Ganha vulto nas mais diversas tradições eclesiais a reflexão em torno do batismo. De um lado, cresce a prática do rebatismo, especialmente no seio de movimentos carismáticos. De outro, avoluma-se nas igrejas históricas a percepção de que a prática batismal tem sido conduzida, muitas vezes, com uma certa displicência. Nasce daí a vontade de perscrutar a fundo o significado do batismo, em função da recuperação de uma prática batismal mais responsável. Assim como já o fez no seu número 12, com o tema Batismo e educação, Tear pretende, também desta feita, oferecer subsídios e impulsos para o aprimoramento da reflexão e da prática batismais.
Esta matéria apresenta uma colagem de textos breves, cada qual com um tema específico, expostos na forma de tese seguido de explicação. A compilação e redação final dos textos são de responsabilidade da Equipe Teor. Sempre que apropriado, indica-se explicitamente a fonte de determinada citação ou conteúdo.
Ao final da matéria trazemos a bibliografia citada.
Os assuntos arrolados a seguir representam, obviamente, apenas uma seleção do vasto mosaico temático do batismo. Ficaram de fora muitos conteúdos de ordem histórica, teológica, pastoral e litúrgica, os quais talvez venham a ser contemplados em futuros números de Tear.
A Igreja nasce do batismo.
Comunidade cristã nasce do batismo. Pessoas pertencem a uma comunidade cristã porque foram batizadas. Portanto, a Igreja nasce do batismo. Não pode haver ação mais importante na vida de uma Igreja do que uma prática abrangente e responsável do batismo. Quanto não ganharia uma Igreja se colocasse o exercício de todo o seu ministério numa perspectiva batismal?
Ao contrário do que acontece no tocante à ceia do Senhor, os evangelhos não registram uma instituição do batismo por Jesus em vida, até ser morto na cruz. Enquanto vivia, curava e pregava pelas terras da Palestina, o próprio Jesus nunca batizou. A única passagem dos evangelhos que traz uma referência relevante ao batismo é a grande comissão, uma palavra do Jesus ressurreto que encontramos apenas em Mt 28.18-20. Esse texto atesta a convicção da igreja, de que a autoridade de batizar vem do próprio Jesus. Para a prática batismal da Igreja Antiga, muito mais importante que o peso de uma passagem bíblica isolada era o fato de que o próprio Jesus
- se submeteu ao batismo de João e afirmou, com isso, cumprir toda a justiça {Mt 3.15);
- concordou que seus próprios discípulos batizassem (Jo 4.2); e
- igualou seu batismo com sua morte (Mc 10.38; Lc 12.50).
A comunidade cristã não teria embarcado tão pronta e decididamente na prática do batismo, caso não estivesse convicta de, com isso, corresponder à vontade do próprio Jesus.
As diversas passagens do Novo Testamento que falam do batismo mostram que são vários os significados vinculados a ele. Destacam-se os seguintes:
a) O perdão dos pecados (At 2.38): Atos dos Apóstolos nos conta que em Pentecostes Pedro convida ao arrependimento e ao batismo para remissão dos pecados.
b) A união com Cristo (Cl 2.12,20; Rm 6.3-5): O batismo dá a cada pessoa batizada a participação na vida e na morte de Jesus Cristo e a possibilidade da ressurreição por meio dele (Cl 3. l). É esta união com Jesus Cristo que fundamenta o sacerdócio universal de todas as pessoas crentes.
c) A recepção do Espírito Santo (Mt 3.16; At 2.38; 19. l -7): Para o cristianismo dos primeiros tempos, existe uma unidade entre a lavagem batismal e a doação do Espírito Santo.
d) A incorporação à Igreja, que é o corpo de Cristo (l Co 12.13): O batismo une a Cristo e, como tal, leva a pessoa batizada a pertencer-lhe (lCo 3.22s). Através do batismo, cristãos e cristãs são levadas à união entre si e com a Igreja de todos os tempos. Em Cristo são anuladas as diferenças entre as pessoas (Gl 3.27-29).
e) O renascimento (Tt 3.5; Jo 3.5): O batismo regenera, renova, arca o início de uma nova vida. Nessas imagens articula-se a noção de que a pessoa deixou o velho Adão para trás, tornando-se nova criatura.
A concepção de batismo no Novo Testamento é como um buque colorido. Seja de que ângulo olharmos sempre veremos uma ou outra flor mais destacada do que a outra. No entanto, nem uma nem duas sozinhas representam o todo. O importante é jamais perdermos a visão e o equilíbrio do conjunto.
Batismo e Espírito Santo.
