Está em cartaz nos cinemas da cidade o filme A Paixão de Cristo. A produção cinematográfica de Mel Gibson tem se situado entre elogios e críticas. Quem tem assistido às cenas, comenta o grau de violência estampado na tela e fica pasmo de horror, por causa das cenas chocantes que perpassam o roteiro. Há quem comente os exageros, outros afirmam: Quem sofreu tamanha violência só pode ter sido o Filho de Deus..
O processo cultural na sociedade humana revela, com insistência, a existência da realidade dos sacrifícios. Atitudes assim são necessárias? Justifica-se a morte do Filho de Deus, condenado como um delinqüente, naquele instrumento de tortura, a cruz? Um Deus, cujas ações em favor da humanidade indicam para a oferta do amor e destacam as atitudes de reconciliação, na realidade, deveria tornar supérfluo todo o tipo de sacrifícios.
No cotidiano, estamos habituados à cultura dos sacrifícios. A sociedade moderna, em especial, a brasileira, convive demonstrando certa naturalidade, mas também muita revolta com a escalada da violência e as vítimas que ela produz. Em evidência situa-se o sacrifício de vidas humanas, muitas vezes alheio à causa que aparentemente o justifica. Embora o tempo gere distância dos fatos históricos, não cairão no esquecimento as cenas trágicas dos sacrifícios humanos produzidos pelos agentes do terror, isto em 11 de setembro de 2001, em Nova York; em 2003, a matança no Iraque e em muitas outras partes do mundo; e, em 11 de março de 2004, em Madri? Ou quem será capaz de permanecer insensível diante do menino-bomba, no Israel, seus olhos esbugalhados, rosto apavorado, carga explosiva em volta do seu corpo jovem, pronto para ser dilacerado? E os massacres diários em terras brasileiras: no campo, nas cidades, nas ruas, nos centros e nas periferias?
O mito do herói que morre por amor à amada, o herói que entrega a vida em favor do mais frágil, o mártir que se doa em favor de uma causa nacional nobre são fotografias que permanecem vivas e atuais. Conhecidos são igualmente os sacrifícios sem mortes. Pais que se sacrificam pelo bem-estar ou pelo estudo dos filhos; o parceiro que investe todos os recursos imagináveis para que a parceira possa subsistir; e ainda aquela família toda que se empenha em favor da restituição das forças e da saúde de uma pessoa próxima e querida. O mito relacionado ao sacrifício não desapareceu da cultura moderna, ainda que os sacrifícios sejam cultivados de modo diferenciado. A vida está sempre relacionada a sacrifícios, apesar da afirmativa do Evangelho, na carta aos Hebreus 10,10, que Jesus entregou seu corpo de uma vez por todas.
Na comunidade cristã, desenvolveu-se, desde seus primórdios, o conceito de salvação vinculado à entrega do corpo de Jesus Cristo na cruz. Lembramos essa obra redentora e sacrificial na sexta-feira da Paixão; hoje, portanto! O ato redentor passou pela violência da cruz; os fatos aconteceram em meio aos açoites, ao sofrimento, à perseguição e ao derramamento de sangue.
O episódio da crucificação de Jesus evidencia tendência fundamental, enquanto demonstra que o essencial desses acontecimentos não se concentra no processo que conduziu à morte e nem da morte em si, protagonizado naquele espaço periférico da cidade de Jerusalém. O essencial foi e continua sendo a motivação que gerou a crucificação. O sacrifício de Jesus e sua disposição de entregar-se refletem o ato amoroso de Deus para com a humanidade. Deus mesmo declara seu amor ao mundo criado. Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu Único Filho (João 3,16). A morte de Jesus aconteceu justamente para que esta não prevalecesse; pelo contrário, para que através da morte do Messias, tanto a morte como seus poderes coniventes fossem aniquilados.
A cruz de Cristo se reveste de um efeito construtivo e transformador. É morte que visa à redução do potencial da violência e da desordem que vigoram em nosso mundo, machucam a realidade humana e que comprometem o equilíbrio de toda a criação. O homem Jesus, morto na cruz, aposta na pedagogia da troca: uma pessoa morre para que muitas outras possam construir vidas de qualidade, marcadas pela verdade, pela liberdade que prioriza o serviço e pelo espírito da paz. Os atentados e as práticas da agressividade tem um único objetivo: aos inimigos a derrota total! Dessa forma, tais práticas serão plenamente exitosas, eficientes e arrasadoras. O sucesso do festival da morte deve ser amplo. Quanto maior a devastação e o número de pessoas sacrificadas, tanto maior o V da vitória e a festa da tragédia.
A sociedade moderna e seus defensores da política da violência estão conscientes, ou não, de que violência gera ainda mais violência. A fé das pessoas cristãs testemunha que o sacrifício de Jesus Cristo, na cruz, supera todas as formas de ódio e conduz ao amor, encorajando ao serviço em favor da criação e das criaturas! Cristãos amam a vida e têm pavor dos poderes da morte! Reúnem-se e vivem essencialmente para o bem estar das outras pessoas!
Manfredo Siegle
pastor sinodal do Sínodo Norte-catarinense
da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB)
em Joinville - SC
Jornal ANotícia - 09/04/2004