Prédica: Deuteronômio 18.15-20
Leituras: Marcos 1.21-28 e 1 Coríntios 8.1-13
Autor: Gerson Correia de Lacerda
Data Litúrgica: 4º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 01/02/2015
Proclamar Libertação - Volume: XXXIX
Um profeta semelhante a Moisés
1 Introdução
Esta é a quarta vez que Deuteronômio 18.15-20 é colocado como texto de prédica em Proclamar Libertação. Ele já mereceu estudos de Nelson Kilpp (v. 19, de 1994) e de Haroldo Reimer (v. 31, de 2006, e v. 33, de 2009).
O livro de Deuteronômio é apresentado sob a forma de discursos feitos por Moisés na época em que o povo de Israel estava na terra de Moabe, no final de sua peregrinação pelo deserto, depois da libertação da escravidão no Egito e antes da entrada na terra prometida. De acordo com tal forma de apresentação, o livro seria, então, uma “segunda lei” ou uma “repetição da lei”. Segundo essa forma de apresentação, o texto indicado para a prédica neste 4º Domingo após Epifania integra o segundo discurso de Moisés (Lv 4.44-28.68), no qual ele faz referência ao surgimento de um profeta semelhante a ele, ao qual Deus daria a sua mensagem e a quem todos deveriam ouvir.
O segundo texto para este domingo é de Marcos 1.21-28, que narra a atuação de Jesus na cidade de Cafarnaum. Ali, ele transmite seu ensino de forma inusitada. Não o faz como os mestres da lei do seu tempo, que ensinavam apelando para a autoridade de famosos intérpretes da lei do passado. Ao contrário, “Jesus ensinava com a autoridade dele mesmo” (Mc 1.22). A reação das pessoas diante de Jesus foi de admiração. Surpreendentemente, porém, uma pessoa reagiu de forma diferenciada. Um homem reconheceu que Jesus era o “santo de Deus” (Mc 1.24). Em outras palavras, poderíamos afirmar que aquele indivíduo reconheceu que, em Jesus de Nazaré, cumpria-se a promessa do texto de Deuteronômio. O problema é que o único a reconhecer e a afirmar isso era considerado um homem possesso por um espírito imundo.
Finalmente, o terceiro texto trata da questão dos alimentos sacrificados aos ídolos, ou seja, aos deuses. A pergunta que se fazia era a respeito da participação dos cristãos: podiam ou não podiam eles comer tais alimentos? A resposta do texto bíblico caminha em duas direções: por um lado, não havia nenhum problema na participação dos cristãos, visto que reconheciam que aqueles deuses não existiam; por outro lado, se os cristãos comessem alimentos sacrificados aos deuses, poderiam escandalizar pessoas mais fracas e, por essa razão, deviam abster-se deles. Ora, em tal contexto, o que interessa são a negação da existência de todos os deuses e a afirmação do senhorio único de Jesus (1Co 8.6), o “santo de Deus”, proclamado pelo homem possuído por um espírito imundo, e o “profeta semelhante a Moisés”, do texto de Deuteronômio.
2. Exegese
O contexto: Tomando como ponto de partida a tese defendida por Frank Crüsemann de que o núcleo do Código Deuteronômico (Dt 12-26) tem sua origem no final do século VII a.C., quando o Império Assírio estava em franca decadência, fazendo com que houvesse um vazio no cenário político internacional e possibilitando a implementação de reformas no Reino de Judá, levadas a efeito sob o reinado de Josias, podemos afirmar que seu conteúdo representa uma revisão do Código da Aliança. Não se trata, pois, de uma repetição das leis do Código da Aliança. Ao contrário, como afirma Crüsemann, trata-se de uma substituição do Código da Aliança, tendo em vista a nova realidade histórica vivida pelos judeus.
E essa substituição foi colocada sob a forma de discursos proferidos por Moisés. É importante ressaltar a diferença: o Código da Aliança é apresentado como procedente diretamente de Deus, ao passo que o Código Deuteronômico é colocado como resultado da intermediação de Moisés, que profere discursos nos quais apresenta a vontade do Senhor. O texto de Deuteronômio para este domingo deve ser visto levando em consideração o conteúdo que o precede a partir do versículo 9. Nele são condenadas as práticas religiosas pagãs.
