Acerca da Ceia do Senhor - 2010

Carta Pastoral da Presidência

10/03/2010

1. Base nas confissões luteranas

“A igreja é a congregação dos santos, na qual o evangelho é pregado de maneira pura e os sacramentos são administrados corretamente.” (Confissão de Augsburgo, versão latina, art. VII)

“Da ceia do Senhor ensinam” [isto é, as igrejas da Reforma] “que o corpo e sangue de Cristo estão verdadeiramente presentes e são distribuídos aos que comungam na ceia do Senhor.” (Idem, art. X)

“Que proveito há nesse comer e beber? Resposta: Isso nos indicam as palavras: `Dado em favor de vós` e `derramado para remissão dos pecados`, a saber, que por essas palavras nos são dadas no sacramento remissão dos pecados, vida e salvação. Pois onde há remissão dos pecados, há também vida e salvação.” (Martim LUTERO, Catecismo Menor, terceira pergunta acerca do sacramento do altar)

As palavras acima deixam clara a centralidade da palavra e dos sacramentos na eclesiologia luterana, bem como a compreensão luterana de que a Ceia do Senhor é meio de graça que concede perdão dos pecados, vida e salvação às pessoas que creem na promessa divina.


2. Alguns questionamentos levantados à teologia e à prática na IECLB

Têm sido levantadas perguntas críticas em relação ao Livro de Culto em vigor na IECLB, se ele na sua compreensão da Ceia do Senhor não teria deixado de lado a dimensão do perdão dos pecados, o que também ficaria evidenciado pelo fato de que as palavras de instituição da Ceia sugeridas na liturgia-modelo são a versão paulina, que não contém referência explícita à remissão dos pecados (em vez de empregar a combinação, tradicional na IECLB, das versões sinóticas e da paulina, adotada por Lutero no Catecismo Menor). Com isso – assim pode ser a crítica –, o Livro de Culto teria se afastado da base bíblica e confessional da IECLB, à qual ela deveria “retornar” (assim uma moção apresentada pelo Sínodo Brasil Central ao último Concílio da Igreja, realizado em Estrela / RS, em 2008).

Esse afastamento também transpareceria em “publicações e propostas litúrgicas oficiais da IECLB, bem como no ensino, na pregação e na prática comunitária”. Assim está expresso em carta recebida pela Presidência em final de janeiro passado e subscrita por um regular número de ministros e ministras da IECLB, bem como alguns membros, carta essa que pede esclarecimentos da Presidência acerca das questões acima arroladas. A moção do Sínodo Brasil Central também fazia alusão ao “ofertório”, incluído pelo Livro de Culto como elemento litúrgico na Ceia do Senhor, o que deixaria “dúvidas se a Ceia do Senhor é a dádiva do Senhor ou obra humana”.

São naturalmente afirmações de grande peso, que merecem a atenção e o exame de parte de todas as instâncias da IECLB. Não deve pairar dúvida de que o estudo, o diálogo e, mesmo, o debate em torno da Ceia do Senhor são salutares para a vida da Igreja. Nesse sentido, todas as manifestações são bem-vindas. O próprio Concílio da Igreja, de Estrela, ao apreciar a moção e acolhendo parecer da Presidência, animou a um amplo estudo e debate em torno do assunto, não referendando, no entanto, a tese do “afastamento da base bíblica e confessional da IECLB”, pois esta tese, como parece óbvio, não pode ser acolhida sem que ela própria seja bíblica e confessionalmente evidenciada.

Essa observação não significa que o Concílio ou esta Presidência estivessem convictos de que tudo esteja bem na IECLB no tocante à Ceia do Senhor, seja em sua compreensão teológica, seja na prática eucarística. Há ainda muito, entre nós, uma concepção individualista da Ceia, negligenciando a dimensão comunitária, o que se reforça quando o recebimento da Ceia se dá em “fila indiana”, ao invés de em grupos ou em círculos. Cálices individuais, justificados em situações de risco de contágio de enfermidades, desvalorizam simbolicamente a Ceia, quando são descartáveis. Nos casos de risco, pode-se usar a modalidade da intinção, em que a hóstia é colocada em contato com o vinho no cálice comum pela pessoa comungante. Há muitas vezes também uma compreensão um tanto mágica da Ceia, como se ela produzisse seus efeitos salvíficos, independentemente da fé que acolha suas promessas.