O testemunho do Novo Testamento sobre a relação entre o batismo e o Espírito Santo é, ao mesmo tempo, bastante uniforme e um pouco desconcertante.
At 8.35-38, a história do batismo do eunuco etíope, referência bíblica importante para as origens do batismo, não menciona a imposição de mãos nem a recepção do Espírito Santo.
Todas as demais passagens mencionadas a seguir atestam uma relação clara e muito estreita entre o batismo e a recepção do Espírito Santo:
A mais eloquente é a que narra o batismo do próprio Jesus - Mc 3.13-17 -, segundo a qual o Espírito Santo se torna visível na forma de uma pomba:
Batizado Jesus, saiu logo da água, e eis que se lhe abriram os céus, e viu o Espírito de Deus descendo como pomba, vindo sobre ele. (Mt 3.16).
At 2.38 conecta arrependimento, batismo, perdão dos pecados e concessão do Espírito Santo:
Respondeu-lhes Pedro: Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para remissão dos vossos pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo. (At 2.38).
Segundo At 19. l -7, que narra a estada de Paulo em Éfeso, as pessoas haviam sido batizadas no batismo de João, mas nem sequer tinham ouvido que existe o Espírito Santo. Paulo fala-lhes, então, do batismo de Jesus. Em seguida, batiza-as e lhes impõe as mãos, de modo que recebem o Espírito Santo:
Eles, tendo ouvido isto, foram batizados em o nome do Senhor Jesus. E, impondo-lhes Paulo as mãos, veio sobre eles o Espírito Santo; e tanto falavam em línguas como profetizavam. (At 19.5-6).
At 10.44-48 indica que em Cesaréia o Espírito Santo foi derramado antes de as pessoas terem sido batizadas:
Porventura pode alguém recusar a água, para que não sejam batizados estes que, assim como nós, receberam o Espírito Santo? (At 10.47).
E, de acordo com o relato de At 8.14-17, em Samaria as pessoas já batizadas no nome do Senhor Jesus só receberam o Espírito Santo mais tarde, através de imposição das mãos:
Ouvindo os apóstolos, que estavam em Jerusalém, que Samaria recebera a palavra de Deus, enviaram-lhe Pedro e João, os quais, descendo para lá, oraram por eles para que recebessem o Espírito Santo; porquanto não havia ainda descido sobre nenhum deles, mas somente haviam sido batizados em o nome do Senhor Jesus. Então lhes impunham as mãos, e recebiam estes o Espírito Santo. (At 8.14-17).
Tt 3.4-7 chama o batismo de lavar regenerador e renovador do Espírito Santo (v. 5). 2 Co l .22; Ef l. 13-14 e 4.30 fazem referência implícita à unção no batismo como sendo um selo do Espírito Santo.
O testemunho do Novo Testamento se apresenta, portanto, um tanto diversificado em certos aspectos da relação entre batismo e Espírito Santo, proibindo-nos de jogar uma passagem contra a outra, em defesa de posições particulares a respeito dessa relação. O importante é captarmos o conjunto de sua manifestação. Dois dados gozam quase que de unanimidade completa no Novo Testamento (a única exceção é a ausência do tema em At 8.35-38): a) o batismo e a dádiva do Espírito Santo estão direta e estreitamente vinculados; b) a imposição das mãos ou o ato de selar é o gesto através do qual se expressa fisicamente a concessão do Espírito Santo às pessoas batizadas. Entre as diversas testemunhas neotestamentárias parece haver apenas um certo descompasso no tocante à sequência cronológica e ao distanciamento temporal entre os atos do batismo com água e da imposição das mãos com a concessão do Espírito Santo.
A estreita relação entre o batismo e o Espírito Santo também se articula no fato de ser o batismo a porta de entrada na Igreja. Segundo o testemunho bíblico, a Igreja é o lugar onde atua o Espírito Santo. Não se pode ingressar na Igreja sem ter parte na dádiva do Espírito Santo.
A teologia batismal de Lutero se articula sobretudo nos seguintes escritos: Um sermão sobre o santo, venerabilíssimo sacramento do batismo, o Catecismo menor e o Catecismo maior. Ela pode ser resumida nos termos que seguem.
O batismo é um mandamento de Deus, instituído por Jesus (Mt 28.19), no qual um sinal externo, a água, é conjugado com uma promessa divina, configurando-se em um dos dois verdadeiros sacramentos. Ser batizado em nome de Deus é ser batizado não por homens, mas pelo próprio Deus. Por isso, ainda que levado a efeito peias mãos do homem, não obstante é verdadeiramente obra de Deus mesmo. [...] o próprio Deus aqui empenha a sua honra e nela põe sua força e poder. (Catecismo maior, p. 475).
