Desemprego - A sorte de corpos e almas nas estatísticas
• Antonio Carlos Ribeiro •
Mas, por trás de toda essa mascarada... pesa o sofrimento humano, um sofrimento real, gravado no tempo, naquilo que tece a verdadeira história sempre ocultada. Sofrimento irreversível das massas sacrificadas; quer dizer, de consciências torturadas e negadas uma por uma. (Viviane Forrester. O Horror Econômico. São Paulo, Unesp, 1997, p. 9)
De novo celebramos o dia 1° de maio. Como nos últimos anos, esse feriado internacional do dia do trabalho foi lembrado por um fato cruel: mais e mais pessoas se referiram ao trabalho a partir da sua negação, o desemprego. Pouco trabalho e muitos trabalhadores mundo afora. As indústrias e as empresas estão se fundindo, aumentando a produção, dobrando os lucros, esbanjando eficiência. Mas falta trabalho e sobram trabalhadores. Há toda uma nova geração que está entre os que sequer chegarão a entrar no mercado de trabalho.
Assunto polêmico, nos meios de comunicação ele sempre aparece como uma batalha verbal. Justificativas ideológicas à parte, restam as pessoas, suas casas empobrecidas, seus direitos à infância, à juventude, à idade adulta e à velhice negados, suas vidas roubadas. Essa existência sofrida dos trabalhadores das minas de carvão, na França da revolução industrial, foi magistralmente mostrada no romance Germinal, de Émile Scola. Ou no filme Daensz, em que um padre belga se envolve nos conflitos entre a tirania da riqueza, o silêncio da Igreja e a política partidária elitizada.
Essa situação, que já cresce no Brasil há algum tempo, recrudesceu nos últimos anos. Em outubro de 1996, quando o desemprego alcançava 16,5% da população da maior cidade da América do Sul, o governo não se escandalizou com a taxa, mas com a sua divulgação pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Só-cio-Econômicos (Dieese). Disse que o problema seria enfrentado com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e da privatização de empresas estatais. O FAT virou lastro para as crises de câmbio do real, e a privatização, feita às pressas, entregou empresas por até um quinto de seu valor real.
Os anos passaram, a Constituição foi alterada para a reeleição, o parlamento ficou mais fisiológico e o judiciário chegou a ameaçar com greve geral. O crescimento econômico sofreu seguidas desacelerações. Empresas fecharam, outras fundiram-se. Setores estáveis da economia sofreram retrações. Mas a consequência mais abrangente teve pouca divulgação: o desemprego em massa. Para que este diminuísse seu avanço nos anos 90, seria necessário que o crescimento da produção de bens e serviços estivesse associado ao crescimento sustentado da economia, o que não aconteceu.
Com o índice do desemprego crescendo dois por cento ao mês, a década foi um desastre para quem vive do trabalho. A média do desemprego subiu de 3,4% em 1990 para 8,3% em 2000. Ao fechar com 1.474.013 desempregados, o mês de fevereiro de 2000 produziu o maior contingente de desempregados de toda a história. As seis maiores regiões metropolitanas do país (Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre) passaram a ter mais 170 mil pessoas vagando à busca de emprego.
Do drama coletivo ao individual. Os desempregados há mais de um ano enfrentam maiores dificuldades de retornar ao mercado de trabalho, assim como mulheres, pessoas acima de 40 anos e sem experiência anterior. Isso os empurra para pequenos trabalhos, pouco remunerados, incertos, os bicos. Em fevereiro de 2000, o número de trabalhadores sem carteira assinada, sem direitos assegurados e sem seguros subiu para 27,2% — 4.532.948 homens e mulheres — dos quais 23% decidiram trabalhar por conta própria.
Conseguir emprego é um drama, mesmo que o salário mínimo tenha encolhido 36,2% desde que foi criado em 1940. A pobreza subiu quando o mínimo caiu. Esta afirmação do economista Márcio Pochmann, da Universidade de Campinas/SP, ganha densidade quando se sabe que um em cada cinco brasileiros recebe o salário mínimo —14,9 milhões de pessoas —, valor que representa 28,6% da renda per capita no Brasil e que o coloca abaixo de 12 países, inclusive o Peru, a Argentina, o Uruguai e a Venezuela, na América do Sul. Na Dinamarca, país de tradição luterana, esse índice é de 66,2%. Realidade dura e cruel, o desemprego mudou o discurso dos sindicatos de trabalhadores. Se até pouco tempo atrás a luta era por um salário melhor, nos últimos anos as centrais sindicais começaram a lutar pela garantia de emprego. O trabalhador perdeu qualquer poder de barganha diante da ameaça do desemprego, afirmou Myriam Ferreira, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Apesar da mídia divulgar um crescimento na taxa de participação, isso não se mostrou no índice de ocupação. Quer dizer, não foram criados postos de trabalho suficientes para absorver um número maior de pessoas. O subemprego, que surge nessa situação, faz os trabalhadores brasileiros sofrerem mais do que os europeus e os americanos, países onde a proteção dos sindicatos e o apoio social dos governos funcionam. Aqui o subempregado recebe remuneração abaixo do que precisa, e o desempregado aceita o emprego disponível, mesmo que não seja o procurado e nem a remuneração desejada. Sujeita-se a tudo.
O reflexo dessa situação se mostra na família. O IBGE apurou que o rendimento das pessoas ocupadas caiu 5%. Isso significa que a média real dos salários despencou. Nos últimos 10 anos, houve um aumento da violência na ordem de 60% nos casos de homicídios no município de São Paulo. No mesmo período, o crescimento populacional foi de apenas 10%, enquanto o desemprego aumentou 60% e os roubos cresceram mais de 100%. Esses números indicam que a concentração populacional e o desemprego influem na violência e na criminalidade.
Diante de todas essas situações, os cidadãos aprenderam a duvidar. Se há aumentos nos preços de bens e serviços, como é compreensível que os índices registrem baixas taxas de variação? A população desconfia. Para ela, a verdadeira taxa de inflação é mais alta, e os resultados divulgados demonstram que os índices de preços são manipulados.
Como lidar com a situação da dona Joana? Ela é casada, tem três filhos, trabalha como faxineira e passadeira. O marido cata lixo reciclável. Ambos estão desempregados e sobrevivendo de bicos. Os filhos frequentam a escola pública, apesar das dificuldades. Num encontro de pais e mestres, eles contaram sua situação e experimentaram a solidariedade. Houve quem se dispusesse a doar roupas usadas, cesta de alimentos e xerox do livro didático para as crianças continuarem indo à escola. Eles expressaram sua gratidão. Mas ficam as perguntas: Deus os quer vivendo de favor? Quais são os gestos que ajudam a curar a dignidade ferida? Com que projetos a comunidade deve se envolver, em nome do Cristo que disse meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho também (João 5.17)? Da construção desse espaço, cantou o poeta, depende a nossa alegria. Sem o seu trabalho, um homem não tem honra. E sem a sua honra, se morre, se mata. Não dá pra ser feliz!
O autor é jornalista e pastor da IECLB, e reside no Rio de Janeiro, RJ
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