De outra parte, há entre nós também celebrações da Ceia em que pessoas que dela livremente querem participar são excluídas, produzindo rupturas na comunhão. O cuidado com a seriedade da Ceia não nos autoriza a sermos juízes da fé alheia, o que é sempre reservado ao próprio Deus. Em contraposição, se hoje a Ceia, comparando-se à prática do passado, é celebrada com mais alegria e espírito festivo, gerados pela dádiva de Deus, essa percepção correta não pode significar que se deixe de lado a dignidade que deve caracterizar a celebração de toda e qualquer Ceia. Ela não é um piquenique comunitário! Desleixo no preparo da liturgia, abandono de vestes litúrgicas, lida descuidada com o pão e o vinho, bem como inobservância de elementos essenciais da Ceia não são admissíveis num exercício ministerial responsável. Assim, não se faz necessário apenas o estudo da Ceia do Senhor, mas também um constante exame de nossa prática eucarística.

Entretanto, as preocupações e críticas acima mencionadas não se voltam apenas contra aspectos isolados da prática eucarística e do Livro de Culto, mas, a rigor, à sua concepção mais ampla. Por isso, o estudo a que o Concílio da Igreja conclamou deve incluir exame do Livro de Culto da IECLB, não por último em sua fundamentação teológica na parte I e na análise de toda a liturgia, parte por parte, cada elemento, na parte II. Há, muitas vezes, falta disso nas manifestações críticas. Parece haver em certos círculos na IECLB uma posição negativa pré-concebida em relação ao Livro de Culto, gerando uma resistência ao estudo de sua fundamentação e, consequentemente, uma rejeição das práticas litúrgicas ali recomendadas.


3. O XXVI Concílio da Igreja (Estrela / RS, 2008)

Por tudo até aqui exposto, fica reiterado, para fins de clareza, o que a Presidência manifestou no Concílio da Igreja de Estrela / RS (2008), num sentido alternativo, quando a moção referida foi apreciada:

“1 – Sejam incentivados o estudo e o exame permanente da fundamentação bíblico-confessional da Ceia do Senhor e da liturgia em vigor na IECLB.

2 – Seja fomentada uma coerente conscientização, estudo e vivência da Ceia do Senhor em todas as instâncias e instituições da IECLB.

3 – Seja dado especial estímulo à pregação e ao ensino acerca da Ceia do Senhor nas comunidades da IECLB.

4 – Seja dada ênfase na prática pastoral e comunitária à dádiva da confissão e à absolvição dos pecados.”

Essa formulação foi aceita pelo Concílio da Igreja e, portanto, a exortação nela contida continua válida para toda a igreja.


4. O processo de adoção oficial do Livro de Culto

À apreciação das questões arroladas é preciso, ainda, para dirimir dúvidas, antepor uma observação quanto ao processo que levou à adoção do Livro de Culto pela IECLB. Sem considerar as várias iniciativas anteriores no seio da IECLB, o processo oficial, que levou à adoção do Livro de Culto pela IECLB, em novembro de 2003, teve início quase 15 anos antes, em 1990, quando o então denominado Concílio Geral decidiu que “chegara a hora de a IECLB oferecer às suas comunidades orientações mais concretas e mais claras sobre o culto” (Livro de Culto, p. 22). Assim surgiu, primeiramente, o prontuário Celebrações do Povo de Deus. Desde 1992, os Concílios da IECLB tiveram como um de seus pontos altos (assim sempre avaliado) as celebrações, marcadas pela liturgia que veio a ser a liturgia que está no Livro de Culto.

Nesses anos todos houve numerosos cursos de liturgia, promovidos por Paróquias e Sínodos. Conferências de ministros e ministras estudaram liturgia. A EST criou a cadeira de Culto Cristão. Foram publicados cadernos de estudo. Houve vários seminários nacionais que estudaram o culto cristão e que foram formatando o que veio a ser a liturgia oficial da IECLB. Concílios, como o de Chapada dos Guimarães / MT (2000), ocuparam-se com a liturgia (lá foi analisada a edição provisória do que veio a ser o Livro de Culto). O Concílio seguinte, em Santa Maria de Jetibá / ES (2002), deu aprovação à conclusão do projeto que foi publicado, como dito, em novembro de 2003. Aliás, já na Apresentação ao Livro de Culto, tive oportunidade de chamar a atenção para o longo processo de reflexão, estudo e prática que levou, por fim, à sua publicação – mais de vinte anos ali mencionei, contando as iniciativas ainda anteriores a 1990. É lamentável o frequente desconhecimento desse processo e dessas iniciativas ou a perda de sua memória.


