Atos 7.55-60 - 5° Domingo da Páscoa - 07/05/2023

Auxílio Homilético

07/05/2023

 

Prédica: Atos 7.55-60
Leituras: João 14.1-14 e 1 Pedro 2.2-10
Autoria: Renato Küntzer
Data Litúrgica: 5° Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 07/05/2023
Proclamar Libertação - Volume: XLVII

 

O Espírito Santo não se cala diante dos ídolos da morte

1. Introdução

A comunidade do Espírito é uma comunidade envolvida em conflitos. São várias as disputas que envolvem a vivência da fé, o testemunho e a pregação pública do Evangelho.

O livro de Atos dos Apóstolos foi escrito entre os anos 80 e 90, tendo como conteúdo o período apostólico (anos 30 a 70). O autor, reconhecido pela tradição como Lucas, o mesmo autor do terceiro evangelho, trata de reconstruir um período de 40 anos, desde a ressurreição de Jesus até a formação institucional das igrejas. É o tempo de atuação do movimento de Jesus, animado pelo Espírito, formado por seguidoras e seguidores de Jesus oriundos das comunidades domésticas. Há três espaços que marcam esse período: o caminho, a casa e a mesa.

Fundamental para os relatos de Atos é a ação do Espírito Santo, presente na atuação das seguidoras e seguidores de Jesus e que serão minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e Samaria até os confins da terra (1.6-8). Esse Espírito se manifestou em homens e mulheres que continuaram o caminho, tendo como espaço a pequena comunidade doméstica e a mesa. É nesse tempo e lugar em que encontramos o nosso texto.

Para o autor do livro de Atos, há questões fundamentais que impactam a vida das comunidades. A primeira é: Senhor, é agora que vais restaurar o Reino de Israel? (At 1.6). É a pergunta dirigida a Jesus ressurreto. Essa pergunta esteve presente na vida das comunidades e acompanhou o movimento de Jesus, no mínimo, por 40 anos. A resposta de Atos é que o Reino não surgirá inesperada e surpreendentemente de uma hora para a outra. Ele será resultado do testemunho dado, desde Jerusalém até os confins do mundo.

A segunda questão é: Mas o Espírito Santo descerá sobre vocês, e dele receberão forças para serem minhas testemunhas [...] (At 1.8). O testemunho se dá no conflito com as autoridades que procuravam calar o testemunho de que Jesus Cristo, de Nazaré, aquele que vocês crucificaram e que Deus ressuscitou dos mortos, é pelo seu nome [...] e não existe outro nome dado aos homens, pelo qual possamos ser salvos (At 4.10-12). Estão colocados frente a frente, de um lado, o projeto de Deus, que tem por base a ressurreição de Jesus de Nazaré e a presença do Espírito que motiva o caminho desse testemunho cristão, do outro lado, o projeto humano, presente e enraizado na sociedade e na religião, identificado pelo poder, pela repressão e violência. É essencialmente um período de conflitos e confrontos. Nem mesmo as comunidades domésticas estavam livres de queixas, atitudes de exclusão e preconceito (At 6.1-2). Mesmo assim, afirma o autor: a Palavra do Senhor se espalhava e o número dos discípulos crescia (At 6.7).

2. Exegese

Estêvão é liderança cristã que se forma no contexto dos conflitos internos da comunidade cristã. Ele é escolhido, em conjunto com outros seis, como homens de boa fama, cheios de Espírito e sabedoria para atender as necessidades de uma parcela pobre e excluída na comunidade: as viúvas dos cristãos helenistas. Elas eram deixadas de lado no atendimento de suas necessidades diárias, diferente das viúvas de judeus cristãos. Não era descuido, mas um conflito envolvendo questões de pureza ritual. Os cristãos judeus tinham repugnância em aceitar às suas mesas as viúvas impuras, compartilhando com elas a fração do pão. Para atendê-las, foram instituídos sete diáconos a pedido dos doze apóstolos, que assim poderiam continuar exclusivamente na tarefa de anunciar a palavra de Deus. Dentre os sete estava Estêvão, cheio de graça e poder, que fazia grandes prodígios e sinais no meio do povo. Era inteligente e versado nas Escrituras.

