Falando nisso, e para finalizar, quero lembrar ainda aqui aqueles que não têm tempo para viver — porque gastam todo o seu tempo lutando pela simples sobrevivência. Vou relatar o caso de três dessas pessoas, nossos semelhantes. Há alguns dias eu passava pela João Pessoa, em Porto Alegre, defronte à Faculdade de Economia. Um senhor idoso, muito velhinho, vinha caminhando lentamente, quase se arrastando, de bengala na mão. Parou na minha frente e perguntou: Onde fica Petrópolis? — O ônibus para Petrópolis? — Não, Petrópolis. — Bem, o senhor dobra logo à direita e depois toca toda vida em frente. Mas o senhor não pode ir a pé; são uns quantos quilômetros, não vai chegar lá nunca. O senhor tem que pegar um ônibus. — O velhinho me olhou com uma expressão que no consigo descrever e só dis-se: Não tenno dinheiro. — Ele não tinha dinheiro para uma passagem de ônibus a Petrópolis. Ela custa Cr$ 1,00.
Vocês sabem que a Diaconia tem um programa de apadrinhamento para crianças necessitadas. Vou ler um extrato de duas das fichas que se encontram na Diaconia. Citarei apenas o primeiro nome das crianças:
Sônia - 14 anos - Mãe: empregada doméstica, salário mensal, CrS 180,00 - 7 irmãos, 5 falecidos por desnutrição — A menor é filha de mãe solteira, mora no interior, num morro onde nem automóvel chega perto. A mãe sai para trabalha7; as crianças ficam sozinhas, brincando com marginais e até com delinquentes. Havia dias em que as crianças tomavam apenas uma alimentação à noite, quando a mãe chegava do emprego. A menor não goza de boa saúde, é muito triste e tem dificuldade em estudar.
Adilza - 11 anos - Mãe: empregada doméstica, salário mensal Cr$ 240,00 - A família mora entre barracos na periferia da cidade, onde predomina a promiscuidade. A menor filha de mãe solteira e tem cinco irmãos, todos de menor idade. A progenitora abandonou a prostituição e passou a trabalhar como lavadeira em casa de família, deixando os filhos presos em casa, na maioria das vezes sem nada para comer. Não suportando a fome, as crianças fugiam para procurarem algo para saciar a fome, às vezes até nos tonéis de lixo, uma vez que a mãe só chegava à noite. Devido à situação infra-humana por que passou, a menor tem grande dificuldade em aprender, assimilar e criar.
São os semelhantes, meus amigos. Enquanto existirem tais pessoas, ninguém de nós pode dizer que esta vivendo. Citei o velhinho, a Sônia, a Adilza como representantes de milhões ao nosso redor: presos, excepcionais, menores abandonados, mendigos atirados na rua, doentes e solitários. O velhinho, a Sônia, a Adilza podem libertar-nos da nossa escravidão. Eles podem ajudar-nos a viver.
Aproveite melhor o tempo que Deus lhe deu para viver — ponha em sua casa um condicionador de ar Springer Admiral.
Vê que te proponho hoje a vida e o bem, a morte e o mal. Escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e a tua descendência. Amém.
Veja:
Nelson Kirst
Vai e fala! - Prédicas
Editora Sinodal
São Leopoldo - RS