5. Revisão do Livro de Culto?

Como vimos, tem sido levantada a tese ou a demanda por uma revisão do Livro de Culto da IECLB. No Concílio da Igreja de Estrela (2008) a Presidência também manifestou em seu parecer:

“O Livro de Culto tem servido para renovar e animar as celebrações litúrgicas em muitas comunidades da IECLB. [...] Em suas 370 páginas, o Livro de Culto apresenta diversos recursos litúrgicos, bem como a fundamentação bíblico-teológica dos mesmos. O estudo e a utilização do Livro de Culto na vida das comunidades da IECLB é um processo em andamento que não deveria ser interrompido.

Naturalmente, a revisão de um Livro de Culto oficial da IECLB sempre é um empreendimento possível, mas não pode ser feito à base de considerandos muito sumários e de juízos não fundamentados bíblica e confessionalmente [...]. Tal revisão precisa ser calcada em estudos muito mais amplos, acompanhados de processos de discussão nas comunidades, nas Conferências de Obreiras e Obreiros, nos sínodos, etc. Deveriam ser examinadas detidamente a necessidade teológica e a conveniência eclesial de uma tal revisão.”

Nesse contexto, acrescento ainda, como consideração prática, que a liturgia “oficial” da IECLB não é nenhuma camisa de força que devesse ser tomada em espírito fundamentalista. É perfeitamente possível que uma liturgia em vigor venha a ser revista, assim como o Livro de Culto veio a substituir, com muitas vantagens deve-se observar, o Manual do Culto anteriormente em uso. Tal revisão haverá de ser resultado de um meticuloso processo de estudo, diálogo, consulta, discernimento e, por fim, decisão dos órgãos constituídos da IECLB. Enquanto isso – não devemos esquecer –, o próprio Livro de Culto propõe, com toda clareza e repetidamente, que toda liturgia deve ser moldada. Esse esforço de “moldagem”, por conseguinte, não apenas dá margem para ênfases específicas, também teológicas, bem como adequações às necessidades e contextos particulares, como inclusive as sugere e recomenda. Naturalmente, essa “moldagem” também tem seus limites; ela deve ocorrer sempre sem ferir a concepção essencial de que no culto é Deus quem nos serve por sua palavra e seus sacramentos, cujas promessas acolhemos em fé e a elas respondemos em gratidão, louvor, testemunho e serviço de amor ao próximo.


6. Questões teológicas e litúrgicas de fundo

Abordemos agora, sem de longe esgotar o assunto, as principais preocupações e questionamentos, em sua substância.


6.1. Ceia do Senhor e perdão dos pecados

No parecer apresentado ao Concílio da Igreja de 2008, a Presidência expôs, de forma resumida, como naquele contexto precisava ser, o seguinte:

“No Livro de Culto a Confissão de Pecados” [isto é, como passo específico] “não consta como elemento imprescindível da liturgia (p. 28). Porém, o Pai-Nosso e o Gesto da Paz constam como imprescindíveis. Lendo (e estudando!) a explicação dada a cada elemento litúrgico (a seção II), ver-se-á, à p. 41 do LC, que o Pai-Nosso é visto como momento para também articular ´o pedido de perdão que conduz à reconciliação`. Há outros aspectos mencionados, mas este do perdão/reconciliação é um deles.

O Gesto da Paz (p. 41) aponta para a paz que vem a nós pelo sacrifício de Cristo pro nobis [isto é, em favor de nós]; da paz `que promove o perdão e articula a reconciliação`. Trata da `força transformadora desse gesto`. Assim, a Confissão de Pecados está, de fato, contida na liturgia pela via do Pai-Nosso e do Gesto da Paz. Contudo, de outra parte, a Ceia do Senhor não deve ser reduzida à questão da confissão de pecados.”