O significado do batismo é um morrer bem-aventurado do pecado e uma ressurreição na graça de Deus, de modo que o velho ser humano, concebido e nascido em pecado, é afogado, e um novo ser humano, nascido no graça, surge e se levanta. (Um sermão..., p. 415).
Conforme Mc 16.16 (Quem crer e for batizado será salvo), somente a fé torna a pessoa digna de receber com proveito a salutar e divina água. Pois, já que isso é oferecido e prometido aqui nas palavras na água e com a água, não pode ser recebido de outro modo senão o de crê-lo de coração. De nada aproveita sem a fé, ainda que em si mesmo é tesouro divino e inestimável. (Catecismo maior, p. 478-9) No entanto, para nós, o coisa mais importante não é se aquele que é batizado crê ou não. Porque isso não invalida o batismo. [...] Pois minha fé não faz o batismo, porém recebe o batismo. (Catecismo maior, p.481).
O batismo compromete as pessoas com uma luta diária e constante contra o pecado, pois vida cristã outra coisa não é que diário batismo, começado uma vez e sempre continuado. (Catecismo maior, p. 483). Sim, o batismo significa que o velho homem em nós, por contrição e arrependimento diários, deve ser afogado e morrer com todos os pecados e maus desejos, e, por sua vez, sair e ressurgir diariamente novo homem, que viva em justiça e pureza diante de Deus eternamente. (Catecismo menor, p. 376).
Essa luta diária e constante contra o pecado se dá ao longo de toda a vida, numa orientação escatológica, até a morte. O significado do Batismo o morrer ou afogasse do pecado não se realiza inteiramente nesta vida, até que o ser humano morra também corporalmente e se transforme completamente em pó. O Sacramento ou sinal do Batismo se realiza depressa, como vemos com nossos próprios olhos, mas o significado, o Batismo espiritual, o afogamento do pecado, dura enquanto vivemos e só é consumado na hora da morte. Então a pessoa é verdadeiramente imersa na água batismal e se realiza o significado do Batismo. Por isso, esta vida nada mais é que um incessante batizar espiritual até a morte. (Um sermão..., p.415-6).
Comenta Eugene Brand:
Interpretando esse enfoque do Batismo em seu sentido mais amplo, vemos a vida cristã como dom de Deus sempre renovado, tendo como paradigma a morte e ressurreição batismal. Enquanto vivermos dentre os tempos e nossas vidas forem uma luta entre o velho e o novo Adão, elas terão uma configuração batismal renovada diariamente pelo arrependimento e perdão.
Em termos mais práticos isso significa que, em sua luta diária contra o mal, os cristãos sempre podem recorrer a seu Batismo. O próprio Lutero praticou isso, mandando seus demônios irem ao inferno, porque ele era propriedade de Deus, pois tinha sido batizado. Assim, a vitória contra o mal é possível por causa da obra de Deus em nós; isso não depende de nossa fraca vontade. Somos batizados; somos perdoados por Deus.
Em sua concepção tanto do Batismo quanto do vida diária, a teologia luterana mostra uma compreensão realista da tensão da existência cristã e a fraqueza natural disfarçada pelo orgulho, que chamamos de natureza humana. (Brand, p.45).
Quanto à forma do batismo com água, Lutero preferia a imersão, por representar mais significativamente o afogar da pessoa pecadora. No entanto, não insistiu nessa modalidade e seus seguidores não a consideraram suficientemente importante para adotá-la. A infusão e a aspersão tornaram-se as formas comuns nas igrejas luteranas.
O batismo não marca o ponto de chegada, mas o início de uma vivência cristã, de um diário e constante apropriar-se de sua promessa, até a morte. Ninguém discerniu com tanta profundidade a relação entre batismo e vivência cristã como Martim Lutero.
Confira, a respeito, duas citações de Eugene Brand:
O Batismo é como o nascimento natural: é básico para tudo. (p.45).
No momento do nascimento somos apenas um feixe de potencialidades que continuam a se desenvolver e a desabrochar ao longo da vida. (p.80).
O fato de que o batismo marca o início de toda uma existência de fé das pessoas batizadas exige da comunidade cristã a responsabilidade especial de ajudá-las e dar-lhes condições para viverem o seu batismo durante toda a sua vida, para o crescimento na fé, na esperança e no amor.
