"O que oprime ao pobre insulta aquele que o criou, mas a este
honra o que se compadece do necessitado." (Provérbios 14.31)
O filme épico O Último Imperador, do cineasta Bernardo Bertolucci, propicia uma intransferível reflexão sobre a condição humana, ao contar a trajetória interrompida do imperador Pu-Yi. Coroado o último imperador da China em 1908, com apenas dois anos de idade (foto), abdicou em fevereiro de 1912, após a proclamação da república. Nomeado imperador da Manchúria pelo Japão, foi capturado pelos soviéticos e enviado para a China, onde ficou preso num centro de reeducação comunista até 1959. Após sua libertação, tornou-se jardineiro.
A história de Pu-Yi ajuda a refletir sobre a condição humana em meio às vicissitudes da história, expressas especialmente nas condições da riqueza e da pobreza. Passar de uma à outra é uma experiência impactante, em qualquer cultura. Ao que parece, na cultura ocidental a condição da pobreza se traduz mais claramente em sofrimento. A dificuldade de qualquer pessoa em manter financeiramente os seus confronta com a necessidade de ter para ser.
O que torna a pobreza uma condição depreciativa em nossa cultura é o sentimento de culpa gerado pelo sistema econômico e as influências que este traz sobre as culturas. Nesse contexto ser pobre é estar numa situação imoral, marcado pela derrota, vítima do sistema e, ao mesmo tempo, seu pior produto. Da teologia calvinista, que ensina que riqueza é recompensa de Deus aos bons e pobreza é castigo aos infiéis, resulta que tornar-se pobre significa ter sido punido.
Dessa cultura de lógica e conseqüências perversas, e de teologia de péssima qualidade na pregação, e pior na aplicabilidade pastoral, resulta a noção de que os pobres têm culpa por sua pobreza, que por isso podem (e até devem) ser explorados, e que, mesmo os mais piedosos não devem ajudá-los, quando nada para não alterar o destino traçado pelo Todo-poderoso. Esse é o antídoto mais comum para aplacar consciências, acalentado por alguns cristãos, mais do que o genuíno amor do Pai.
Ao invés de pregar a pobreza como possibilidade de insulto aos necessitados, o texto bíblico denuncia que oprimir o pobre é que é um insulto ao próprio Deus. Os pobres também têm filhos, e as crianças têm dificuldade de entender que o salário dos pais seja insuficiente, que estejam privadas do seu sustento e, sobretudo, que estejam sofrendo a ameaça da privação dos bens mais básicos. Inconcebível mesmo é que a pessoa que luta para superar sua condição financeira ainda seja culpada por causa dela.
Se já não fosse humilhante ter que demonstrar o esforço para conseguir as condições mínimas que sustentem a dignidade básica, as vítimas desse labirinto existencial desesperam-se ao serem acusadas de preguiça, chamadas de "vagabundos" ou responsabilizadas pelas crises que se abatem sobre a família, a comunidade e a sociedade. O sofrimento se agrava quando a pessoa se vê obrigada a "provar" sua honestidade, a "demonstrar" sua disposição de trabalhar e a "encontrar um modo de sobreviver" numa sociedade bem intencionada e apática. Por isso, oprimi-la é insultar a quem a criou, ofender a inteligência das pessoas e achar uma forma de sentir-se idolatricamente imunizado de qualquer risco.
A segunda parte do versículo acena para quem tem a sinceridade de abandonar a teologia da recompensa e a coragem de olhar para a realidade. Os psicólogos dizem que muitos não olham, simplesmente porque não suportam. Quem for sincero e tiver coragem vai defrontar-se com o esforço ilimitado de quem luta para não ver os filhos sofrerem as privações, e nem as humilhações dela decorrentes. Depois é preciso se com-padecer (padecer com) dos necessitados para entender o drama existencial dos pobres. Cuidado! Nesse exercício espiritual as respostas prontas não funcionam. Daí o autor ser categórico: "mas a este honra o que se compadece do necessitado".
Honestidade na busca da verdade, coragem para enfrentar as dificuldades e disposição de ser solidário não deixam oprimir o pobre e nem insultar a Deus. Ao contrário, respostas honestas propiciam soluções possíveis, mesmo que lentas; enfrentar os dramas mostra firmeza diante das dificuldades; ser solidário anima quem enfrenta dificuldades. As crises só têm significado se nelas encontrarmos algum sentido humano e comunitário. Jesus Cristo disse: bem-aventurados os que sabem que são espiritualmente pobres, porque deles é o Reino dos Céus (Mt 5.3). Quem sabe que é espiritualmente pobre vai ao encontro do outro como igual.
P. Antônio Carlos Ribeiro