Estêvão era judeu-cristão helenista e fazia parte do grupo dos sete, que se identificava como um grupo carismático de pregadores itinerantes. A existência desse grupo, crítico à religião tradicional judaica, provocou a perseguição por parte dos religiosos judeus, que viam questionadas a sua identidade de fé e a tradição religiosa. Assim chegamos ao testemunho público de Estêvão diante do Sinédrio, sua condenação e seu martírio, narrados em Atos 6.8 – 8.1a.

A oposição a Estêvão surge nas sinagogas de língua grega. Havia várias delas em Jerusalém. O conflito era com os “membros da sinagoga dos Libertos”, formada de estrangeiros convertidos ao judaísmo (cireneus, alexandrinos, da Cilícia e da Ásia). Não conseguindo lidar com Estêvão, subornam alguns indivíduos que testemunham contra ele, afirmando que blasfemava contra Moisés e contra Deus, contra o Templo e contra a Lei. Ouvimos que ele dizia que Jesus de Nazaré destruirá esse lugar e subverterá os costumes que Moisés nos transmitiu (At 6.14).

Segue um longo discurso (At 7.1-53), no qual Estêvão se defende. Na sua defesa, acusa o povo de Israel liberto de resistir contra Moisés, pelo que Deus os condena (At 7.42b-43). Depois acusa Salomão de desobediência a Deus por construir o Templo e argumenta com as palavras de Deus em oposição ao Templo. O discurso de Estêvão exprime o modelo comunitário desejado por Lucas. Não há necessidade do Templo e nem das leis de pureza que dificultam a comunhão. Há uma defesa da comunidade helenista que se mostra mais fiel a Moisés e na condição de verdadeiros seguidores de Moisés. E isso provoca os conflitos com as autoridades das sinagogas, especialmente os sacerdotes.

O texto de Atos 7.54-60

Acrescentei ao texto proposto o v. 54. Ele colabora para percebermos a situação de contradição que há entre os dois projetos (das autoridades da sinagoga dos Libertos e da comunidade dos Sete) que estão em jogo quanto à expectativa do Reino de Deus.

Com Estêvão, o clima esquenta. Estêvão, repleto do Espírito Santo, afirma que a salvação vem por Jesus, o Filho do Homem. Não é a primeira vez que palavras que apontam para Jesus enfurecem os membros do sinédrio (At 5.33). Sua fúria e ranger dos dentes são uma reação aos argumentos usados por Estêvão ao proferir a sua pregação. A pregação de Estêvão provoca fúria e raiva nos sacerdotes, doutores da Lei e fariseus. Estão a serviço de um projeto de morte que manipula o nome de Deus. É ilegítimo, violento e excludente.

Eles ficaram enfurecidos e rangeram os dentes (v. 54). Repleto do Espírito Santo, Estêvão olhou para o céu viu a glória de Deus e Jesus de pé à direita de Deus (v. 55).

Se antes o Espírito Santo havia se manifestado em Pedro (At 4.8), agora ele estava com Estêvão, conferindo autoridade à sua palavra e ao seu testemunho. O dom do Espírito Santo capacita Estêvão a ver a glória de Deus. O autor do texto recorre a uma expressão semítica (Ez 9.3; 10.19), comum na experiencia visionária dos profetas, que os coloca diante da presença majestosa de Javé. Assim descreve Lucas a visão de Estêvão. Tudo o que o Sinédrio e a religiosidade judaica diziam representar e que lhes dava poder está com Estêvão e dá autoridade à sua pregação e ao seu testemunho em favor de Jesus, o Filho do Homem. E a visão do Filho do Homem em pé do lado direito de Deus é a confirmação e a defesa da veracidade do testemunho de Estêvão.

Estou vendo os céus abertos e o Filho do Homem de pé a direita de Deus (v. 56). Pela terminologia, esse versículo é teologia própria de Lucas: theōrein – ver (usado 21 vezes); dianoigein – abertos (usado oito vezes) e o plural ouranoi – céus (como em 2.34). A visão que Estêvão contempla recorda Lucas 22.69, onde as palavras de Jesus são uma referência ao Filho do Homem (Dn 7.13) e desse estar sentado à minha direita (Sl 110.1).

Há aqui o testemunho de uma cristologia antiga do Filho do Homem, com a qual Jesus se identificou durante sua vida. Estêvão testemunha essa tradição em sua fala profética e carismática: a visão dos céus abertos, do Filho do Homem de pé é anúncio de que o Reino de Deus está presente (At 1.6). Está presente onde a ação de Jesus é continuada. Juntamente com o Reino de Deus, o julgamento do Filho do Homem se realiza na história, pois dele depende a salvação de cada pessoa. Serão salvos aqueles que, como Jesus, fazem da própria vida dom para as outras pessoas. Estêvão vê Jesus ressuscitado, exaltado e numa posição de honra junto a Deus.

