A impressionante carta sobre um condenado | Filemom 1.1-21

13º Domingo após Pentecostes

02/09/2022

 

Amados irmãos, amadas irmãs,

Jesus transforma pessoas e, quando isso acontece, nossos relacionamentos também são transformados1. Quando o amor de Jesus impacta as nossas vidas, isso deverá ter consequências para os relacionamentos familiares e comunitários. A partir da relação amorosa que o Senhor Jesus tem conosco – seres humanos pecadores –, nós não podemos continuar indiferentes em relação ao próximo e à própria Criação. Uma vez alguém me disse que, ao conhecer o amor de Jesus, até seus animais de estimação sentiram a diferença, pois antes eram chutados e maltratados; agora, não só as pessoas a sua volta, mas também seus animais de estimação são tratados com amor.

É nesta direção que caminha a maravilhosa carta do apóstolo Paulo a Filemom. Estamos diante de uma das histórias mais fascinantes e intrigantes da Bíblia, mesmo que talvez seja pouco conhecida por muitos cristãos. Nesta história, nós encontramos o testemunho do poder transformador do Evangelho que se manifesta através da incomparável força do perdão. Embora essa carta de Paulo não tenha um profundo conteúdo teológico doutrinário (como Romanos, por exemplo), temos aqui a riqueza da Teologia Prática2. Aqui, Paulo não está interessado em explicar difíceis conceitos teológicos sobre o Senhor Jesus Cristo e a Salvação, mas em promover a paz entre duas pessoas que, agora, são irmãos na fé.

Sem a carta de Paulo a Filemom, não teríamos essa mensagem tão particular da Bíblia que fala do evangelho não com interpretações teológicas complicadas; ao contrário, na carta de Paulo a Filemom encontramos a verdade do evangelho nos fatos do cotidiano. Vivemos no dia a dia os conflitos, as guerras, os problemas de relacionamento etc. A carta de Paulo a Filemom fala conosco diretamente sobre essas situações.

Mas, o que havia acontecido entre Filemom e Onésimo? Qual era a origem do conflito? O que, de fato, estava acontecendo? E o que Paulo está recomendando aos seus dois irmãos na fé nessa carta?

Filemom era um cristão muito rico que vivia na cidade de Colossos; também era senhor de escravos, uma prática comum no Império Romano. Olhando às leis romanas da época, vemos que os escravos eram desumanizados, considerados “coisas”, ou seja, apenas instrumentos para a força do trabalho. Além disso, não possuíam uma personalidade jurídica. Isso significa que não possuíam direitos e que estavam debaixo do poder absoluto de seus senhores. Além disso, não podiam legalmente constituir famílias e nem mesmo tinham direito a dias de descanso.3

Ao que tudo indica, Onésimo roubou dinheiro do seu senhor, Filemom (cf. Filemom 1.18-19) e depois fugiu para o lugar mais distante que conseguiu: Roma (cf. Filemom 1.10). Onésimo foi preso na mesma prisão em que o apóstolo Paulo estava. É possível que Onésimo já tivesse visto o apóstolo Paulo na casa de seu senhor Filemom na cidade de Colossos. Fato é que Paulo pregou o Evangelho a Onésimo na prisão e este se converteu ao Senhor Jesus Cristo. Paulo diz: “Faço um pedido em favor de meu filho Onésimo, que gerei entre algemas”. (Filemom 1.10).

Certamente, houve muita alegria com a conversão de Onésimo; porém, isso trouxe alguns dilemas éticos que precisavam ser resolvidos. Entre eles, o próprio destino do recém-convertido. Os escravos fugitivos eram punidos com a morte para que outros escravos não tivessem a mesma ousadia de escapar da casa de seus senhores. Porém, tanto Onésimo quanto Filemom criam no mesmo Senhor Jesus Cristo. Então, como ficaria a situação deles diante do próprio Senhor Jesus?

O apóstolo Paulo foi bastante cuidadoso em suas afirmações. Ele não tem autoridade para simplesmente libertar a Onésimo e levá-lo consigo em suas viagens missionárias, embora fosse a sua vontade. Por isso, Paulo diz a Filemom na carta: “não quis fazer nada sem o seu consentimento, para que a sua bondade não venha a ser como que uma obrigação, mas algo que é feito de livre vontade”. (Filemom 1.14). Portanto, Paulo envia Onésimo a Filemom na esperança de que o próprio Evangelho possa resolver a situação e Onésimo possa ser perdoado pelo senhor. “Paulo envia Onésimo de volta, não para perpetuar o sistema de escravidão, nem por temer o senhor de escravos Filemom, mas para testar a verdade e a força do Evangelho”4. Qual foi o resultado disso?

