Celebração da Santa Ceia com crianças - 20 teses sobre um tema controvertido

Artigo

15/11/1987

Observação inicial:

A participação de crianças não confirmadas na celebração da Santa Ceia é um tema que só agora começa a ser debatido no âmbito da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). Por ser um tema novo que contraria a prática vigente nessa igreja desde os seus primórdios, ele é necessariamente controvertido. Precisa, portanto, ser de batido ampla, profunda e cautelosa mas também corajosamente, pois é uma questão de grande alcance teológico-prático. Iniciativas como, por exemplo, a do DE Norte do Paraná que se propôs a discutir o tema em concílio se constituem em sinais promissores de uma reflexão salutar para a IECLB.

Tese 1: Teologicamente o Batismo legitima qualquer pessoa a participar da Santa Ceia. A inclusão das crianças na comunhão eclesial já se dá pelo Batismo. Não se justifica, portanto, que, na prática, essa comunhão não se expresse e não se vivencie no momento em que a comunhão eclesial e a comunhão com Cristo encontram a sua expressão maior, a saber, na celebração eucarística. Uma igreja que batiza infantes mas exclui crianças da Santa Ceia está institucionalizando uma séria contradição.

Tese 2: A nossa prática atual sugere que o Batismo se destine a crianças e a Santa Ceia a adultos. Uma distinção tão rígida no tocante aos destinatários de cada um dos sacramentos não tem base teológica. Mesmo que seja importante ser mantida a especificidade de cada sacramento, no tocante a seu significado devem predominar os aspectos que eles têm em comum. A saber,

- que Jesus Cristo é o único sacramento;
- que Batismo e Santa Ceia, como palavra visível, servem antes de mais nada à pregação de Jesus Cristo;
- que os sacramentos não oferecem outra dádiva além daquela que a palavra pregada transmite.

Tese 3: Se ambos os sacramentos são sinais visíveis da graça incondicional de Deus que nos atinge, sendo nós ainda pecadores, então torna-se difícil explicar como uma criança uma vez admitida ao Batismo (pela fé dos pais e da comunidade e na esperança duma fé própria no futuro), mais tarde, na mesma comunhão dos pais e da comunidade, quando já estaria em condições de ensaiar os primeiros passos da sua fé própria, fique excluída de participar da Ceia que o mesmo Senhor do Batismo oferece aos seus. Se no Batismo de infantes se constrói esperançosamente sobre a fé dos pais/padrinhos e da comunidade, então é necessário que se admita uma criança à Santa Ceia em comunhão de fé com seus pais e padrinhos. Pois a Eucaristia é um meio eficaz de viabilizar o cumprimento do compromisso assumido por estes no Batismo de acompanhar a criança no desenvolvimento de sua fé. A admissão de crianças à Ceia é uma forma de levar a sério o compromisso batismal. Uma igreja que realiza o Batismo de infantes não tem argumentos teológicos com os quais pudesse sustentar a não admissão de crianças à Santa Ceia.

Tese 4: A argumentação teológica toma um rumo diferente no momento em que se questiona o Batismo de infantes. Nesse caso, os argumentos contra o Batismo de infantes podem sustentar igualmente a argumentação contra a participação de crianças na Santa Ceia. Faço menção a esse fato pelo respeito que tenho por aqueles que, por preocupações legítimas no tocante à prática batismal na IECLB, questionam o Batismo de infantes. Para tais pessoas argumentar em favor da participação de crianças na Santa Ceia a partir do Batismo de infantes poderá ser entendido como uma tentativa de justificar uma prática controvertida mediante uma outra prática igualmente discutível.

Tese 5: As formas mais comuns de celebração da Santa Ceia na IECLB não correspondem à riqueza de aspectos teológicos testemunhada pelo Novo Testamento. Um sintoma disso é a ênfase dada na confissão e no perdão de pecados e na salvação individual em detrimento, por exemplo, da dimensão da comunhão dos santos. Entendo que na medida em que for colocada uma ênfase maior na dimensão da comunhão eucarística, haverá também uma maior abertura e disposição de tornar visível a comunhão com crianças não confirmadas.