- Em todos os ofícios casuais deveria ser evidenciado que a verdadeira razão para a celebração de tais atos é batismal. A comunidade ministra ofícios casuais porque tem uma responsabilidade batismal para com as pessoas. E as pessoas envolvidas (por exemplo, nubentes e familiares, pessoas ordenadas ou instaladas em ministérios e funções especiais, pessoas falecidas e enlutadas) estão sendo carregadas em oração pela comunidade através dessas passagens da vida, porque são pessoas que já foram mergulhadas na morte e ressurreição de Cristo, no batismo. Ofícios casuais são atos de eminente significado batismal. Tal casal está recebendo a bênção matrimonial porque se trata de pessoas batizadas. Tal pessoa está sendo ordenada ou instalada porque é uma pessoa batizada. Tal pessoa está sendo sepultada porque é uma pessoa batizada e a família enlutada está sendo consolada porque se compõe de pessoas batizadas.
[No rito de sepultamento da Igreja Antiga] o corpo era ungido com óleo, assim como o fora no batismo; o corpo recebia o ósculo da paz, da mesma maneira como recebera o ósculo da paz quando de sua integração à família de Deus; a pessoa era referida pelo nome, do mesmo modo como o fora no batismo; e sobre o esquife era lançada terra por três vezes, porque assim se repetia o número de vezes em que fora lavada no batismo. Assim, os cristãos reafirmavam a realidade de que a pessoa pertencia à comunhão de Deus e igualmente à comunhão da grande família de Deus, realidade que não é ameaçada pela morte. (Pietzsch; Rieff, p.22)
- Persignar-se com o sinal da cruz é um gesto que lembra o sinal da cruz com que fomos selados no batismo.
- A comunidade reunida em culto pode e deve ser lembrada constante m ente de que está reunida porque é uma comunidade de pessoas batizadas.
- A comunidade pode celebrar cultos de batismo, em datas especiais ao longo do ano, nos quais a liturgia de batismo é inserida num culto mais amplo, no qual toda a comunidade celebra uma recordação do batismo.
- Altamente significativa é a celebração da recordação do batismo na Vigília Pascal.
Culto de recordação do batismo.
As pessoas batizadas lutam contra o mal e enfrentam sua inclinação egoísta a cada dia de suas vidas. Como diz Paulo em Rm 7.14-25: Porque nem mesmo compreendo o meu próprio modo de agir, pois não faço o que prefiro, e, sim, o que detesto. [..,] Porque não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero, esse faço. [„.] Porque, no tocante ao homem interior, tenho prazer na lei de Deus; mas vejo nos meus membros outra lei que, guerreando contra a lei da minha mente, me faz prisioneiro da lei do pecado que está nos meus membros. [...] Nessa tensão entre a tendência para o bem e para o mal, característica da existência cristã, é um enorme consolo e fortalecimento ser recordado constantemente do próprio batismo. Como escreveu Lutero: É preciso recordar sempre o Batismo; necessário se faz despertar e fomentar continuamente a fé. (Do cativeiro..., p.377).
Na Igreja Antiga, as pessoas cristãs eram, quase que ao natural, relembradas constantemente do seu batismo. Isto porque as comunidades acompanhavam candidatas e candidatos ao batismo de maneiras diversas e até intensas durante o período de preparação, que podia ser bastante longo: pessoas da comunidade participavam de jejuns com candidatas e candidatos; madrinhas, padrinhos e outras pessoas participavam de certas fases da instrução e acompanhavam afilhadas e afilhados em diversos passos de sua iniciação; parte da instrução pré-batismal podia acontecer dentro do próprio culto, envolvendo, assim, toda a comunidade. Após o ato batismal, a comunidade se envolvia na recepção às pessoas batizadas e na partilha do gesto da paz com elas. Enfim, havia inúmeras e constantes oportunidades para que as pessoas, membros de uma comunidade, fossem recordadas do seu próprio batismo.
Ainda na Igreja Antiga, encontramos até mesmo na Primeira Apologia de Justino, o Mártir (Roma, cerca de 150-155), uma referência clara a um ato de recordação do batismo: Nós, depois disso [de terem recebido o batismo e a eucaristia, após terem sido iniciados], recordamos constantemente para o futuro entre nós estas coisas. (Justino, l Apologia 67. l).
