1 - Neste tempo de pós-Pascoa celebramos a vida e sua vitória sobre o mal e a morte através da ressurreição de Jesus Cristo. Esta boa-nova esta no fundamento da fé cristã e também no inicio da Igreja. Pois falando dela, as testemunhas partiram de Jerusalém para a Galiléia e até aos confins da terra. Esta mensagem da ressurreição, da vida nova, poderosa, incorruptivel e eterna, vem ao encontro do anseio mais forte e profundo de tudo que vive: banir a morte e aperfeiçoar, salvar, prolongar, reproduzir, perpetuar a vida.
2 - Nesse contexto desejo abordar um fato que nas últimas semanas causou grande sensação: a reprodução, a partir da manipulação de células, de uma ovelha que se tornou conhecida como Dolly. Aliás, foi o Conselho Diretor que me incumbiu de expedir uma palavra orientadora a esse respeito. Pois se trata de um fato em cuja relação estão sendo levantadas muitas perguntas. Elas chegam a nós também como Igreja, como obreiros/as e lideres, com o desafio de assumirmos posição e dar testemunho. Evidentemente estamos diante de um número enorme de possibilidades cientificas que implicam dilemas ético-religiosos. Neste estágio dos acontecimentos há mais perguntas e temores do que respostas. A humanidade se vê desafiada a definir limites aa ciência aceitaveis do ponto de vista ético. Precisamos de debates e estudos interdisciplinares entre cientistas, políticos, filósofos e teólogos.
3 - O êxito de reprodução por clonagem conseguido já no ano passado pelo Dr. Ian Wilmut, do Instituto Roslin, ligado à Universidade de Edimburgo, Inglaterra, com investimento da firma PPL Therapeutics, causou enorme impacto. Concomitantemente se ficou sabendo que experimentos semelhantes ja vêm sendo feitos há dezenas de anos, com plantas e animais. Só que agora o método descoberto por Wilmut para a reprodução assexual de mamíferos, por fusão de células, parece ter rompido uma barreira. Pois abre, para milhares de cientistas e laboratórios em todo o mundo, a possibilidade de fazer o mesmo, inclusive tentá-lo com a espécie humana. E ai se pergunta - em que escala - com que objetivos e limites - com que resultados...?
4 - Como seres humanos estamos inseridos nesta cadeia da vida. “Porque o que sucede aos filhos dos homens, sucede aos animais; o mesmo lhes sucede: como morre um, assim morre o outro, todos têm o mesmo fôlego de vida...” (Eclesiastes 3.19). A reprodução semi-artificial de animais mexe com o mistério da vida, causa espanto, admiração e mesmo comentários humorísticos. No fim das contas, vamos ficar entregues às mãos de pessoas que detêm o poder de pagar, de escolher quem poderá ser clonado ou não...? Estamos escorregando da mão de Deus para os laboratórios...? Será que o cientista, recebendo encomenda, vai pensar em aspectos morais e transcendentais? Afinal, a pesquisa genética, a criação de plantas e animais transgênicos, a seleção e modificação de espécies (p. ex. dos porcos de modo a produzirem orgãos compatíveis com os humanos, transplantáveis), é um negócio multimilionário já em andamento.
5 - Vários governos se apressaram em proibir a clonagem de seres humanos e não concederão recursos para esta finalidade. Com tais restrições a ciência dificilmente se deixará barrar, também porque os governos não são unânimes. A situação parece semelhante àquela do tempo quando os astrônomos divulgaram o sistema heliocêntrico e foram condenados. Mas sem dúvida essas primeiras reações, proibindo o avanco até a clonagem humana, têm ao menos um efeito retardador. Constituem um alerta para ir devagar, para ganhar tempo para a reflexão e a elaboração ética desses avanços da ciência; para criar mecanismos de orientação e controle e legislação correspondente.
6 - No Brasil passará a vigorar a partir de 15 de maio próximo a nova lei de patentes de Nº 9279/96. Ela proíbe o patenteamento de seres vivos, exceto de microorganismos, geneticamente modificados. No plano federal é responsável por essa área a Comissão Técnica Nacional de Biosseguranca, a CTNBio, vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia. Ela foi nomeada em junho de 1995 pelo Presidente da República com o fim de “implementar a Lei de Biossegurança (Lei Nº 8974/95) relativa à construção, cultivo, manipulação, transporte, comercialização, consumo, liberação e descarte de organismos geneticamente modificados.(...) Compete à CTNBio propor a Política Nacional de Biosseguranca, acompanhar o desenvolvimento técnico-cientíifico na biosseguranca e propor o Código de Ética de Manipulações Genéticas.” (Joseh Israel Vargas, em comunicado do Ministério da Ciência e Tecnologia, sobre “A clonagem de mamiferos, a biosseguranca e a ética”.)