Tese 6: A participação de crianças na Santa Ceia poderá nos ajudar a superar a atmosfera fúnebre que, não raro, caracteriza a celebração eucarística em nossa igreja. Para isso contribuem, por exemplo, as vestes pretas do(a) pastor(a), a forma da celebração, os hinos, a linguagem pouco acessível das agendas, a expressão do rosto dos comungantes e a relação unilateral que se costuma estabelecer entre a Santa Ceia e a paixão de Cristo (esta relação é central mas não exclusiva!). A simples participação de crianças na Ceia não resolverá essa questão. Mas as crianças poderão nos ajudar a redescobrir e a reincorporar em nossa tradição eucarística a dimensão festiva da Ceia, a alegria proléptica do Reino que nela se expressa e a relação que existe entre crer e celebrar. Parece que o Senhor de fato, ocultou essas cousas aos sábios e entendidos e as revelou aos pequeninos (Mt 11.25).

Tese 7: Há sinais evidentes de que a forma convencional de celebração da Ceia na IECLB não dá oportunidade a que os laços familiares cheguem a se expressar em toda sua plenitude. Estamos deixando para trás os tempos em que os homens e mulheres participavam separadamente da Ceia. Está aumentando o número de casais que comungam juntos. Precisamos descobrir ainda a riqueza da comunhão familiar que se expressa no ato da família toda se reunir em torno da mesa do Senhor, sem discriminação dos seus membros menores.

Tese 8: Refletir sobre a conveniência da participação de crianças na Santa Ceia implica em refletir também sobre as razões históricas que levaram os reformadores a romper com a prática eucarística da época. Uma das preocupações de Lutero foi a de impedir que alguém participasse da Ceia sem compreender o seu real significado. Eis porque se introduziu a catequese e posteriormente a Confirmação para assegurar uma participação mais consciente e em fé da Eucaristia. A preocupação por uma participação consciente e em fé da Ceia ainda hoje justificadamente está presente nas igrejas luteranas e precisa ser levada a sério.

Tese 9: A preocupação legítima dos reformadores não foi resolvida a contento através da institucionalização da Confirmação e da vinculação formal entre a mesma e a primeira participação na Santa Ceia. Para muitos adolescentes as circunstâncias que envolvem a sua primeira participação na Ceia são antes de natureza traumática do que um estímulo para uma participação espontânea e significativa no futuro. O automatismo e a quase obrigatoriedade de participarem da Santa Ceia resultante de uma pressão externa dos familiares, dos demais confirmandos e, por vezes, até mesmo do(a) próprio(a) pastor(a) criam uma atmosfera incompatível com o espírito da Eucaristia. Juntem-se a isso os atropelos que envolvem esse momento (agitação em torno da festa, da roupa adequada, dos convidados, das fotografias) e nós teremos um conjunto de ingredientes que tornam a Confirmação e a primeira participação na Santa Ceia antes um motivo de preocupações e uma questão de formalidade do que uma oportunidade de comunhão espiritual e familiar marcantes para o adolescente.

Tese 10: A conotação de rito de passagem para a adolescência que o ato da Confirmação adquiriu ao longo de nossa tradição eclesial não favore¬ce uma compreensão e uma celebração adequadas da Santa Ceia nesse contexto. Este fato aliado aos mencionados na tese anterior tornam a vinculação automática entre Confirmação e a primeira participação na Santa Ceia, em muitos casos, problemática.

Tese 11: A Confirmação e tudo o que a envolve tornou-se um acontecimento por demais formal e inapropriado para se constituir num sinal que evidencie se um adolescente está ou não habilitado a participar responsavelmente da Santa Ceia.

Tese 12: A celebração de um ou mais cultos com Santa Ceia com os confirmandos e seus pais e familiares já durante a última etapa do Ensino Confirmatório se mostrou, em algumas igrejas irmãs onde essa prática foi introduzida, como um evento muito positivo. A celebração eucarística nessa oportunidade pode favorecer um salutar diálogo com e entre confirmandos e seus familiares sobre o significado da Santa Ceia. A compreensão e o interesse pelo assunto pode aumentar sensivelmente quando se combina o estudo teórico da temática com a celebração prática da Ceia mediante o acesso dos confirmandos à mesma. Isso contribuirá para que se alivie a sobrecarga que paira sobre a celebração da Santa Ceia por ocasião da Confirmação.