Baseadas nessas e em outras antiquíssimas experiências da família cristã, diversas igrejas estão hoje recuperando a celebração de cultos de recordação do batismo. A ordem de um culto de recordação do batismo contém, por via de regra, não necessariamente nesta sequência, os seguintes elementos litúrgicos: leitura e explicação da Palavra; uma anamnese batismal; uma grande oração de ação de graças pela dádiva de Deus no batismo; uma renovada renúncia ao mal e uma renovada profissão de fé. Pode ser incluído algum rito com água (por exemplo, persignar-se com água da fonte batismal), um rito com vela batismal e uma oração da pessoa oficiante com imposição das mãos individual. Um culto de recordação do batismo desemboca naturalmente na celebração da ceia do Senhor.
A ocasião por excelência para um culto de recordação do batismo é a Vigília Pascal. Outras datas especiais são Pentecostes e Epifania ou ocasiões significativas para a comunidade local. Caso uma comunidade chegue ao estágio desejável de reunir seus batizados em algumas poucas datas especiais por ano, estas seriam ocasiões privilegiadas para combinar os batizados com cultos de recordação do batismo de toda a comunidade.
O culto de recordação do batismo de toda a comunidade é a maneira mais adequada de se fazer culminar e concluir programas especiais de ensino batismal, como o atual ensino confirmatório. Nesse caso, em vez de um culto de confirmação nos moldes tradicionais teremos um culto de recordação do batismo com a participação de confirmandas, confirmandos e toda a comunidade. O grupo que participou do programa de instrução cristã poderá engajar-se ativamente no preparo e na realização desse culto.
Reducionismo sacramental.
Ao escrever sobre a abordagem da Reforma, Eugene Brand comenta este que é um dos mais marcantes fenómenos na história da liturgia, o reducionismo ou a minimização sacramental (Brand, p.48-50):
Georg Kretschmar opina que [...] existe um motivo teológico para a compleição pálida de nossos ritos, um dos quais remonta ao alto escolasticismo do período anterior à Reforma. Em vez de serem vistas como partes de um todo complexo, como nas igrejas orientais, cerimónias como exorcismo, renúncia a Satanás, crisma, etc. eram vistas como anteriores ou posteriores ao Batismo. Até mesmo o método de aplicar a água era considerado como de pouca importância.
Assim o Batismo ficou teologicamente cada vez mais limitado ao ato de lavar com água. O sinal sacramental, ensinou Tomás de Aquino, é a aplicação da água; não é a água em si (Summa Theologica III, 66,1). Os motivos que embasam esta visão estreita são muitos, mas um dos mais influentes é a paixão ocidental por definições e a visão predominantemente jurídica dos sacramentos, o que desembocou na preocupação pela validez. Esses motivos, por sua vez, frequentemente eram determinados pelo caso extremo (sempre também o mais fascinante).
O raciocínio era o seguinte: Se num caso de emergência o Batismo consiste somente na fórmula trinitária e na lavagem, e se este Batismo é válido (Alexandre III, século XII), então o Batismo é a fórmula trinitária e a lavagem. (A afirmação contida no Catecismo Menor de Lutero O batismo não é apenas água simples, mas é a água compreendida no mandamento divino e ligada à palavra de Deus.- teria sido aprovada.) O argumento pressupõe que a verdade se encontra de fato no caso extremo. O resultado, sem dúvida, é que o ensino da Igreja foi fundamentado na exceção e não na regra. A aplicação dessa teologia ao rito batismal significava que todas as outras cerimónias, fora o derramamento da água, só servem para conferir mais solenidade ao ato. Tomás de Aquino distingue entre necessitas e solemnitas (Summa Theologica 111,66,10).
Portanto, quando os reformadores, por múltiplos motivos, eliminaram ou reduziram grandemente os exorcismos, unções, etc., levaram às últimas consequências uma tendência teológica já estabelecida.
Kretschmar pensa que, por causa dessa evolução no Ocidente, o verdadeiro conceito neotestamentário do Batismo sobreviveu melhor no Ocidente do que no Oriente, que tinha uma visão holista mais ampla. A visão ocidental refletia com clareza a convicção do Novo Testamento de que a fronteira entre Igreja e mundo está marcada pelo Batismo e pela fé. A redução ocidental do rito impede que outros componentes rituais obscureçam essa verdade básica mediante a interposição de inscrição ao catecumenato, obtenção da pureza ritual, submissão à autoridade da Igreja, etc. Uma vitória da Reforma a favor do Novo Testamento preparada pelo alto escolasticismo!