Acrescento aqui que, estudando-se o Livro de Culto, encontramos, no tocante ao perdão dos pecados, à página 34, por exemplo, a possibilidade de que o voto inicial em todo culto, portanto também no culto eucarístico, possa ter a forma de confissão de pecados. Aliás, essa possibilidade é aqui reforçada, recomendando-se que sempre esteja presente quando temos a celebração da Ceia. Mas no Livro de Culto são aventadas também outras opções: celebração da penitência comunitária, ofício da absolvição individual; o momento do gesto da paz como espaço propício para a confissão e a reconciliação. “Uma música, uma canção do coral, um hino podem servir de estímulo para este momento. Pode ser útil um instante de silêncio para a confissão individual.” (p. 34)

Em síntese: o Livro de Culto contempla a dimensão de perdão dos pecados em relação à Ceia (e em outros espaços litúrgicos e na prática poimênica), mas não limita seu sentido ao perdão dos pecados, o que não seria teologicamente sustentável. À página 25, segunda coluna, lemos:

“Na Ceia do Senhor recebe-se o Cristo inteiro. Isto significa que a Ceia reafirma e concede o benefício inteiro [realce no texto original] do sacrifício de Jesus.” A seguir temos, até a p. 26, primeira coluna, uma descrição do benefício que nos traz a Ceia, em suas múltiplas dimensões. Entre elas estão arroladas “remissão de pecados e reconciliação: Cristo morreu por nós [realce no texto original]. Esse sacrifício concedeu perdão dos pecados. Fomos reconciliados com Deus mediante o sacrifício de Jesus (Rm 5.10).”

São palavras claras que aqui só podemos relembrar e enfatizar.


6.2 As palavras de instituição da Ceia do Senhor

Tendo observado acima que o Livro de Culto não exclui a compreensão de que a Ceia do Senhor é “para remissão dos pecados” (embora essa dimensão não esgote o benefício que nos é conferido na Ceia), a questão das palavras da instituição pode ser resolvida mais facilmente. Entre os quatro relatos da última Ceia de Jesus com seus discípulos (Mateus 26.26-30; Marcos 14.22-26; Lucas 22.14-20; 1 Coríntios 11.23-26) não há qualquer hierarquia. Não deixa de chamar a atenção, porém, que apenas o evangelista Mateus tem em seu relato a expressão “para remissão de pecados” (Mt 26.28). Embora, segundo boa técnica exegética, se possa reconhecer a expressão como acréscimo a uma versão anterior mais breve, em que a cláusula não se encontrava, como é o caso em Marcos (evangelho mais antigo), isso de modo algum desqualifica a expressão em Mateus como “inautêntica”. Bem ao contrário, ela expressa uma compreensão essencial do sentido da Ceia que Jesus celebrou com seus discípulos e legou a nós.

No entanto, seria absurdo se alguém quisesse concluir, numa estranha inversão de papéis com os autores bíblicos, que Marcos, Lucas e Paulo estariam distantes da base confessional da IECLB, pelo fato de em seus relatos não constar a expressão “para remissão dos pecados”! Por que, então, tirar precisamente essa conclusão em relação ao Livro de Culto, quando ele emprega a versão paulina das palavras de instituição, se, além do mais, o livro deixa absolutamente claro na fundamentação teológica que o perdão dos pecados e a reconciliação são dimensões inerentes à Ceia do Senhor, como acima exposto? O “por vós” (“em favor de muitos”) identifica o benefício recebido na Ceia. O “perdão dos pecados” está incluído nessa expressão usada por Paulo e também o está quando essas palavras são proferidas segundo a liturgia-modelo constante no Livro de Culto. Por que estaria incluído no texto bíblico, mas não mais quando as mesmas palavras são proferidas na celebração da Ceia?

Carta recebida pela Presidência em janeiro também manifesta “inquietação com a prática crescente de substituição das palavras da instituição por canções, paráfrases ou outras formulações”, porque, assim o argumento, “abre caminho à arbitrariedade e às interpretações teológicas individuais”. De fato, o uso de canções, paráfrases ou outras formulações em lugar das palavras de instituição é de todo desrecomendável. Essa desrecomendação não se aplica quando as próprias palavras de instituição são cantadas, mas a paráfrases ou canções com letra diferente das palavras de instituição. Alguma paráfrase, normalmente cantada, pode, isto sim, ser usada durante a comunhão ou, eventualmente, cantada após as palavras de instituição terem sido pronunciadas. Hinos que podem ser cantados durante a comunhão são, por exemplo, o texto da Missa Salvadorenha e o da Comunidade de Taizé, além de outros hinos referentes à Ceia contidos nos dos volumes do Hinos do Povo de Deus, hinário oficial da IECLB.