Eram práticas comuns naquela época. Por um lado, eram práticas através das quais as pessoas procuravam manipular os deuses, oferecendo seus próprios filhos em sacrifício. Por outro lado, eram práticas mágicas, mediante as quais procuravam desvendar os mistérios do futuro. Nem uma coisa nem outra eram permitidas ao povo de Israel. Ao invés de tentar ter o controle sobre a vontade de Deus, a orientação era a submissão a seus desígnios. Ao invés de buscar desvendar o futuro antecipadamente, a orientação eram a confiança e a fé nos propósitos divinos.
É nesse contexto que se apresenta o texto em que aparece a promessa de envio de um profeta semelhante a Moisés. Através dele Deus manifestaria sua vontade soberana. Por intermédio dele o povo de Israel receberia orientação segura, sem necessitar de conselhos de adivinhadores do futuro.
O texto: A partir daí temos a promessa do futuro profeta feita por Deus.
Dessa promessa destacamos os seguintes pontos:
1) Um profeta de Deus, mas do meio do povo – Iahweh teu Deus suscitará um profeta como eu no meio de ti dentre os teus irmãos, e vós o ouvireis (v. 15). Destaca-se aqui, em primeiro lugar, a iniciativa de Deus. É o Senhor quem levanta um profeta. Trata-se, pois, de uma pessoa vocacionada e sustentada por Deus. Foi por vocação divina que surgiram os grandes profetas do Antigo Testamento. Todos eles se sentiram chamados por Deus para cumprir uma missão divina.
Em outras palavras, o profeta a ser suscitado por Deus não seria um profeta profissional, como muitos que existiram no tempo da monarquia. Os profetas profissionais serviam aos reis. Eram profetas do palácio. Auferiam vantagens pessoais em troca de suas profecias. Viviam no luxo da corte. Em troca disso, só anunciavam mensagens que agradavam aos ocupantes do trono. Seu compromisso não era com uma vocação divina, mas com os ocupantes do trono.
Mas, em segundo lugar, tal profeta seria suscitado do meio do povo, dentre os seus irmãos. Não é um mensageiro celestial, um querubim ou serafim. Nada de espetacular ou de sobrenatural indicaria sua vocação divina. Ao contrário, seria um profeta perfeitamente humano, assim como Moisés. Isso certamente poderia gerar um problema: seria possível identificá-lo como profeta de Deus? Não seria ele um desafio à fé?
2) Um profeta intermediário entre Deus e o ser humano – É o que tinhas pedido da Iahweh, teu Deus, no Horebe, no dia da assembleia: “Não vou continuar ouvindo a voz de Iahweh, meu Deus, nem vendo este grande fogo, para não morrer” (v. 16). A referência aqui é ao texto de Deuteronômio 5, quando o povo de Israel ficou com medo diante da manifestação da glória de Deus e pediu a Moisés que atuasse como intermediário. Naquela ocasião, o povo ficou com medo de ser destruído por contemplar a glória do Senhor. Foi o mesmo sentimento que tomou conta de Isaías ao contemplar a glória do Senhor no templo. Ele também sentiu que estava perdido e que iria perecer por ser um simples pecador diante da glória de Deus. Foi por causa disso que o povo solicitou que Deus atuasse através de um mediador. Deus considerou justo o pedido de um intermediário feito pelo povo. Esse iria receber a mensagem do Senhor e depois se incumbiria de transmiti-la ao povo.
3) Um profeta humano, mas com mensagem divina – Colocarei as minhas palavras em sua boca, e ele lhes comunicará tudo o que eu lhes ordenar (v. 18). Apesar de o profeta ser um intermediário humano, sua mensagem não seria dele mesmo, mas de Deus. Aconteceria com ele o mesmo que sucedeu a Jeremias, que, ao ser vocacionado, alegou que não poderia cumprir sua missão, pois não sabia falar. No entanto, o Senhor tocou sua boca, afirmando que colocava nela sua própria palavra.
4) Um profeta fiel – Todavia, se o profeta tiver a ousadia de falar em meu nome uma palavra que eu não lhe tiver ordenado, ou se ele falar em nome de outros deuses, tal profeta deverá ser morto (v. 20). Temos aqui uma referência aos falsos profetas. Eles eram aqueles que proferiam mensagens que não procediam de Deus ou que procediam de falsos deuses. Sua presença não podia ser tolerada no meio de Israel. Tinham de ser mortos. Havia, contudo, um sério problema: como distinguir a falsa profecia da verdadeira? Segundo o nosso texto, havia necessidade de esperar a fim de verificar se a história comprovava ou não a mensagem profética. Em outras palavras, eram precisos tempo e paciência. Nenhuma providência deveria ser intempestiva. Era preciso aguardar o que o futuro diria sobre a mensagem proferida. Somente o futuro poderia comprovar ou não a fidelidade profética.