Contudo, antes que os aplausos fiquem por demais calorosos. Kretschmar conclui seu estudo com uma advertência. Aponta para os perigos que o reducionismo litúrgico ocidental trouxe consigo, especialmente o perigo de redução até o ponto de perda de sentido:
Contudo, mais importante do que qualquer outra coisa, essa minimização está em perigo de deixar entrever muito pouco da base e do promessa do Batismo. Todo simbolismo é erradicado e com razão, porque por natureza o Batismo não é um ato simbólico; sem razão, porque com isso o Batismo se torna um ritual despojado, ininteligível. Em nenhuma liturgia batismal do tradição ocidental o dom do Batismo - a apropriação por parte do balizando da ação salvífica de Cristo - é desenvolvido tão ampla e jubilosamente como nos ritos orientais. A teologia ocidental bem que f>ode ter-se agarrado firmemente a tudo que deveríamos colocar aqui - na sua maior pane reduzido a palavras-chave do tipo: graça santificante ou perdão dos pecados - mas isso já não mais imprime sua marca no oficio do Batismo. E isso pode ter contribuído para a estranheza em relação ao Batismo que encontramos com tanta frequência em nossas comunidades e também em nosso teologia. É exatamente a tradição da igreja latina que, contudo, nos convida (exige) a ver o rito do Batismo não simplesmente como um fragmento venerável ou mesmo sagrado da tradição, mas também como uma tarefa proposto o nós.
No medida em que essa advertência está em mira - e podemos concordar com e/a sem precisar confirmar a argumentação de Kretschmar - isso nos Incentiva a reexaminar nossos ritos batismais e o princípio reducionista que está por trás dos mesmos. Da perspectiva pastoral, o próprio processo de livrar-se da herança religiosa de séculos pode ter resultado numa prática batismal da Reforma que é liturgicamente um desastre, que não pode desempenhar adequadamente sua função religiosa necessária.
Esse ponto de vista, que pode ter sido descoberto de várias maneiras, levou pessoas a concluir: Para que o Batismo possa recobrar novamente sua plena função na vida da Igreja e do cristão individual, esse rito não deve ser herdeiro do reducionismo da Reforma. Ao mesmo tempo, sem dúvida, devem ser evitadas as armadilhas da evolução da Igreja Pós-Primitiva e da Pré-Reforma. O reducionismo foi usado como remédio, mas, pelo menos hoje em dia, é considerado falho. Seria pastoralmente irresponsável perpetuá-lo em nome da adesão aos princípios da Reforma.
A irresponsabilidade pastoral é a consequência por que os pastores devem levar a sério a função religiosa do rito. Na medida em que ele não mais expressa a passagem de fora da comunhão para dentro dela como sendo um passo de tremenda importância; na medida em que não fornece um evento-base a partir do qual pode ser derivado todo o complexo de conceitos batismais; e na medida em que não é obviamente uma ação da Igreja toda, o rito trai aqueles que são balizados, não importa quão correio ou quão enraizado o mesmo possa estar na liturgia precedente. Para ter êxito, o ato ritual deve não apenas comunicar conceitualmente uma teologia adequada, mas deve também moldar o complexo de gestos, de maneiras que aquilo que é dito seja experimentado sacramenta/mente. Se não o for, o valor liminar de um rito de passagem estará perdido, e o Batismo será por isso debilitado.
Os teólogos não deveriam e os pastores não podem responder a isso, contrapondo validez objetiva e experiência. As igrejas da Reforma devem perder sua fobia frente à experiência. Se uma celebração sacramenta/ não for experimentada de uma forma religiosamente proveitosa, deixou de cumprir o propósito de Deus, mesmo que o sacramento será válido. Pelo fato de sermos humanos, devemos levar plenamente a sério a tarefa ritual.
Concluímos com considerações de Eugene Brand a respeito de uma prática batismal unificada (Brand, p. 58-60):
Há um só Batismo. Se é impróprio separar batismo de água e batismo no Espírito Santo, não é igualmente questionável separar batismo infantil e batismo de adultos? A insistência do Novo Testamento em um só Batismo já foi repetida. Também constatamos que nossos ritos atuais sugerem pelo menos dois batismos; um normal e próprio para crianças e um rito de adultos para os religiosamente desprivilegiados. Para o adulto isso pode tornar embaraçosa a ocasião batismal. Pode induzir a comunidade a assumir uma atitude de tolerância condescendente. Para ambas as partes, contudo, deveria ser um momento de alegria e gratidão.
O que necessitamos é um rito de Batismo suficientemente flexível para ser usado com qualquer pessoa. Crianças não podem expressar o desejo de serem balizadas ou responder a perguntas de renúncia e profissão de fé. Os adultos o podem. Portanto, o rito deve-se adaptar a essas possibilidades. Fazemos isso a todo momento em outras circunstâncias: Se você convida uma família para o jantar, não fica ofendido porque as crianças nem confirmam o convite, nem agradecem pela noitada. As crianças são bem-vindas porque pertencem à família convidada, e participam de acordo com seu nível de maturidade.
