Tema: Deus, em tua graça, transforma o mundo
Lema: Não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente (Romanos 12.2a)
Texto-base
O texto-base do Tema do Ano 2005 foi elaborado pelos grupos assessores da Presidência. O mesmo reflete a relação do Tema e Lema com as diferentes áreas temáticas de reflexão dos grupos assessores: Teologia e Confessionalidade; Responsabilidade Pública; Ecumenismo; Gênero; Etnia e Missão. O texto-base tem o propósito de dar um embasamento teológico para as reflexões e atividades relacionadas com o Tema do Ano.
Nossa declaração de fé: o sujeito da transformação do mundo é Deus
O Tema do Ano é uma súplica. Esta súplica nos coloca diante do fato de que somos impotentes para transformar o mundo. O impulso inicial do tema não nos leva imediatamente à ação mas nos remete à oração. Com isto reconhecemos que o sujeito da transformação do mundo é Deus. A súplica pede que Deus nos insira no processo da vinda de seu Reino.
A súplica é, antes de tudo, reconhecimento do juízo de Deus sobre nossa existência pessoal, eclesiástica e social. Somos levados à penitência porque somos agentes e colaboradores das forças que levam à desintegração da vida desejada por Deus para o mundo.
Na perspectiva da Palavra de Deus como lei e evangelho, com a súplica, nos colocamos, ao mesmo tempo, sob o juízo e sob a graça de Deus. Afirmamos que, em Jesus Cristo, Deus revelou por excelência a sua graça. Ele é o logos eterno do Pai que se fez ser humano e morre na cruz pelo mundo. Este logos eterno, feito carne, assumiu sobre si o juízo sobre o mundo, tornando-se, por isso, o redentor do mundo. A redenção nos revela que “este mundo ainda é de Deus” (HPD 165).
A súplica pelo mundo é ação sacerdotal em favor de sua transformação. A oração, neste sentido, já é ação que deseja se tornar concreta em múltiplos engajamentos que testemunham o Reino de Deus. Assim, a súplica expressa a esperança pela manifestação definitiva do Reino.
Tomada de consciência: o mundo não espelha os valores de Deus
Percebe-se que a sociedade e as relações sociais são estruturadas e organizadas com base na lógica do mercado, com sua ênfase no lucro, no consumo, na troca desigual. Neste modelo socioeconômico predominam valores que priorizam o lucro individualista; suas conseqüências são a exclusão econômica e social, a violência, a fome, o desemprego, entre outros. A ideologia que sacraliza ou banaliza as desigualdades sociais ajuda a manter intocável o sistema político e econômico que está na origem das mesmas. Essa ideologia encobre o fato de que o mundo assim constituído é uma construção humana.
A fé cristã, no entanto, incita-nos a não nos conformarmos com a banalização da pobreza e das relações sociais iníquas, e nos sensibiliza para a busca do perdão por deixarmos o mundo ser como ele é. A tomada de consciência deste fato é uma transformação que precisa ser operada em nós.
A graça de Deus: uma nova lógica nas relações humanas
A graça de Deus opõe-se à lógica mercantilista. Ela nos dá a chave teológica, a partir da qual podemos, concretamente, expressar a nossa não-conformidade. Na perspectiva da graça, é possível perceber que a vida, os bens, os alimentos, a terra são presente, graça de Deus, distribuídos de tal forma que seja garantido o suficiente para a manutenção da vida no planeta. Ela nos motiva e impulsiona a fazermos chegar os bens e as riquezas a todas as pessoas e lugares, de forma justa e igualitária. A graça atua a partir da lógica da distribuição e se manifesta na cotidianidade através do alimento partilhado, das relações eqüitativas e da pluralidade cultural. A ênfase na distribuição, portanto, requer transformações tanto em âmbito individual, quanto em âmbito estrutural, da sociedade. Quando se fala em transformação do mundo pensa-se no sentido concreto; mundo significa as relações humanas, a política, a natureza, as pessoas, as instituições, a Igreja. Por isso, também a Igreja, como parte deste mundo, é chamada a ser transformada, para que possa testemunhar a vida como graça bondosa e misericordiosa de Deus.
