À busca da felicidade | Isaías 58.9b-14

11º Domingo após Pentecostes

19/08/2022

 

Amados irmãos, amadas irmãs,

vivemos em um tempo de bastante individualismo e hedonismo: individualismo é – obviamente – colocar o “eu” acima de tudo e de todos; já o hedonismo é colocar o próprio prazer acima de qualquer coisa. Na atualidade, tudo está centrado no “eu”, no bem-estar pessoal, nas próprias ideias, no próprio prazer. Nesta busca incessante por agradar a si mesmo o tempo todo, muitas vezes a própria segurança pessoal e de outras pessoas é colocada em risco. Assim nos diz o falecido sociólogo polonês Zygmunt Bauman: “os homens e as mulheres pós-modernos trocaram um quinhão de suas possibilidades de segurança por um quinhão de felicidade”1. O prazer a todo custo centrado no “eu” leva às drogas, aventuras perigosas, enfim, uma série de escravizações inconscientes.

Em meio à violência e aos problemas cotidianos, a busca incessante pela felicidade e pelo prazer próprio tornou-se uma tentativa de preencher o vazio existencial que devora o ser humano sem piedade. Em meio às lutas diárias, a caça pelo bem-estar nunca termina: ao se conseguir o que se deseja a pessoa passa a desejar outra coisa que ainda não possui. Os sofrimentos não são vividos, mas negados por diferentes modos de obter prazer a todo custo em uma tentativa eterna de se fazer bem.

Mais do que nunca, vivemos hoje a religião do “eu”. A adoração do “eu” acontece na alimentação contínua dos prazeres do corpo que não enxerga mais limites ou fronteiras para si mesmo. Seres humanos, buscando a liberdade, tornam-se escravos de si mesmos e dos próprios desejos. Martinho Lutero dizia que, conforme as Escrituras, o ser humano é alguém “tão curvado em si mesmo que ele usa não apenas bens físicos, mas até espirituais para seus próprios propósitos e em todas as coisas busca apenas a si mesmo”2. Por isso, até mesmo a espiritualidade se tornou em um desejo individualista: quando não me sinto bem em uma igreja, procurarei outra onde eu seja agradado e tenha meu ego acariciado; assim nos diz o Pastor Prof. Dr. Roger Marcel Wanke:

A busca por felicidade, prazer e por interesses pessoais transforma a espiritualidade também em algo intimista e individualista: As pessoas consomem religião para si mesmas ao invés de viverem a fé em favor das outras pessoas. Ritos e práticas religiosas são feitos com boas intenções, mas geralmente por medo de não erem abençoadas, o que leva à barganha com Deus, ou então à falsa religiosidade, uma vida de fé aparente, totalmente descomprometida com as pessoas em sua volta.3

O problema de uma religião e até de uma vida centrada no “eu” e “encurvada em si mesma” é que ela não aceitará o confronto da verdade, não suportará o sofrimento e não tolerará qualquer discordância. Hoje há especialistas nisso: são os coachs, sejam seculares ou vinculados a igrejas: trazem uma mensagem positiva que acaricia o ego, mas não confronta o pecado, não anuncia a importância do arrependimento e nem menciona a perdição. O “eu” acima de tudo é negacionista por excelência, pois nega qualquer coisa que possa destruir seu lindo “castelinho de areia” que é sua visão de mundo. Quando o “eu” está acima de tudo e de todos, não há espaço para o crescimento, para o amadurecimento, enfim, para a liberdade cristã. Esta é a “adoração do eu”.

Isso tudo nada mais é que a realidade do pecado. “Ué, vai falar de pecado, pastor?” Pois é, o individualismo e o hedonismo do tempo em que vivemos nem mesmo permitem falar do pecado. Hoje, as pessoas não se sentem mais pecadoras. Acreditam que podem tudo, barateando, assim, a graça de Deus. Entretanto, continuamos escravos do pecado. O pecado é a nossa tragédia e o nosso destino.