A carta que temos na Bíblia é a mensagem que Onésimo levou a Filemom pessoalmente em sua volta para a cidade de Colossos. Se a carta está na Bíblia, é sinal de que ela não foi rasgada, queimada ou jogada fora por Filemom; ao contrário, isso indica que Filemom ouviu as Palavras de Paulo, aceitando a Onésimo não como escravo, mas como irmão em Cristo Jesus. Paulo foi um verdadeiro servo de Jesus, um diplomata brilhante que conseguiu o seu objetivo, apelando para o espírito cristão de Filemom, pedindo que aceitasse Onésimo com satisfação e espontaneidade e não com a intenção de castigá-lo, afinal de contas, o próprio Filemom devia a Paulo a sua vida (cf. Filemom 1.19). Esse pode ter sido um dos argumentos que mais amoleceu o coração de Filemom em relação a Onésimo.

Mas, o que esse curto e rico texto bíblico tem a nos dizer hoje? Quais são as lições deste texto bíblico para a nossa igreja? Como essa história afeta os nossos relacionamentos familiares e em comunidade? Convido a caminharmos juntos por três marcas importantíssimas de todos aqueles que foram batizados, transformados e seguem ao Senhor Jesus:

1    AMOR/SOLIDARIEDADE

A carta de Paulo a Filemom nos convida ao amor incondicional, à acolhida, à humildade, ao perdão, à reconciliação. Precisamos agir em amor e com amor, sem fazer diferenças entre as pessoas (cf. Atos 10.34). O amor quebra a escravidão, as intrigas, os conflitos e as guerras. No amor, acabam-se as disputas, os engrandecimentos. Através do amor solidário, todas as pessoas se tornam iguais, assim como o apóstolo Paulo disse aos Efésios: “Por isso eu, o prisioneiro no Senhor, peço que vocês vivam de maneira digna da vocação a que foram chamados, com toda a humildade e mansidão, com longanimidade, suportando uns aos outros em amor, fazendo tudo para preservar a unidade do Espírito no vínculo da paz. Há somente um corpo e um só Espírito, como também é uma só a esperança para a qual vocês foram chamados. Há um só Senhor, uma só fé, um só batismo, um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, age por meio de todos e está em todos.”. (Efésios 4.1-6). A consequência dessa unidade é que “não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher, porque todos vocês são um em Cristo Jesus”. (Gálatas 3.28).

Filemom foi convidado a ser solidário com Onésimo, mesmo que Onésimo o tivesse furtado dinheiro ou bens e fugido para longe. Da mesma forma, nós somos convidados a parar de dividir a sociedade entre “nós” e “eles”, gerando polarização, dor e divisão. Talvez, hoje não sejamos escravos de um senhor como na época do Império Romano; porém, quem sabe estejamos encabrestados e escravizados por ideologias que nos impedem de aceitar e respeitar as outras pessoas como elas são.

Através do amor e da solidariedade, somos convidados ao respeito, à tolerância; mais que isso: à empatia, à compaixão, à diaconia “que visa aliviar os sofrimentos sem preconceitos, transformar realidades e promover a vigília e escuta atenta e constante em relação a todas as situações de sofrimento”5. Através do amor e da solidariedade, trocamos a provocação – daquele que pensa diferente – pelo respeito, pelo diálogo, enfim, pela busca da paz. Essa ação gera uma outra marca:

2    COMUNHÃO

O amor e a solidariedade criam a comunhão. Isso significa um novo tipo de relacionamento não fundamentado na dominação, no egoísmo, na ambição, mas na fraternidade. O amor e a solidariedade criam um novo tipo de relacionamento: Onésimo já não é mais escravo de Filemom; agora, ele está em comunhão com Filemom por crer no mesmo Senhor Jesus Cristo crucificado e ressuscitado.
A comunhão supera as diferenças. Por isso, viver o Evangelho não significa viver em uniformidade, mas em unidade. Na comunhão, vivenciamos a diversidade na unidade onde pensamentos e ideias diferentes são sempre bem-vindos. É esta alegria do amor, da solidariedade e da fraternidade que levou irmãos católicos e luteranos dizerem juntos em 2017: “O Evangelho deve ser celebrado em comunidade às pessoas de nosso tempo para que o mundo creia que Deus deu a si mesmo à humanidade e nos chama à comunhão consigo e com sua Igreja. Nisto está o motivo de nossa alegria em nossa fé comum”6.

Na comunhão, todos são tornados iguais. Acabam-se, portanto, as formas de violência, poder e opressão. Assim nos diz Dietrich Bonhoeffer, pastor e mártir da II Guerra Mundial: “Sendo Deus misericordioso para conosco, aprendemos a ter misericórdia para com nossos irmãos. Recebendo perdão ao invés de juízo, fomos habilitados a perdoar nossos irmãos. O que Deus fez conosco, isso estávamos devendo ao nosso irmão”7. Ele diz também: “Apenas através de Jesus Cristo alguém é irmão de outrem. Sou irmão de outra pessoa através daquilo que Jesus Cristo fez para mim e em mim; a outra pessoa tornou-se meu irmão através daquilo que Jesus Cristo fez nela e para ela”8.