No entanto, a discussão em torno de quais palavras de instituição devemos recitar denota, paralelamente a uma legítima preocupação, também uma certa expectativa quase mágica de que o emprego das palavras “certas” pudesse garantir que as comunidades viessem a compreender e, talvez, sentir o “verdadeiro” significado da Ceia. Se o não mencionar as palavras “para remissão dos pecados” pode contribuir para “esquecer” essa dimensão da Ceia, a sua acentuação unilateral não pode ter contribuído para uma compreensão nitidamente individualista da Ceia, negligenciando sua dimensão de comunhão? Como seja, mais importante é termos presente que sempre que celebrarmos a Ceia, será preciso fazê-la acompanhar, no culto, da pregação quanto ao seu significado e alcance. Ou seja, deve-se evitar celebração da Ceia em que não haja pregação da palavra ou a pregação não faça referência à Ceia a ser celebrada.

Por isso mesmo, tampouco há qualquer razão para considerar-se a versão paulina como a “única verdadeira”. Nem é essa a pretensão do Livro de Culto ao empregar a versão paulina, talvez sim a de abrir a compreensão para o sentido mais amplo da Ceia. Não se veja, pois, nisso uma questão dogmática, mas, antes, empregue-se o princípio da liberdade evangélica. Onde se considerar que é oportuno (ou mesmo necessário), por razões pastorais, consideradas suscetibilidades de membros da igreja, dar-se ênfase especial à dimensão do perdão dos pecados, é perfeitamente legítimo empregar-se outra versão bíblica ou, mesmo, a composição dos vários textos bíblicos empregada por Lutero no Catecismo Menor, pois reconhecemos nela uma interpretação correta da mensagem bíblica no tocante à Ceia do Senhor. Não se transforme, porém, a questão do emprego do texto paulino num tópico essencial de nossa confessionalidade ou de cumprimento do compromisso de ordenação do ministério pastoral.


6.3 O Ofertório como resposta à dádiva divina

A inclusão do ofertório na liturgia oficial da IECLB tem gerado desconforto entre membros e ministros e ministras. É óbvia e felizmente muito forte nossa consciência cunhada pela redescoberta do evangelho por parte de Lutero, de que nossa justificação vem exclusivamente pela graça de Deus e a recebemos tão-somente pela fé. Nada que possamos ofertar tem qualquer serventia para nossa salvação. Então, como poderíamos incluir legitimamente um “ofertório” na liturgia da Ceia do Senhor?

Reconhecendo essa dificuldade, o próprio Livro de Culto diz explicitamente que “precisa haver cautela no processo de recolocar o Ofertório na liturgia, para que não dê margem ao mal-entendido de que se trata de obra meritória humana” (Livro de Culto, p. 28, nota 18). Seria, porém, um mal-entendido, sim.

O Ofertório é parte do todo de uma liturgia, de um culto. (É o que de resto deve ser dito em relação a qualquer elemento do ordo). Embora sendo parte do todo, o Ofertório não está no início do culto! Ele está antes da instituição da Ceia, é verdade, mas está colocado após a confissão de pecados (onde reconhecemos que somos pessoas pecadoras e que a salvação não é mérito algum nosso), o anúncio da graça (quando é reiterado o que Deus fez e faz em favor de nós), o Credo (onde confessamos nossa fé) e especialmente após as leituras bíblicas e a pregação (que nos falam da salvação por graça e não pelas obras da lei). Portanto, o Ofertório é encarado e pode ser visto tão-somente como resposta ou reação à ação primeira e graciosa de Deus. É por isso que um culto nunca pode iniciar com o Ofertório e é adequado ter bastante no início a confissão de pecados.

Como entender, então, que o Ofertório venha antes das palavras de instituição da Ceia? Já realçamos que no contexto do culto ele constitui resposta ao que veio antes dele. Porém, o Ofertório não é um elemento isolado, posto antes da Ceia, mas é parte de outro todo, a saber, a Ceia enquanto refeição.

