Descobrimento - uma construção do colonialismo

01/12/1999

Descobrimento - uma construção do colonialismo

Werner Altmann

Os 500 anos estão sendo festejados pela mídia com um ar triunfalista que o observador minimamente atilado não encontra entre o povo brasileiro, este mesmo povo que a mídia gosta de retratar como alegre, cordato e cordial. Por que faltaria o entusiasmo popular frente a este episódio específico?

Fato idêntico ocorreu no México, mais especificamente no Estado de Chiapas, onde os festejos dos 500 anos de descobrimento da América tiveram ampla ressonância, mas eram festejos que soavam estranhos aos indígenas — a esmagadora maioria da população daquele estado. Assim, no âmbito dos 500 anos de colonização, os indígenas chegaram à conclusão de que para los índios de América no queda más camino que el de la lucha armada.

Em realidade, nada há a festejar, simplesmente porque não houve descobrimento, já que o Brasil (e a América) não existiam. Não se pode descobrir o que não existe. A idéia ou imagem do descobrimento é uma construção do colonialismo, que se estabeleceu logo depois da chegada dos europeus.

Civilização monodimensional

A partir do descobrimento da América em 1492, que foi, no rigor do termo, uma invasão, estabeleceu-se na América Latina uma civilização monodimensional, que se estendeu pelos tempos afora como uma totalidade absolutamente intransigente e destrutiva. O filósofo mexicano Leopoldo Zea chama a atenção para a destruição sistemática de povos e recursos considerados selvagens. Segundo ele, a América Latina sofreu a civilização não como uma forma de incorporar outros homens e povos — no sentido da tradicional incorporação da barbárie à civilização —, mas como uma forma de dominar a natureza e, com ela, seres a quem a humanidade não era reconhecida.

Implementou-se, a partir de então, um sistema de exploração mundial que excluiria a grande maioria da humanidade dos benefícios de suas maiores conquistas tecnológicas e materiais. Para isso, redimensionou-se a escravidão dos indígenas inicialmente e, a seguir, dos negros africanos, violentamente arrancados de sua terra natal.

Dos tais 500 anos de Brasil, temos 322 de período colonial e 178 anos em que os ranços do colonialismo estão por demais evidentes. E a herança fundamental do colonialismo é, certamente, a do aviltamento do trabalho, que se traduziu fundamentalmente na escravidão. Considere-se, ainda, que o trabalho tomou-se livre apenas a partir de 1888. E mesmo a partir deste ano, sabemos que a escravidão ainda persistiu ou está sendo reincrementada hoje, com a eliminação das conquistas da legislação trabalhista.

Relações coloniais

E a quem tanto interessa festejar esse modelo? Obviamente aos grupos dominantes de hoje, herdeiros dos anteriores, que mantêm, com a nação, isto é, o povo brasileiro, relações de tipo colonial. São grupos dominantes que não se envergonham de reinar sobre uma base de milhões — a esmagadora maioria da população brasileira — de pobres e miseráveis. Considere-se, entretanto, que os fatos consumados são inalteráveis, e o exame —e não o festejo! — do passado deve servir para olhar o futuro, para encaminhar questões políticas e sociais a partir de agora. É desnecessário dizer, por evidente, que o propósito do festejo é o da alienação, pois festejar, nesse caso, implica o não-pensar, o não-examinar o objeto em questão.

Paradigmática a respeito é a trajetória do pensamento do já citado filósofo mexicano Leopoldo Zea. Desde o início de sua obra, começou a se deparar com o traço negativo caracterizador do homem latino-americano: sua radical situação de dependência. Para Zea, a história da América é a história de um colonialismo violentamente imposto, diante do qual o homem americano sucumbiu por imposição ou, também, por aceitação, afundado num permanente servilismo imitativo, pretendendo realizar um ser que lhe é desconhecido. Emerge e permanece, então, um estado de alienação que foge de sua realidade precisamente porque esta realidade é dependência. Por isso, Zea falará da América como consciência de si mesma. Conhecendo-se e reconhecendo sua dependência, poderá iniciar o caminho de sua libertação dos modelos externos que a alienam, frustram e infelicitam. Com o fim dos entraves colonialistas, a história da América poderá ser vista, então, como uma permanente luta pela libertação. Nesse sentido, o filósofo jamais fará concessões ao colonialismo e suas múltiplas e constantes sequelas. Jamais o justifica, e também não o conformismo colonizado. Por outro lado, a ausência de concessão ao colonialismo não se constitui em óbice em sua obra, para a conciliação da singularidade americana, com a circunstância humana universal. Daí a insistência na afirmação da filosofia americana como filosofia plena, o que equivale à afirmação correlata e subsequente de que o ser humano desta América é também um ser humano pleno.

Identidade histórica

De outra parte, a identidade latino-americana não é obviamente uma identidade estática nem mesmo uniforme. É uma identidade histórica, que, por isso mesmo, abriga em si mesma a diversidade e a pluralidade, tanto como estas, por sua vez, implicam a unidade. Pluralidade e unidade simultaneamente. Nossa diferença, nossa igualdade. Somos iguais porque somos diferentes, insiste Zea. Ademais, o filósofo não aceita compromissos com o embuste, explícito ou implícito, de considerar a cultura e a humanidade a partir de uma matriz única, à qual as demais culturas deveriam submeter-se. Reclama para a América Latina e todas as culturas a liberdade e a igualdade, princípios que o Ocidente criou, mas se nega a reconhecer nos povos atingidos por seu colonialismo.

Assim, antes de qualquer festejo de modelos capengas e iníquos — a mídia e certos governos festejarão sozinhos! —, urge buscar a convivência das culturas, a convivência igualitária dos seres humanos, para que se marche resolutamente em direção de um século que aponte para o fim da injustiça social e suas terríveis consequências, como o analfabetismo, a criminalidade, a subnutrição e a miséria e o estabelecimento daquilo que é um preceito cristão: a igualdade e a fraternidade entre os seres humanos.


O autor é professor na área de História na UNISINOS, em São Leopoldo, RS


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Autor(a): Werner Altmann
Âmbito: IECLB
Título da publicação: Anuário Evangélico - 2000 / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1999
Natureza do Texto: Artigo
ID: 33056
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