Tese 13: Uma igreja que batiza infantes, que insiste em estimular a educação cristã de crianças no lar e na igreja (culto infantil, escola dominical, participação em cultos normais, publicação de literatura específica) está implicitamente admitindo que as crianças sejam capazes de entender o Evangelho à sua maneira. Constitui-se num contrasenso se ela insiste, ao mesmo tempo, na prática da admissão à Santa Ceia de acordo com o critério do atingimento de uma certa idade, no caso, de 13 ou 14 anos. Não há razões plausíveis capazes de explicar porque uma pessoa somente seja capaz de compreender o que seja a Santa Ceia em uma determinada etapa de sua vida (Wölber).

Tese 14: Hoje podemos avaliar melhor do que no passado a importância de experiências de fé precoces na vida duma pessoa. Essas experiências, mesmo que sejam de caráter intuitivo, podem marcar a vida de fé de alguém mais profundamente do que descobertas posteriores, ainda que estas sejam mais conscientes e melhor fundamentadas pela razão.

Tese 15: A experiência vivida na infância é o húmus original de todo saber (C. Boff). Nihil in intellectu quod prius non fuerit in sensibus, afirmavam os escolásticos (não há nada no intelecto que antes não tenha estado nos sentidos). Isso significa que o conhecimento mais aprofundado e racional, também das questões de fé, costuma passar pela percepção intuitiva e sensorial. Existem estágios da fé.

A Santa Ceia, pela riqueza de sua simbologia e pelo fato de envolver diversos sentidos simultaneamente, se apresenta como um instrumento bem mais eficaz de pregação do Evangelho para o estágio de fé duma criança do que a simples palavra oral. Privá-la dessa experiência significa desprezar uma oportunidade ímpar de pregação do Evangelho às crianças.

Tese 16: Admitir crianças ao culto e à Santa Ceia significa empenhar-se em elaborar uma liturgia eucarística que respeite a criança. Torna-se necessário encontrar formas litúrgicas criativas que explorem a riqueza de símbolos e figuras contidas na Ceia. Cantos, gestos e movimentos serão ingredientes igualmente indispensáveis. Simplesmente admitir crianças às celebrações convencionais sem que estas fossem melhor direcionadas para crianças não representaria nenhum avanço. Os cultos e as celebrações eucarísticas abertos às crianças poderiam ter o caráter de cultos de família.

Tese 17: Os cultos de família com celebração da Santa Ceia aberta a crianças não têm o intuito de acabar com os cultos normais voltados especificamente aos adultos. Eles serão uma modalidade de culto ao lado de outras modalidades conhecidas e praticadas na igreja. Tais cultos seriam celebrados em espaços de tempo que a própria comunidade, suas lideranças e o(a) pastor(a) julgarem conveniente, respeitada a sua situação específica. Os cultos e as celebrações eucarísticas abertos às crianças também não visam acabar com o culto infantil/escola dominical que é uma iniciativa já consagrada em muitas comunidades. Eles visam tão somente abrir um espaço a mais para a criança, ou seja, a oportunidade de celebrar o culto e o sacramento em companhia dos seus pais.

Tese 18: O fato de se admitir e estimular a participação indiscriminada de crianças em tais cultos de família não significa que se deva dar acesso indiscriminado de crianças de qualquer idade à Santa Ceia. Esta deveria permanecer restrita às crianças que tenham manifestado o desejo de fazê-lo e que demonstrem ter uma certa compreensão do que estão fazendo. Trata-se de crianças com as quais já se dialogou a respeito da Santa Ceia, seja na família, seja no culto infantil ou em encontros especialmente organizados pela comunidade com o propósito de dialogar com os pais/responsáveis e com as crianças a respeito do assunto. A idade de 7 anos poderia ser uma marco referencial útil, tanto do ponto de vista psico-pedagógico, como também pela experiência que igrejas irmãs já têm feito com a questão.