A argumentação de fundo é a exposta a seguir. A Ceia é composta por quatro atos: 1) Jesus tomou (pegou) o pão e o vinho; 2) Jesus abençoou; 3) Jesus partiu o pão; 4) Jesus deu. Eram os quatro atos de uma refeição judaica tradicional. E a última ceia de Jesus com seus discípulos foi uma refeição segundo essa tradição. Aí se deu a instituição da Ceia. A novidade está no significado novo que Jesus atribuiu a ela, sobretudo ao alimento: isto é meu corpo e meu sangue. Desses quatro atos derivaram e se desenvolveram quatro ações litúrgicas: 1) do “tomou/pegou”, o levar dos alimentos e preparar a mesa, que dá origem ao Ofertório; 2) do “abençoou”, a instituição como tal, que hoje está traduzida na Oração Eucarística (e não somente nas palavras de instituição!); 3) do “partiu”, a Fração; 4) do “deu”, o momento da comunhão propriamente dita.

O Ofertório, portanto, não é uma ação nossa para receber ou merecer a ação de Jesus de dar-se a nós na Ceia. O Ofertório é (a) nossa resposta ao amor de Deus por nós proclamado e reafirmado na Palavra e (b) é parte do todo da refeição eucarística. É parte do todo que não dá margem para obra meritória nossa, mas que é sempre obra misericordiosa e gratuita de Deus “por nós”. Nossa “obra”, derivada da Ceia, e ela própria fruto da graça divina, será entender, acolher na fé e assumir o Ide, e servi ao Senhor com alegria!, proferido ao final do culto, após a bênção.

Não dá para esquecer que o Ofertório, não como obra ou ação, mas sempre como parte da nossa reação ou de nossa ação diaconal em resposta ao amor de Deus, ajuda a sublinhar a dimensão mais ampla da Ceia. A Ceia do Senhor tem a ver com comida repartida (ou não repartida) – lembremos de 1 Co 11.17ss, outra vez um texto paulino! A Ceia tem a ver com irmos juntos ao redor de uma mesa, estabelecendo comunhão muito estreita uns com os outros. A Ceia tem a ver com uma refeição (Livro de Culto, p. 39, “Preparo da mesa”). A Ceia tem a ver com a nossa vida, nua e crua. Daí que os alimentos usados na Ceia não são de origem mágica, mas são parte daquilo que Deus já nos deu; e que nós reunimos para que Deus use e venha a nós como presença real. Em suma: aqui convém lembrar o hino bem conhecido: Tudo vem de ti, Senhor. E do que é teu te damos. Amém. (Hino baseado em 1 Cr 29.14 e citado no Livro de Culto, p. 352)

Assim, o Ofertório não está voltado para a Ceia que vem, mas deriva da Palavra que já foi lida e pregada. Ele é resposta diaconal (cf. Livro de Culto, p. 39-40). Em relação à Ceia, ele é parte dela. Nesse sentido, a lógica litúrgica e teológica é que pelo Ofertório, sempre em resposta ao amor de Deus, flua a contribuição dos membros, inclusive a monetária das ofertas, e se visibilizem (através de produtos ou de símbolos) a ação ou as ações diaconais da comunidade.


7. Conclusão

Reitero a recomendação do Concílio da Igreja de 2008, no sentido de que “seja dado especial estímulo à pregação e ao ensino acerca da Ceia do Senhor nas comunidades da IECLB”. Trata-se de elemento central de nossa prática comunitária e vivência de fé. É um tesouro preciosíssimo que temos. Devemos dar-lhe toda atenção e todo cuidado. Afinal, através dela, crendo nas promessas de Deus, recebemos o próprio Cristo e, com ele, “remissão dos pecados, vida e salvação”.

Porto Alegre, Quaresma de 2010.

Walter Altmann
Pastor Presidente
 

(Apreciada e aprovada na reunião da Presidência com a Pastora e os Pastores Sinodais, realizada em São Leopoldo, em 10/03/2010)
 


Autor(a): Walter Altmann
Âmbito: IECLB / Instância Nacional: Presidência
Natureza do Texto: Manifestação
Perfil do Texto: Manifestação oficial
ID: 12547
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