Se a Igreja assume o risco de balizar crianças nascidas em famílias-membros da comunidade [...], então o faz, afirmando a natureza familiar ou corporativa do cristianismo. A tendência batista de conceituar o cristianismo individualmente em vez de corporativamente leva quase que inevitavelmente à recusa de batismos infantis. Colocando-se a ênfase na graça - a ação graciosa de Deus - e no fator educativo da vida em comunhão entre os crentes, o batismo infantil será um risco que vale a pena correr. Se, contudo, a ênfase é posta na decisão de fé do indivíduo, apenas ratificada no Batismo, então o batismo infantil fica claramente fora de cogitação.
Se o perigo na prática do batismo infantil consiste numa visão mecanicista do sacramento, um outro perigo representam aqueles grupos que rejeitam o batismo infantil, que ameaçam imprimir uma compreensão individualista ao cristianismo, colocando a decisão pessoal como questão crucial. Esses não são motivos convincentes para abandonar o batismo infantil. Contudo, devemos praticá-lo de forma muito mais seletiva. Por outro lado, não se devem coagir de nenhuma maneira pessoas que não foram balizadas na infância.
A visão corporativa do cristianismo traça uma nítida distinção entre o batismo infantil e o de adultos. Do adulto a Igreja exige, com razão, que demonstre sua disposição de ser balizado e uma confissão de fé. Na maioria dos casos, essa fé não passa ainda de uma sombra daquilo que pode chegar a ser. A experiência e o conhecimento cristãos acontecem, em geral, do outro lado da pia batismal. Isso é um falo, não uma excusa para programas irresponsáveis de instrução batismal. Se isso for verdade, então a situação da criança cuja resposta em fé ocorre totalmente depois do Batismo não é muito diferente da do balizando adulto.
A confissão é exigida dos adultos para que seu início na fé possa ser um passo assumido responsavelmente. A confissão de adultos não é o pré-requisito para o alo gratuito de Deus.
Um rito de Batismo aplicável a todas as ocasiões é o testemunho litúrgico daquele um Batismo como o concebe a teologia cristã. Na maioria das igrejas os batizandos serão, pelo menos atualmente, sobretudo crianças. Mas onde se introduz a prática de fixar datas para o Batismo de acordo com o calendário da Igreja, não será tão improvável que haja batizandos das mais diversas idades sendo balizados juntos. Isso ajudará a combater a síndrome do ‘batismo apenas para crianças’.
As pessoas argumentam que, por ser o batismo infantil um caso especial, deveria ser estruturado um rito à parte para crianças. Esse rito deveria omitir a renúncia a Satanás e a profissão de fé, colocando sua ênfase na ação graciosa de Deus (graça precedente,) e na necessidade do crescimento pós-batismal na comunidade de fé. Não seria isso uma expressão mais clara da decisão da Igreja de balizar crianças? Não seria também um maravilhoso testemunho da primazia da graça de Deus? Sim e não.
Esse rito, se bem estruturado, certamente testemunharia a graça precedente. Também resolveria o problema da renúncia e confissão, simplesmente eliminando-as. Isso cheira um pouco a tendência reducionista. Contudo, se esse rito fosse aquilo que a comunidade normalmente conhece, dois aspectos cruciais do BAPTISMA1 seriam eliminados: o transpor do limiar entre uma vida e outra e a ênfase clássica do Novo Testamento na fé. Em bases meramente estatísticas, esse rito daria a impressão de que o batismo infantil não constitui uma exceção. Mas a Igreja deve deixar claro que, mesmo que, em certas comunidades, haja uma proporção de cinquenta crianças balizadas para cada adulto batizado, as cinquenta crianças são exceções tanto teologicamente quanto ritualmente.
Balizar crianças num rito designado [sic] a adultos pode ser um testemunho maior da primazia da graça do que um rito especial para crianças. Ao proceder assim, a Igreja ousadamente pressupõe que, por causa do cativante poder do Deus gracioso, educação cristã resultará numa fé madura. A Igreja confia tão firmemente nesta graça que faz para certas crianças aquilo que normalmente é reservado para aqueles que são capazes de responder por si mesmos.
A manutenção do modelo clássico, mesmo que lenha que ser levemente modificado na maioria das vezes, expõe o pleno alcance do BAPTISMA aos olhos da comunidade. O Batismo, antes de mais nada, não é simplesmente algo que acontece com o balizando, mas é uma celebração de ioda a comunidade. A situação do balizando, então, não é a única questão a ser examinada.