É a visão profética, carismática que agride os ouvintes de Estêvão. Ela é vista como uma blasfêmia contra Deus. A reação contra Estêvão é narrada pelo texto como de raiva descontrolada e de extrema violência: [...] deram fortes gritos, taparam os ouvidos, avançaram todos juntos contra Estêvão [...] arrastaram-no para fora da cidade e começaram a apedrejá-lo (v. 57-58).

A execução não poderia se dar dentro dos limites da cidade (Lv 24.11-13; Nm 15.35). O fato de o arrastarem para fora da cidade aponta para uma ação desautorizada, um linchamento. Não há nenhum julgamento ou veredito formal contra Estêvão. O apedrejamento era o castigo sofrido pelos profetas.

Atiravam pedras em Estêvão, que orava: Senhor Jesus, recebe o meu espírito. Depois dobrou os joelhos e gritou forte: Senhor, não os condenes por este pecado. E, ao dizer isso, adormeceu (v. 59-60).

Assim como Jesus entregou o seu espírito ao Pai (Lc 23.46), assim Estêvão entrega o seu espírito ao Senhor Jesus. A oração dirige-se a Jesus, o que mostra a confiança para recebê-lo. Impressiona como a execução de Estêvão se assemelha à execução de Jesus. Estêvão invoca: Senhor Jesus, recebe o meu espírito (v. 59). Depois dobra os joelhos e grita forte: Senhor, não os condenes por este pecado. E ao dizer isso adormeceu (v. 60). Suas últimas palavras são as palavras proferidas por Jesus (Lc 23.34,46). Antes da morte, Estêvão, a exemplo de Cristo, entrega o Espírito e pede o perdão para seus algozes. No martírio Estêvão vê Jesus, vê Deus. Isso lhe dá uma morte suave, adormecendo, sendo fiel até o fim de sua vida. Sua morte servirá de exemplo para tantas outras pessoas martirizadas, que foram testemunhas até os confins da terra. Especialmente para um jovem de nome Saulo (v. 58b; 8.1).

3. Meditação

Em seguimento ao seu Mestre e Senhor, Estêvão foi testemunha, vitimado por violência e sofrimento até a morte pela verdade de uma causa, o Evangelho de Jesus de Nazaré. Vivenciou as palavras de Jesus: Bem aventurados são vocês quando os odiarem, os rejeitarem, os insultarem e os amaldiçoarem por causa do Filho do Homem (Lc 6.22). A morte de Estêvão, o primeiro mártir da fé cristã, se assemelha à morte de Jesus. Seguiu o seu Mestre. Foi fiel ao seu chamado e discipulado.

A perseguição e o martírio tornaram-se uma característica dos discípulos de Jesus (Lc 21.12-18). Seus seguidores e suas seguidoras serão perseguidos, presos, torturados, julgados e até mortos por continuarem a ação de Jesus de Nazaré. Desde os tempos antigos, os cristãos conheceram o martírio. Lucas, o autor de Atos, justifica o testemunho segundo a promessa de Jesus: mas o Espírito Santo descerá sobre vocês, e dele receberão forças para serem minhas testemunhas [...] (At 1.8). O testemunho de Estêvão, cheio de graça, poder, conhecimento e carisma, é prova de que está cheio do Espírito Santo. Repleto do Espírito Santo, olhou e viu a glória de Deus, o céu aberto e o Filho do Homem de pé à direita de Deus. Diante da ameaça à sua vida, o Espírito expõe claramente a contradição com os seus oponentes. Estêvão vê a glória de Deus e seus opositores veem motivos para o ódio, a raiva e a violência.

A presença do Espírito Santo de Deus não se identifica com a violência, a exclusão, a injustiça e a indiferença. Diante de qualquer uma dessas situações, o Espírito Santo age expondo os conflitos, sejam religiosos, sociais ou étnicos. O martírio é o testemunho com a própria vida do amor de Deus, que se estende às pessoas e não aceita as injustiças sociais e as opressões sofridas pelo povo de Deus. Ser cristão é, além de professar a fé em Cristo, lutar contra a injustiça social e religiosidades legalistas e excludentes.

