As mulheres e a Reforma: a história em perspectiva

01/04/2017

Catarina von Bora
Marina Blank
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As mulheres e a Reforma: a história em perspectiva

Marina Blank

Os acontecimentos históricos foram registrados por séculos sob a perspectiva da construção do protagonismo masculino, apagando importantes vivências femininas da história. Para encontrarmos registros sobre as mulheres da época da Reforma, foi preciso vasculhar arquivos de difícil acesso e não há abundância de informações como acessamos sobre os reformadores homens. A presença e atuação das mulheres em processos históricos, como a Reforma Protestante, se tornaram temas de pesquisas a partir do impulso dos movimentos feministas e pesquisas de gênero. O que sabemos sobre as mulheres que participaram do movimento da Reforma?

Somos herdeiras e herdeiros da coragem de Martim Lutero, com gratidão comemoramos os 500 anos das mudanças iniciadas por seus valores e fé, porém o movimento da Reforma está para além de uma única pessoa, muitos outros homens e muitas mulheres estiveram envolvidos e envolvidas neste marcante processo histórico. Sem as mulheres, a Reforma teria acontecido de forma muito diferente. Para além de esposas dos reformadores, elas tiveram um papel fundamental na divulgação das ideias da Reforma Protestante, apesar das perseguições sofridas na época e da condição subjugada que viviam como mulheres, e tinham um profundo conhecimento da Bíblia e expressão de fé. A coragem dessas mulheres também deve ser lembrada.

Antes de ser a “estrela da manhã de Wittenberg”, Catarina Von Bora já escrevia sua história para além do papel de “esposa de Lutero”. Antes do casamento, foi freira, sabia ler e escrever (o que era uma exceção à condição feminina da época), conhecia segredos da medicina caseira e os usou ajudando doentes da comunidade. Dentro do convento, teve acesso a alguns escritos de Lutero, estudou-os a fundo junto com outras freiras. Os estudos lhes foram libertadores, tocadas pela doutrina da justiça por graça e fé, decidiram fugir do enclausuramento. A família de seu primeiro amor não permitiu o casamento com uma ex-monja foragida. Martim Lutero buscou ajudar Catarina a encontrar um marido, ela não aceitou o pretendente indicado, mas se dispôs a casar com o próprio Lutero. Importante ressaltar que para as mulheres foragidas dos conventos só se apresentavam duas opções: casar ou voltar para a casa da família. Foi a primeira “esposa de pastor”. Com o passar dos anos, se amaram e construíram uma família com três filhas e três filhos, além das duas crianças que faleceram. Viveram por vinte anos no convento, com familiares, outras pessoas refugiadas e estudantes. Catarina foi uma ótima administradora, tanto dos bens da família, dinheiro, pensionato, terras e produção de alimentos, quanto das edições dos livros do marido. Fazia visitas a pessoas doentes, enlutadas e idosas. Participou das muitas conversas teológicas que aconteciam na casa pastoral, sua opinião e críticas eram valiosas a Lutero. 

A nova doutrina, que incentivava cada cristã e cristão a ler a Bíblia e expressar sua fé, encorajou que mulheres, de diversos grupos sociais, participassem do movimento reformatório. Toda mulher e todo homem pode ter contato direto com Deus através da fé e da Bíblia, sem necessidade de intermediários, o que fortalece as mulheres, já que elas não mais necessitam de nenhum homem intercessor. Quinhentos anos depois, podemos nos alegrar com as conquistas femininas de espaços em nossa Igreja, grande exemplo disto são as nossas pastoras que podem pregar livremente e assumir Paróquias. A ordenação feminina ainda é relativamente recente no Brasil, este ano completa 35 anos. Mas as conquistas não podem ser tomadas como dadas, a Reforma deve fazer parte do ethos luterano, ainda há retrocessos que precisam de nossa mobilização conjunta, como a proibição no ano passado, 2016, da ordenação de mulheres na Letônia, país que desde os anos 1970 já ordenava pastoras.

As histórias das mulheres reformadoras são exemplos de testemunho do evangelho em palavra e ação. Como luteranas e luteranos podemos nos estimular com estas vivências a conhecer mais sobre a história da nossa Igreja de Confissão Luterana e, principalmente, nos engajarmos em nossas Comunidades com nossas potencialidades diversas e fé compartilhada. Sejamos fortalecidas e fortalecidos a construirmos uma Igreja cada vez mais inclusiva e acolhedora, sempre em reforma!

Conheça a história de algumas mulheres na Reforma 

Como exemplos de engajamento na causa reformista, temos mulheres como Wibrandis Rosenblatt, esposa de reformistas, que também gerenciava a casa que recebia muitas pessoas perseguidas por sua fé. Infelizmente, há poucos registros sobre a vida das mulheres pobres. Da nobreza, temos exemplos como Elisabeth de Calenberg, como regente, introduziu a Reforma em seu território, Ursula de Münsterberg, também foragida de um convento, resistiu ao tentarem forçá-la a voltar e sua argumentação foi publicada acompanhada de palavras de Lutero, esteve envolvida na dissolução de conventos, em que mulheres eram enclausuradas contra vontade. Argula de Stauff Grumbach, que defendeu as ideias da Reforma, inclusive a participação feminina, publicamente, divulgando em milhares de exemplares de seus panfletos e estudou profundamente teologia, baseando suas argumentações nas palavras bíblicas, como Joel 2.28, em que filhos e filhas receberão o Espírito Santo e profetizarão, ou também Atos 5.29, antes importa obedecer a Deus do que aos homens. Da burguesia, os manifestos impressos de Ursula Weyda foram amplamente lidos, defendiam Lutero, suas e seus seguidoras e seguidores com diversas referências bíblicas. A poetisa Elisabeth Cruciger, que escreveu diversos que ainda hoje fazem parte do hinário da Igreja Luterana (na Alemanha). Catarina Zell também foi uma mulher de destaque no movimento da Reforma, com formação intelectual, leu os escritos de Lutero, foi diácona, pregou publicamente, trocava correspondências com reformadores, hospedou e cuidou de protestantes expulsos de suas cidades, tentou convencer revoltosos camponeses a tentarem o caminho da não violência, trabalhou para melhorar as condições sociais da cidade, casou com um sacerdote (que pelo casamento foi excomungado da Igreja Católica), argumentou contra o celibato dos religiosos e contra o silenciamento das mulheres nas comunidades, com Gálatas 3.28, não pode haver nem homem nem mulher, porque todos são um em Cristo., Catarina defendia que o amor cristão deve estar acima de todas as divergências, o amor deveria edificar a Igreja, não violência, condenações e difamações, suas concepções teológicas são influências para a teologia feminista. Marie Dentiere, importante teóloga, afirmou que a leitura da Bíblia realizada pelas mulheres as faz descobrir referenciais femininos na Bíblia e que os exemplos dessas mulheres as fortalecem em sua fé, ações e conhecimentos.

Marina Blank

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia - UFPB
Bacharela em Ciências Sociais - FFLCH - USP


 

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