Portanto, vivamos a comunhão com alegria e como novo relacionamento entre nós e as outras pessoas, até com aqueles que pensam diferente da gente. Isso leva à terceira marca importante do cristão:

3    IGREJA

O grupo que vive o amor, a solidariedade e a comunhão são chamados de o próprio Corpo de Cristo no mundo. Esse grupo não vive de acordo com os padrões da sociedade ou do mundo (cf. Romanos 12.2), mas conforme os valores do Reino de Deus (cf. Mateus 5.3-11). Assim, a Igreja é muito mais que uma instituição: a Igreja é uma grande família da fé que vive o amor na troca do conflito pelo perdão, do afastamento pela reconciliação e do ódio pela aceitação. Na Igreja de Jesus, os mais diferentes são tornados irmãos na fé!

Por isso, a Igreja é indispensável. É preciso viver em comunidade, pois em comunidade conseguimos unir forças que nunca teríamos individualmente. Através do constante ouvir da Palavra, podemos ser aos poucos transformados pelo próprio Evangelho em comunidades atrativas, inclusivas e missionárias.

O Senhor Jesus Cristo morreu na cruz pela nossa salvação. Ele comprou a nossa liberdade através do derramamento do seu sangue no madeiro. Através dessa cruel tormenta nós fomos reconciliados com Deus para estarmos reconciliados também com o próximo e com a Criação. Tal qual Filemom libertou Onésimo por pura graça, da mesma forma somos libertos da escravidão do pecado, do egoísmo e da idolatria através da graça de Jesus. Logo, a Igreja é a comunhão de pecadores que são agraciados com o perdão de Deus. Isso nos impede de apontar o dedo para os outros, pois nós mesmos somos os maiores pecadores que conhecemos. A Igreja não é feita de gente perfeita, mas de gente que procura viver o amor, a solidariedade e a comunhão, mesmo com seus erros e falhas.

Amados irmãos, amadas irmãs,

Jesus transforma pessoas e, quando isso acontece, nossos relacionamentos também são transformados. Tem havido perdão na sua casa? Tem havido perdão na sua família? Tem havido perdão na nossa comunidade? Ou continuamos querendo exigir dos outros aquilo que nem mesmo nós, diante de Deus, conseguimos cumprir? Qual é o nosso perfil diante de tantas lições aprendidas da carta de Paulo a Filemom?

O meu desejo é que vivamos intensamente essas palavras, na prática do dia a dia. Não podemos nos calar diante de relacionamentos violentos, abusivos e destrutivos; não podemos mais nos calar diante de um discurso que faz os homens se sentirem os “machões” que podem tudo o que querem em relação às mulheres. Se queremos acabar com a cultura do estupro, precisamos começar parando de dizer às crianças e adolescentes que eles precisam ser os maiores “pegadores” da cidade. A cultura é transformada primeiramente através da nossa linguagem.

Que Deus nos use e encha tanto do seu amor ao ponto de sermos transformados não apenas individualmente, mas familiarmente e comunitariamente, da linguagem aos atos. Não aceitemos a exclusão e a opressão; vivamos em união, comunhão e amor. Amém.


13º DOMINGO APÓS PENTECOSTES | VERDE | TEMPO COMUM | ANO C

04 de Setembro de 2022


P. William Felipe Zacarias


1 Cf. WOODWARD, Dick. Estudo Panorâmico do Novo Testamento: 1 Coríntios a Apocalipse. 6. ed. Joinville: Santorini, 2021. p. 115.

2 Cf. HOEFELMANN, Verner. “16º Domingo após Pentecoste”. in: MÜLLER DA SILVA, João Artur (Coord.). Proclamar Libertação. v. 29. São Leopoldo: Sinodal, 2003. p. 254.

3 Cf. WEGNER, Uwe; GROSSMANN, Carla Andrea. “Caminhada cristã e escravidão”. in: HOEFELMANN, Verner (Coord.). Proclamar Libertação. v. 46. São Leopoldo: Sinodal, 2021. p. 264.

4 MARTINI, Romeu. “16º Domingo após Pentecostes”. in: MÜLLER DA SILVA, João Artur (coord.). Proclamar Libertação. v. XVII. São Leopoldo: Sinodal, 1991. p. 201.

5 WEGNER; GROSSMANN, 2021. p. 273.

6 ALVES DE SOUZA, Jamil (ed.). Do Conflito à Comunhão. São Leopoldo: Sinodal, 2015. p. 10.

7 BONHOEFFER, Dietrich. Vida em Comunhão. 7. ed. São Leopoldo: Sinodal, 2011. p. 16.

8 BONHOEFFER, 2011. p. 16.


Autor(a): P. William Felipe Zacarias
Âmbito: IECLB / Sinodo: Rio dos Sinos / Paróquia: Sapiranga - Ferrabraz
Área: Confessionalidade / Nível: Confessionalidade - Prédicas e Meditações
Testamento: Novo / Livro: Filemom / Capitulo: 1 / Versículo Inicial: 1 / Versículo Final: 21
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Prédica
ID: 67937
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A vida cristã não consiste em sermos piedosos, mas em nos tornarmos piedosos. Não em sermos saudáveis, mas em sermos curados. Não importa o ser, mas o tornar-se. A vida cristã não é descanso, mas um constante exercitar-se.
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