Destaco uma afirmação do padre Luiz Espinal: “O povo não tem vocação de mártir. Quando o povo cai em combate, ele o faz simplesmente [...] não é necessário dar a vida morrendo, mas trabalhando [...] se um dia lhes toca dar a vida, eles o farão com a simplicidade de quem cumpre mais uma tarefa e sem gestos melodramáticos”. O padre Luiz Espinal foi assassinado pouco depois de escrever essas linhas, no dia 21 de março de 1980, em La Paz, Bolívia.

Nesses dias em que preparei este estudo, ocorreram os assassinatos do sertanista brasileiro Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips, como um eco do trágico grito de socorro da floresta amazônica e de seus habitantes originais. Duas vidas em defesa de vidas coletivas, sob a fúria e o ranger de dentes de garimpeiros invasores, pescadores ilegais, narcotraficantes e missionários religiosos, inescrupulosos defensores de um deus da morte. A preservação da Terra Indígena Vale do Javari só poderia ser feita com a exposição para todo o mundo do drama humanitário e ambiental ali presentes. Ali se trava uma luta de vida ou morte, de preservação ou destruição, de respeito às culturas originárias ou idolatria ao deus mercado. Ambos foram vítimas do projeto de morte que persiste perigosamente.

Também recebi nesses dias o livro “A audácia de servir. Irmã Doraci: vida e morte pela missão”, de Walter Altmann. A Irmã Doraci Julita Edinger, diaconisa da IECLB, foi assassinada em 21 de fevereiro de 2004 em Mampula, Moçambique. Ela relata a realidade de uma guerra civil e de suas consequências:

Aqui por todos os lados que se olhe, se vê a marca da guerra [...] A pobreza é assustadora. As condições de moradia é algo desumano [...] Ou ver como as famílias foram destruídas. Como os filhos e as filhas, crianças e jovens, foram mortos ou levados para os campos de batalha. Ouvir como mulheres perderam os seus maridos e filhos perderam suas mães [...] Matar quem? Quem é o inimigo? Se somos primos, irmãos, amigos, se somos moçambicanos? A lei era matar ou [...].

Foi essa mesma lei, movida pela fúria e pelo ranger de dentes, que tirou sua vida por causa da idolatria ao dinheiro e da sede de poder que resultou em conflitos internos da Igreja Evangélica Luterana em Moçambique. Irmã Doraci escreve a respeito de seu ministério antes de ser assassinada em seu apartamento:

Agradeço a Deus por nunca me defender, mas lutar para defender a causa de Jesus Cristo. Isso significa lutar por justiça. Fazer tudo pelo bem do próximo, falar sempre a verdade, mesmo que isso traga sofrimento. Ser honesta e responsável diante de Deus e das pessoas. A missão a mim confiada não sei para onde irei e vou. Só uma coisa sei, que a minha vida está nas mãos de Deus. Posso dizer que sempre ouvia na voz do vento Jesus me dizendo: Não tenhas medo, eu estou contigo. Nesta certeza quero segui-lo sempre, aquele que nunca me deixa só, Jesus Cristo.

Concluindo: é inaceitável e imperdoável aos poderosos que o Espírito Santo questione e se manifeste contra os ídolos que enchem a cabeça das pessoas. E são muitos os nossos ídolos que usurpam o lugar do Deus da vida e do Senhor Jesus. Os adoradores desses ídolos se enchem de raiva, violência, fúria e ranger de dentes quando os profetas cheios do Espírito ousam expor a verdade da realidade, ao analisar suas causas e propor as melhores soluções.

Bibliografia

COMBLIN, José. Atos dos Apóstolos. Petrópolis: Vozes; São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista; São Leopoldo: Sinodal, 1987. (Comentário Bíblico NT).
FITZMYER, Joseph A. Los Hechos de Los Apóstoles I. Salamanca: Sígueme, 2003.


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Autor(a): Renato Küntzer
Âmbito: IECLB
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Ciclo da Páscoa
Área: Governança / Nível: Governança - Rede de Recursos / Subnível: Governança-Rede de Recursos-Auxílios Homiléticos-Proclamar Libertação
Natureza do Domingo: Páscoa
Perfil do Domingo: 5º Domingo da Páscoa
Testamento: Novo / Livro: Atos / Capitulo: 7 / Versículo Inicial: 55 / Versículo Final: 60
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2022 / Volume: 47
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 69497
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