Brenno - o santo que era um gênio
José Paulo Netto
Curso superior de Teologia. Pós-graduações em Genebra e em Goettingen. Colaborador da enciclopédia Delta-Larousse. Poliglota. Tradutor. Conselheiro da Editora Vozes. Autor de ensaios publicados no país e no exterior. Secretário do Centro Ecumênico do Rio de Janeiro. Professor de História das Religiões na Universidade Federal de Juiz de Fora. Conferencista. Um do s líderes do Colégio Magister. Fundador do Centro Ecumênico de Informações. Membro do Conselho Municipal de Educação da Prefeitura Municipal de Juiz de Fora . Membro do conselho de redação da Revista Paz e Terra.
Difícil, quase impossível, perceber o portador de tão significativo currículo naquele porto-alegrense de aparência franzina, agitado, dono de uma risada gutural e característica. Em mangas de camisa, agarrado ao volante do Vemag creme-e-preto caindo aos pedaços, ele estava as três da manhã levando remédios à Vila São Vicente de Paulo. Ou limpando uma ferida pustulenta numa perna qualquer, em São Pedro. Ou, sob uma chuva torrencial, providenciando óculos para um velho em Mariano Procópio .
Mas esta era a sua vida. Da cátedra universitária ao gracejo para a visita apavorada diante do seu cão negro que só entendi a alemão, da exegese bíblica à tomada de posição política, do púlpito do seu templo às colunas de Jornal Sete — não mediava nenhuma distância. Homem plural, ele viveu unitariamente. E viveu a ação. Autêntico filho de Goethe, o Verbo era, para ele, Atividade; num sermão sobre a Ressurreição; esclareceu:”... a vida cristã — e isto significa: toda a ação cristã.
A peculiaridade de sua pregação residia na incrível capacidade que tinha, a capacidade de expressar sensilmente — usando, por vezes, de uma linguagem chã -- as mais abstratas proposições. Trocava em miúdos, e na ótica de uma ortodoxia cristã avessa a qualquer, dogmatismo, a tese que Lukacs formulara na teoria da reificação : “... o maior inimigo do homem, qual é? São as coisas permanentes, imutáveis, irreversíveis. Quando alguma coisa se torna perpétua, ela passa a possuir-nos. Somos prisioneiros dela, em vez de ser sente livre. No entanto, nada é perpétuo, nada é irreversível , nada é permanente ou i mutável (sermão de 1 /XI/70).
Humanista na mais alta acepção do termo, o seu Cristo não era um símbolo — era um exemplo existencial, uma atitude criadora : Jesus nos convida a uma coisa diferente: a não aceitarmos as circunstâncias, as situações, assim como se apresentam Jesus nos convida a lutar por todas as modificações necessárias (sermão de 18/VII /71).
Sua concepção de fé nada tinha da olímpica neutralidade do comodismo. Fé, para ele, era viver sem acomodação. Vi ver sem segurança ( sermão de 26/III/72).
Capaz de uma concepção dialética da história, ele atingiu o messianismo anti -utópico a que Brecht (n’ O Elogio da Dialética) deu forma conclusiva, mas sempre na escatologia da esperança: “Presença de Jesus é a presença do Reino de Deus. E a atividade dos cristãos, no mundo; e uma atividade típica do Reino de Deus. E é por isso — só por isso ! — que o mundo não pode continuar a ser o vale de lágrimas, o mar de sangue, e poço de injustiças que é! E o mundo certamente não continuará a ser só isso (sermão de 18/VII/71 ).
Os quatro textos publicados em boa hora neste Caderno fornecem, ainda que sob forma fragmentária, uma justa imagem dele, com sua multiplicidade de interesses, conectados somente pela profunda humanidade de sua pedagogia religiosa.
O primeiro deles é uma antiga conferência, pronunciada quando tinha pouco mais de vinte anos ( a publicação original foi feita no órgão da Faculdade de Teologia de São Leopoldo, a revista Estudos Teológicos, ano 1, IV trimestre, 1961, pp. 69/76). O estilo ainda é vacilante, mas a concepção total denuncia o teólogo que, sem submeter a arte à teologia, perscruta na manifestação estética de Bernanos as pulsações de uma consciência cristã atormentada.
O artigo sobre o Credo hoje, também redigido na maturidade ( e publicado no Suplemento CEI, no. 1, agosto/1972), retoma uma de suas grandes preocupações teóricas : como deve se instaurar a linguagem cristã no mundo contemporâneo ? Anotando exemplos de várias fontes, comentando-os argutamente, ele conclui de modo efetivamente problematizante.
O terceiro texto, o Sermão das Testemunhas, foi preparado cerca de um ano antes do desfecho fatal, e pronunciado em 26 de março de 1972 (a primeira publicação e do Suplemento CEI, No. 4, julho/1 973). É peça que resume todo o seu pensamento maduro e encerra o seu personalíssimo tom profético. Na sua dureza crítica, o sermão - um dos mais belos de que tenho notícia — abriga a marca daquela ira sagrada que animou o Cristo a expulsar os vendilhões do templo.
O último texto — copilado dos documentos: Parábolas de Jesus, série Bíblia Hoje - 11 — já o retrata pensador maduro. Apoiado na singela narração de Lucas, ele desenvolve uma reflexão intensiva que, espantosamente, articula-se no sentido da hegeliana passagem do senhor e do escravo. Na trilha da Fenomenologia do Espírito, ele resolve a aparente contradição pela vivência do pobre, assim como Hegel atribui o predicado da consciência ao escravo. Uma notável exegese, disfarçada na simplicidade de que ele era modelo.
Morto aos trinta e quatro anos, na fatídica tarde de 11 de março de 1973, ele está mais vivo do que nunca. E dele só sei dizer, como o poeta, que, legatário de sua vida, eu recuso a sua morte.
Escrevendo sobre Antero, Eça disse ser o amigo um gênio que era quase um santo. Impossível evitar a paráfrase quando recordo Brenno Amo Schumann.
Precisamente porque só entendo a santidade ao nível da pura humanidade, compreendendo a transcendência como desdobramento trágico e histórico da nossa imanência, precisamente por isso - corrido um ano após a morte de Brenno e sua terna Mariane, companheira de vida e de fim - não me é permitido separar, naquele amigo pequeno e agitado, a santidade da genialidade.