3. Meditação
Estamos no 4º Domingo após Epifania. Nele celebramos a manifestação de que Jesus é o Messias enviado por Deus para salvar o mundo. A criança nascida pobremente em Belém era bem mais do que uma simples criança. Nela se cumpria a promessa do envio de um profeta semelhante a Moisés, feita muitos anos antes. Que profeta era esse?
1) Um profeta revelador: Nos tempos do Antigo Testamento, as pessoas tinham um profundo interesse por revelações a respeito do futuro. Por isso tinham enorme sucesso as pessoas que eram consideradas possuidoras de poderes espetaculares para fazer “presságios, oráculos, adivinhações e magias ou que pra- ticavam encantamentos, que interrogavam espíritos ou adivinhos, ou ainda que invocassem os mortos” (Dt 18.10,11). Tudo isso era muito comum, tanto entre os egípcios como entre os cananeus e os mesopotâmios.
Contra toda essa prática religiosa colocou-se a vontade de Deus. No meio de Israel, todas essas práticas religiosas ligadas às revelações sobre o futuro foram interditadas. No lugar delas foi colocada a revelação de Deus e de sua vontade para o seu povo. Deus revelou-se como libertador (“Eu sou Iahweh, teu Deus, que te fez sair do país do Egito, da casa da servidão” – Êx 20.1) e Deus estabeleceu suas leis para o seu povo (“Tu farás...”).
Foi nessa linha que atuou Jesus. Como o profeta prometido, ele nos revelou quem é Deus e o que Deus quer de nós. No entanto, ironicamente, nos dias de hoje, em muitas igrejas, profetas e profetisas apresentam-se em nome de Deus com presságios, oráculos e adivinhações. Em tal situação, temos de resgatar a face reveladora de Deus e de sua vontade no semblante de Jesus de Nazaré, o profeta semelhante a Moisés.
2) Um profeta intercessor: Nos tempos do Antigo Testamento, também era relativamente comum a prática de sacrifícios humanos. Eles eram realizados como uma forma extremada de pressionar os deuses, a fim de que atendessem os pedidos dos seus fiéis. Temos um exemplo disso na guerra contra Moabe, empreendida pelo rei Jorão (2Rs 3). Naquela oportunidade, sentindo-se perdido, o rei de Moabe ofereceu seu próprio ilho em holocausto. Esse tipo de prática chegou a ocorrer em Israel. Foi essa a denúncia feita pelo profeta Jeremias quando disse: “Os filhos de Judá construíram altares para queimar seus filhos e suas filhas” (Jr 7.31).
No lugar da realização de sacrifícios humanos, o povo de Israel contou com Moisés, que muitas vezes intercedeu em seu favor. Moisés chegou ao ponto de pedir que Deus riscasse seu próprio nome do “livro que escreveste” se não perdoasse o seu povo (Êx 32.32). No mesmo sentido atuou Jesus. Ele intercedeu por seus seguidores (Jo 17). Não somente orou em seu favor, mas entregou sua própria vida por nós. E, ressuscitado e elevado à presença de Deus, Jesus continua a interceder por nós (Rm 7.34).
Infelizmente, ao longo da história, a igreja tem inventado outros intercessores junto a Deus. Mesmo em nossos dias, líderes religiosos apresentam-se como intercessores os quais Deus atende e conquistam muitos adeptos. Diante disso, temos de resgatar a fase intercessora de Jesus de Nazaré, o profeta semelhante a Moisés.
3) Um profeta libertador: Foi essa a grande missão desenvolvida por Moisés. Coube a ele enfrentar os poderes dos opressores que mantinham o povo de Israel no cativeiro. Coube também a ele conduzir o povo da terra da opressão para a terra da libertação. Também foi essa a missão desenvolvida por Jesus de Nazaré. E uma demonstração de sua atuação como profeta libertador foi dada exatamente no início do seu ministério em Cafarnaum, quando libertou um homem que vivia sob a opressão de um espírito impuro.