O tema proposto para 2005 - Deus, em tua graça transforma o mundo - não pode ser entendido como fuga de nossa responsabilidade em relação à sociedade. Ao se deixar perpassar e ao se colocar sob a graça de Deus, a IECLB testemunha que é co-participante nesta transformação. A graça, mediada pela Palavra e sacramentos, nos constrange a participar como instituição e como indivíduos, junto com outras organizações da sociedade civil e da política, no processo de transformação do mundo.
A responsabilidade da Igreja cristã: unidade comprometida com a transformação
O texto de Romanos 12.2a está num contexto que tematiza o corpo. Cristãos e Igreja têm e são corpo, e é nesta pluralidade una e concreta do corpo, com seus membros dotados com diferentes dons e tarefas, que existem e se renovam no mundo. Este é a boa criação de Deus, ameaçada por este “mundo” e “século”. Aqui, século significa um modo de ser impróprio e contrário a Deus, que gera divisões e a fragmentação da vida. Assim, “não vos conformeis...” significa também não se resignar com as divisões que marcam este mundo e as próprias igrejas. “Não vos conformeis...” significa ainda estar em constante transformação, motivada pela graça de Deus.
Deve-se notar no tema e lema a relação exata entre ambos, como de indicativo e de imperativo. O tema, mesmo na forma de súplica, supõe e indica a graça. O lema, de maneira exortativa, aponta para o inconformismo transformador do mundo; este decorre da resposta graciosa que precede e atende à súplica. O inconformismo transformador do mundo se contrapõe a um espiritualismo escapista, presente também na Igreja, que considera o mundo como algo mau, e que, por isso, desconsidera o testemunho concreto.
A unidade da Igreja, em contraposição às suas divisões e às do mundo, deve ser visibilizada: deve tornar-se visível, porém, numa atitude de respeito à pluralidade, e não se confundir com uniformidade, pois esta não é essencial para a unidade, a não ser nos aspectos fundamentais da fé.
A precariedade das relações humanas: o constante desafio de atualizar o mandamento do amor
Partindo da premissa que somos criaturas feitas à imagem de Deus e chamadas, pelo batismo, a viver seu amor em comunidade, deparamo-nos com a realidade da precariedade de nossas relações humanas. Nisto se inclui a discriminação que mulheres sofrem ainda hoje, transformando-as em meros objetos sexuais, reduzindo suas capacidades e limitando seu desenvolvimento pleno. Inclui também o tolhimento aos homens que, influenciados por um modelo machista, são impedidos de uma existência plena. Estas relações não refletem a totalidade do amor de Deus, estando, muitas vezes, permeadas por violência verbal, psicológica, física e sexual.
Se o mandamento do amor (amor a Deus e ao próximo como a si) nos impele a viver em confiança da graça de Deus, também nos leva a confessar pecados e pedir perdão por relações injustas, discriminatórias, violentas e que cerceiam potencialidades. A Igreja, neste sentido, é um espaço privilegiado para auxiliar as pessoas a identificar os valores cristãos e colocá-los em prática no seu cotidiano. O exercício ético nos leva a rever nossas ações, inclusive os relacionamentos entre homens e mulheres e ensaiar novas práticas que reiterem a dignidade humana na família e na sociedade.
Dentre as transformações necessárias, citamos a banalização da violência e a ridicularização da compaixão a pessoas em necessidade. No entanto, a indignação de Jesus diante da agressão e a sua crítica à exclusão continuam nos servindo como critério. Sua postura nos desafia à indignação diante da realidade e nos convida a transformá-la. Cabe à Igreja testemunhar os sinais do Reino nos exemplos de esperança, solidariedade, comunhão, participação plena, vida abundante e paz.