7 - Sente-se em toda parte a necessidade de um debate político mais amplo. Nesse processo de reflexão temos que participar. Não podemos esperar soluções apenas “de cima”. Importa que o debate, a participação e a conscientização aconteçam também em nível local, p. ex. convidando expoentes da sociedade para uma noitada, uma mesa-redonda aberta para perguntas e respostas. É preciso adquirir maior conhecimento de causa. Posições extremadas não resolvem. A tecnologia já não é passível de patrulhamento. O gênio já saiu da garrafa. A ciência gerou impactos sobre a vida que carecem de elaboração teológica e política em nível nacional e internacional. A coletividade precisa de tempo para digerir as novidades e para políticas que impeçam abusos, sem bloquear o progresso científico. Certamente ficarão abertas questões a médio e longo prazo. A técnica da clonagem pode ser boa para algumas finalidades, por exemplo, quem sabe, para animais ameaçados de extinção. Haverá “acomodações” éticas de acordo com as necessidades e premências. Mas não se pode simplesmente seguir no rumo da ciência sem ter controles de direcionamento responsável. Pois ao ser humano não pode ser permitido fazer tudo de que é capaz. Sempre que o homem esquece seus limites e cede à tentação de querer ser igual a Deus, ele desrespeita o próximo e acontecem grandes males.
8 - A clonagem reacende esperanças de perpetuação da vida. Nosso credo diz que a vida eterna se recebe através da fé no Senhor ressurreto, que tem poder para nos dar nova vida e de nos ressuscitar da morte para a vida. Esta vida é de outra qualidade, vida com alma. Ela é mais que a soma das funções e experiências de vida, das influências específicas do ambiente, da educação, da nutrição, do carinho, dos castigos, do esporte. O espírito, a alma, a individualidade nunca serão iguais. A história de uma vida individual não poderá ser copiada. Segundo a antropologia que nos é familiar, a pessoa humana normal precisa de pai e mãe. Ser concebido a partir do abraço é algo diferente do que ter origem num sofisticado processo de laboratório. Um clone nunca será a continuidade da pessoa que lhe deu origem.
9 - Sempre é valido querer aperfeiçoar técnicas de pesquisa e medicina para o prolongamento desta vida, dom de Deus. A vida é merecedora de respeito e dignidade. Sua valorização, porém, não pode ser absoluta. Existe na Biblia uma palavra que diz “Tua graça é melhor que a vida” (Salmo 63.3). Ela nos lembra que o melhor da vida não é o mero funcionamento dos membros, dos orgãos e da digestão, mas o amparo pelo doador da vida, a presenca da graça do Deus criador, salvador e santificador da vida. Ele nos concede talentos e dons, nos abençoa com fé, esperanca e amor, ingredientes que tornam a vida preciosa e digna de ser vivida. Cremos na presença deste Deus conosco em Jesus Cristo crucificado e ressurreto por nós, “para libertar os que a vida toda foram escravos por causa do medo da morte” (Hebreus 2.15). Pela fé nele, pelo estar-em-Cristo, pelo exercício do discipulado, nos é dado experimentar o sabor da vida plena que Deus tem em vista para suas criaturas. O sonho da imortalidade via reprodução por cópias, ou a crença espírita da reencarnação, não são caminhos bíblicos. “Cada pessoa tem de morrer uma vez só e depois ser julgada por Deus” (Hebreus 9.27). A esta vida são colocadas restrições e limites, para mantermos viva a esperança pela ressurreição. Temos direito ao “partir e estar com Cristo” (Fil. 1.23), ao descanso, ao cumprimento da promessa da vida na glória com Deus. Esta janela aberta para a eternidade, que transcende a vida imanente, é essencial para a pessoa humana.
10 - Com isso não vamos menosprezar esta vida e projetar seu aperfeiçoamento para o além. A fé não lida com coisas virtuais e transcendentais, mas é força presente provinda de Deus para já iniciar a renovação da vida e transformá-la segundo sua vontade. Sob este enfoque se estabelecem prioridades em cuja escala a clonagem não tem a importância que lhe está sendo atribuída. Mesmo conseguindo reproduzir um ser vivo, o homem não é o criador da vida. Consegue no máximo lançar mão da rica matéria-prima genética existente e desencadear um processo do qual resulta um ser com o mesmo código genético. Mas a característica da criação de Deus é a diversidade da vida. Deus nos faz irrepetíveis. Nosso Deus-Criador não se contenta em fazer xerox, mas cria segundo a riqueza de sua imagem e da a cada novo ser sua propria individualidade, que significa talento único a ser usado com responsabilidade. A tendência humana vai no sentido da uniformização, da massificação, da destruição da biodiversidade e da indiferenciação dos sujeitos. Por acaso, não estamos expostos ao bitolamento cultural pela indústria da informação, que nos impõe seus padrões no trabalho, no consumo e no lazer? Sob esse aspecto já temos “ovelhas” iguais em excesso, ou seja, pessoas que se conformam com injustica, miséria e violência como se fossem clonadas sem o núcleo de sua consciência.
11 - Será que em meio à miséria existente hoje em dia há razões para clonar seres humanos? Mais importante é ajudar para que os seres existentes possam participar da nova vida, da vida plena e digna que Jesus Cristo veio trazer. Esta importa testemunhar por palavra, ação e participação responsável em iniciativas que possam melhorar a qualidade de vida dos que mais precisam ter acesso ao pão, a saúde, educação e moradia digna. Ter conhecimento do evangelho de Jesus Cristo faz parte dos direitos humanos fundamentais (Emilio Castro) e constitui tarefa missionária e diaconal de grande urgência. O desafio maior, portanto, é ajudar a viver dignamente aos que estão morrendo. E para isso a melhor orientação é o mandamento máximo da cristandade: Temer e amar a Deus e confiar nele acima de todas as coisas - e amar ao próximo como a si mesmo.
Porto Alegre, 11 de abril de 1997
Huberto Kirchheim
Pastor Presidente