Tese 19: A comunidade que pretende introduzir a prática de admitir crianças à Santa Ceia precisa ser cautelosa no trato da questão. Precisa-se ter consciência de que isso fere uma tradição profundamente arraigada na igreja. Haverá pessoas que verão na admissão de crianças uma bagatelização do significado da Santa Ceia. Haverá, por outro lado, compreensão por parte de outras, que há tempo sentem uma espécie de constrangimento cada vez que vêem seus filhos sendo excluídos da Eucaristia. A questão exige muito diálogo. Não é recomendável admitir crianças à Ceia sem o consentimento prévio ou mesmo à revelia dos pais/responsáveis. Só na medida em que as resistências forem sendo vencidas é que surgirá um clima propício para um diálogo salutar entre pais e filhos sobre o assunto.

Tese 20: A admissão de crianças à Santa Ceia é um tema de grande relevância ecumênica. A Igreja Ortodoxa sempre admitiu crianças, mesmo as bem pequenas, à Ceia do Senhor. A Igreja Católica Apostólica Romana têm experiência secular com a chamada Primeira Comunhão, atualmente oferecida a crianças com idade em torno de 7 a 9 anos. Igrejas protestantes da Europa e Estados Unidos estão colhendo experiências enriquecedoras nessa área há mais de 20 anos. As igrejas de tradição batista, por outro lado, têm uma posição diferente a respeito do assunto. Em todo o caso, será impossível refletir sobre a questão da participação de crianças na Eucaristia fora da perspectiva ecumênica.

Observação final:

Considerando a relevância do assunto em pauta, seria oportuno que, por recomendação do Conselho Diretor ou das Comissões Teológicas Regionais, ele fosse amplamente discutido nas comunidades e distritos da IECLB.
As teses aqui expostas não pretendem ser mais do que uma primeira aproximação ao assunto e visam fomentar o debate e a reflexão sobre a questão.

Bibliografia

BIEHL, João. Crianças participam da Santa Ceia na igreja de San Pablo. Jornal Evangélico. São Leopoldo, 19 de jan. a 8 de fev. 1986, p. 8.
BRILLA, M./ELMER, K. Im Reich Gottes ist noch Platz! Diskussionsbeitrag zum Thema Ungetaufte beim Abendmahl. Pastoraltheologie. Göttingen, 76(1):64-70, 1987.
DIVERSOS. A liturgia e as crianças. A vida em Cristo e na Igreja (Revista Bimensal de Liturgia). São Paulo, 5(28):2-19, jul/ago. 1978.
HULME, William. Pastoralpsychologische Aspekte des heiligen Abendmahls. In: RIESS, R. ed. Perspektiven der Pastoralpsychologie. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1974, p. 125-136.
JEZIOROWSKI, Jürgen. Das Fest mit den Kindern feiern. Lutherische Monatshefte. Hannover, 14(5): 258-262, maio 1975.
KARPP, Heinrich. Fides infantium und fides puerórum. Theologia Pratica. Hamburg, 3(3): 354-363, 1968. KRUSE, Martin. Abendmahlspraxis im Wandel. Evangelische Theologie. Ano 35, 1975, p. 481-497. SCHRÖER, Hennig. Abendmahl und Taufe. Ein neues Problem in Sicht. Pastoraltheologie. Göttingen, 72: 132-143, 1983.
STEIN, Albert. Die christliche Gemeinde und ihre geistigbehinderten Glieder. WPKuG (Pastoraltheologie). Göttingen, 62: 242-251, 1973.
VELKD. Abendmahl mit Kindern. Hamburg, Agentur des Rauhen Hauses, 1978.
VÖLKER, Alexander. Für euch gegeben. WPKuG (Pastoraltheologie). Göttingen, 69:479-487, 1980.
 


Autor(a): Lothar C. Hoch
Âmbito: IECLB
Título da publicação: Crianças na Ceia do Senhor / Ano: 2008
Natureza do Texto: Artigo
ID: 14000
REDE DE RECURSOS
+
Não somos nós que podemos preservar a Igreja, também não o foram os nossos ancestrais e a nossa posteridade também não o será, mas foi, é e será aquele que diz: Eu estou convosco até o fim do mundo (Mateus 28.20).
Martim Lutero
© Copyright 2024 - Todos os Direitos Reservados - IECLB - Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil - Portal Luteranos - www.luteranos.com.br