Não foi, porém, só nesse momento que Jesus atuou como libertador. Durante todo o seu ministério, ele enfrentou os poderes opressores do seu tempo. Não foi por acaso que se uniram contra ele as forças políticas e religiosas do seu tempo. Assim como Moisés enfrentou toda a oposição do faraó, também Jesus sofreu o combate sem tréguas dos escribas, fariseus e sacerdotes, que o entregaram, finalmente, nas mãos dos romanos.
Ao longo do tempo, porém, a atuação de Jesus como profeta libertador foi sendo obscurecida pelos poderes deste mundo. Poderes políticos, econômicos e ideológicos formaram um grande conluio para deformar sua apresentação. E, infelizmente, até mesmo a igreja, muitas vezes, tem tomado parte nessa conspiração. Precisamos resgatar a face libertadora do Jesus de Nazaré, o profeta semelhante a Moisés, suscitado por Deus do meio do seu povo.
4. Imagens para a prédica
1) “Como o primeiro libertador (Moisés), assim também o último (Jesus)”: “Assim como Lucas traça um paralelo entre a infância de Jesus e a de João Batista, de forma semelhante Mateus traça um paralelo entre a infância de Jesus e a de Moisés. Era crença na época do Novo Testamento que o Messias libertador dos últimos tempos seria também o novo Moisés, fazendo sinais e milagres como Moisés. Até se dizia: ‘Como o primeiro libertador (Moisés), assim também o último (o Messias)’. Sabemos que Mateus apresenta, em seu evangelho, Cristo como o novo Moisés, que, à semelhança do primeiro, deu também uma nova lei na montanha: o Sermão da Montanha. [...] Como se deu com o primeiro libertador, assim também com o último. Jesus é realmente o Messias-Libertador esperado e o profeta escatológico” (BOFF, 1985, p. 127).
2) Moisés: “Moisés, por meio de visões e comunicação direta da vontade de Deus, recebeu a missão de conduzir a libertação dos israelitas escravizados do Egito. Pregando a confiança a um povo desesperado, ele organizou o movimento de libertação. [...] Depois Javé, através de Moisés, conduziu seu povo libertado através de provas e preparações no deserto até a entrada na terra prometida” (HORSLEY; HANSON, 1995, p. 127).
5. Subsídios litúrgicos: Afirmação de fé
O Senhor da minha fé: Não creio no deus dos magistrados nem no deus dos generais ou das orações patrióticas. Não creio no deus dos hinos fúnebres nem no deus das salas de audiências ou dos prólogos das constituições ou dos epílogos dos discursos eloquentes. Não creio no deus da sorte dos ricos nem no deus do medo dos opulentos ou da alegria dos que roubam o povo. Não creio no deus da paz mentirosa nem no deus da justiça impopular ou das venerandas tradições nacionais. Não creio no deus dos sermões vazios nem no deus das saudações protocolares ou dos matrimônios sem amor. Não creio no deus construído à imagem e semelhança dos poderosos nem no deus inventado para sedativo das misérias e sofrimentos dos pobres.
Não creio no deus que dorme nas paredes ou se esconde nos cofres das igrejas. Não creio no deus dos natais comerciais nem no deus das propagandas coloridas. Não creio no deus feito de mentiras, tão frágil como o barro, nem no deus da ordem estabelecida sobre a desordem consentida.
O Deus da minha fé nasceu numa gruta. Era judeu. Foi perseguido por um rei e caminhava errante pela Palestina. Fazia-se acompanhar por gente do povo. Dava pão aos que tinham fome, luz aos que viviam nas trevas, liberdade aos que jaziam acorrentados, paz aos que suplicavam por justiça. O Deus da minha fé colocava o ser humano acima da lei e o amor no lugar das velhas tradições. Ele não tinha uma pedra onde recostar a cabeça e confundia-se com os pobres... O Deus da minha fé não é outro senão o ilho de Maria e de José, Jesus de Nazaré. Todos os dias ele morre crucificado pelo nosso egoísmo. Todos os dias ele ressuscita pela força do nosso amor (Frei Betto).
Bibliografia
BOFF, L. Jesus Cristo Libertador. Petrópolis: Vozes, 1985.
CRÜSEMANN, F. A Torá – Teologia e história social da lei do Antigo Testamento. Petrópolis: Vozes, 2002.
HORSLEY, R.; HANSON, J. S. Bandidos, Profetas e Messias. São Paulo: Paulus, 1995.
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