Vivência comunitária: o compromisso com a inclusividade
A súplica a Deus é também um desafio às comunidades para um engajamento na construção de um outro mundo, que contemple a inclusão da diversidade étnica no seio da Igreja e da sociedade. O étnico expressa nossa história, nossa comunidade, nossa vida. Por isso tem a ver com identificações teológicas e espiritualidade, relações sociais, cosmovisões, com a vida na sua totalidade. É imperativo que a Igreja valorize as experiências e manifestações culturais/étnicas diversas.
A atual situação social e étnica brasileira, marcada pela intolerância e desrespeito à diversidade cultural, é resultado de um longo processo histórico de dominação, colonização e desrespeito a valores étnicos e culturais dos povos. Esse processo necessita ser conhecido; por isso é necessário que haja estudo e reflexão em torno das relações étnicas no Brasil considerando um novo olhar histórico-antropológico.
A reflexão das comunidades sobre as diferentes etnias deve estar acompanhada de ações diaconais que promovam o diálogo, a valorização e o respeito à história e à cultura dos povos. É necessário que haja uma conscientização do poder público que favoreça ações em benefício de maior justiça social. A IECLB, através de suas comunidades, baseada no Evangelho de Jesus Cristo, é um instrumento de transformação de estruturas para um modelo mais solidário e inclusivo.
Deus é quem transforma: a mudança começa em nossas vidas
A oração que suplica a Deus pela transformação do mundo é, em si mesma, uma expressão de inconformismo para com este mundo como ele se apresenta hoje. A oração é, nesse sentido, o início da missão. Ela nos liberta do voluntarismo e da preocupação em relação à salvação do mundo. É Deus quem salva, redime e liberta este mundo; por isto podemos orar: Ó Deus, transforma este mundo, em tua graça! É uma oração de confiança e entrega. A súplica nos predispõe a caminharmos de modo agradecido e renovador no meio em que vivemos. A súplica nos convida a entregarmos tudo nas mãos de Deus, que tem o poder para fazer de nós instrumentos de sua paz, como tão bem cantou São Francisco de Assis.
Há uma oração que nos desvia desse caminho. É a oração que suplica apenas por nossa salvação individual e se esquece do mundo que Deus ama (Lucas 18.9ss). Entretanto, a oração cristã jamais nos aquieta, antes nos faz levantar a cabeça e olhar à nossa volta. Se Deus é capaz de transformar este mundo de misérias e desgraças num mundo saudável e liberto, em e por meio de Jesus de Nazaré e do seu Espírito, então suas filhas e seus filhos caminham na mesma direção. Por isto somos eternos inconformados.
Esta disposição para realizar mudanças começa em nossa própria mentalidade. É a graça de Deus que nos permite pensar diferente do senso comum; é por graça que ousamos reformar a Igreja, o mundo e nós mesmos.
Assumindo a missão de Deus: chamados a viver em fé, esperança e amor
Por vezes, nossa colaboração na missão nem é percebida. Só mais tarde alguns testemunham: - Aquela gente tinha visão, sim! Saíram para além dos seus muros e compartilharam as dores do mundo, foram ao encontro dos outros, dos diferentes. Hoje sabemos que tinham razão. Por isto, damos graças a Deus, que é quem transforma a morte em vida, quem abre os caminhos sem saída, quem liberta e une os diferentes num só povo que anuncia a esperança!
Neste início de século 21, mais que qualquer outro momento histórico, faz-se necessário uma relação orgânica e fecunda entre a espiritualidade, a razão e a práxis (transformação do mundo). Vivemos num tempo de vertiginosas transformações técnicas, científicas, culturais e sociais. A transformação que o Espírito de Deus proporciona, porém, é de outra ordem, mas acontece no meio do mundo, entre as pessoas, nas comunidades e nas igrejas. É esse Espírito de Deus, presente no mundo, em meio às pequenas e grandes mudanças, que nos inspira e nos orienta para caminharmos em fé, esperança e amor - o tríplice carisma que transforma o mundo.