A insistência na prática do batismo infantil tem sido válida, mesmo quando as igrejas abusaram dele, aplicando-o de uma maneira demasiadamente indiscriminada. Contudo, a defesa usual desta prática tem sido altamente duvidosa. Anteriormente apontamos para uma defesa teologicamente adequada que evita a cilada de buscar provas baseadas em citações bíblicas. A discussão deste capítulo é o lado litúrgico desta moeda. Uma prática batismal unificada deveria resguardar-nos de falsas implicações rituais referentes ao batismo infantil.
1- BAPTISMA, o termo que o Novo Testamento usa para designar o Batismo, refere-se a algo mais do que um banho ritual. Refere-se ao sentido complexo, integral, concentrado no ato litúrgico. (Brand, p. 22).
Bibliografia citada:
BRAKEMEIER, Gottfried. Batismo - perdão dos pecados - vida em Cristo. São Leopoldo: CRL, 2004. (texto avulso).
BRAND, Eugene. Batismo - uma perspectiva pastoral. São Leopoldo: Sinodal, 1982.
JUSTINO, São.Textos catequético-litúrgicos de São Justino Mártir (Apologia l e Diálogo com o judeu Trifão). In: ROMA, Hipólito de. Tradição Apostólica de Hipólito de Roma: liturgia e catequese em Roma no séc. III. Petrópolis: Vozes, 1971. p. 69-87. (Fontes de catequese, 4).
LUTERO, Martinho. Do cativeiro babilônico da igreja. In: ——. Obras Selecionadas: O Programa da Reforma: Escritos de 1520. Vol. 2. São Leopoldo/Porto Alegre: Sinodal/Concórdia, 1989. p. 341-424.
——. Catecismo menor. In: Livro de Concórdia: As confissões da Igreja Evangélica Luterana. S.ed. São Leopoldo/Porto Alegre: Sinodal/ Concórdia, 1980. p. 361 -384.
——. Catecismo maior. In: Livro de Concórdia: As confissões da Igreja Evangélica Luterana. S.ed. São Leopoldo/Porto Alegre: Sinodal/ Concórdia, 1980. p. 385-496.
——. Um sermão sobre o santo, venerabilíssimo sacramento do batismo. In: ——. Obras Selecionadas: Os primórdios: Escritos de 1517 a 1519. Vol. I.São Leopoldo/Porto Alegre: Sinodal/Concórdia, 1987. p. 413-424.
PIETZSCH, Paulo Gerhard; RIEFF, Sissi Georg. Dimensão bíblico-teológico-confessional. In: KIRST, Nelson (Coord.) Guio de orientação para a prática do Batismo. São Leopoldo: CRL, 2001. (texto avulso), p. 15-23.
Fontes de fotos e ilustrações deste número:
Capa A . AUGSBURG FORTRESS,EcclesiasticalArts 1994-1995,Minneapolis:Augsburg Fortress,s.d.,p. 17.
Capa B e 19.Cortesia de Maria Helena Ost.
1. Cortesia de Paulo Moro.
2 e 3.Cortesia de Adenor Saatkamp.
4 e 16. AUGSBURG FORTRESS, Ecclesiastical Arts 1994-1995, Minneapolis Augsburg Fortress, s.d., p. 4.
5. Afresco de Otto Arnold, restaurado por W.L. Berner, cortesia de Romeu Ruben Martini.
6,9,11 e 15. Helena RAMOS; Walter GRESS, Símbolos cristãos, Porto Alegre, 1999, (TeoClips, l),
p. 9,21,21, 37. 7, 12, 17 e 18. Recolhidas pelo CRL.
8, l0, 13. Walter HUFFMAN; Anita S. STAUFFER, Where We Worship. Minneapolis/ Philadelphia/St. Louis: Augsburg/LCA/Concordia, 1987,
p. 20, 37, 39.
17. Arquivo da EST.
Frases em destaque:
A prática do batismo se fundamenta no batismo de Jesus e na prática da primeira comunidade cristã, registrada na Escritura.
O principal marco de referência para a prática batismal da Igreja cristã é o Novo Testamento.
Um marco de referência importante para a prática batismal de igrejas oriundas da Reforma é a prática batismal do próprio Lutero.
O batismo não é o ponto de chegada, mas o ponto de partida de uma vivência cristã que se estende pela vida inteira.
O constante crescimento numa vivência cristã a partir do batismo pode ser sustentado por diversas expressões litúrgicas.
Um só rito batismal para adultos e crianças.