O que é o pecado? Conforme a teologia luterana, pecado não é apenas algum erro moral ou ocasional que cometemos, mas uma aversão completa a Deus. O ser humano não é pecador porque comete pecados, mas comete pecados porque é pecador: a natureza do ser humano é inclinada desde o nascimento ao pecado. O ser humano virou as costas para Deus e encurvou-se apenas em si. Assim, a relação com o próximo é sufocada, pois a pessoa passa a viver apenas para si mesma. O ser humano acaba de tornando seu próprio início, seu próprio meio e seu próprio fim. Tudo é nele, para ele e por ele.

Essa também era a realidade do povo de Deus no Antigo Testamento. O povo de Deus está exilado na Babilônia, sonhando com um possível retorno à Jerusalém, sua terra natal. A mensagem central dos capítulos 56 a 66 de Isaías é que Jerusalém será glorificada e que o povo de Deus retornará à sua Terra Prometida que se chamará, no futuro, Israel.

Até lá, algumas mudanças precisam acontecer. O povo de Deus precisará viver uma fé viva que se manifestará na prática do amor. Eles devem abandonar o egoísmo e a prepotência para que se tornem misericordiosos. Por isso, o texto bíblico que ouvimos inicia com uma condição: “Se tirarem do meio de vocês todo tipo de servidão, o dedo que ameaça e a linguagem ofensiva;”, diz o v. 9b. O povo de Deus deveria abandonar a sua fé vazia e, no lugar, assumir o amor e a responsabilidade pelo próximo. Não deverá haver lugar entre o povo de Deus para a opressão, para a ameaça e para a linguagem que ofende. Mas não para por aí: “se abrirem o seu coração aos famintos e socorrerem os aflitos”, diz o v. 10. Pouco adianta viver a fé em Deus se essa fé é morta! O que isso significa? Uma fé viva é fé em movimento: fé que alimenta os famintos, fé que socorre os aflitos, fé que trata ao próximo com dignidade, como um irmão e irmã. A fé verdadeira não deve nos alienar do mundo, mas ter pé-no-chão: ser fé que se volta não para os próprios desejos egoístas, mas para o próximo!

Assim, eles recebem as promessas de Deus. Nos vs. 11-12, Isaías anuncia que eles poderão retornar à sua terra e reconstruir Jerusalém. Ali deverão viver uma espiritualidade verdadeira que não os leve a viver apenas para si mesmos, mas com a possibilidade de enxergar o outro com misericórdia.

O povo havia se afastado de Deus, mas Deus não se afastou do seu povo. Assim nos diz Roger Marcel Wanke:
Deus busca o seu povo, mesmo quando este o busca apenas por interesses ou até mesmo em vão. Deus evangeliza o seu povo novamente. Deus anuncia um novo êxodo, uma nova entrada na terra prometida! Deus lhes faz valer a sua Lei, mesmo que aqui de uma forma invertida, falando, primeiramente, do amor ao próximo e da prática da justiça e, depois, falando do amor a Deus e do descanso que o sábado do Senhor traz para toda pessoa que confia nele.4

O povo de Deus é convidado a viver a sua fé de verdade. Também nós somos convidados:

1    AO ARREPENDIMENTO

Deus espera de nós uma mudança de vida. Somos pecadores desgraçados que merecem ser queimados no inferno por toda a eternidade. Porém, este não é a vontade de Deus. Por isso, Deus mesmo enviou o seu único Filho gerado – a Segunda Pessoa da Trindade – para que ele, sem pecado, fosse o Cordeiro que morreu na cruz para nos libertar de nós mesmos. Através do arrependimento, o ser humano é liberto de ser alguém “encurvado em si mesmo” para poder ser alguém que se levanta e olha para o próximo e para as coisas de Deus.

Através do arrependimento verdadeiro, o pecador é perdoado pela graça de Deus. Acontece uma maravilhosa troca: o nosso pecado passa a estar em Jesus que se tornou o próprio pecado na cruz: “Aquele que não conheceu pecado, Deus o fez pecado por nós” (2 Coríntios 5.21a); então, Jesus nos oferece a sua justiça para que sejamos justificados e tornados agradáveis a Deus: “para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus” (2 Coríntios 5.21b).

Esse é o primeiro passo: assumir que não estou acima de tudo; assumir que não sou a pessoa boa que acreditava ser, mesmo não matando, roubando ou mentindo; assumir que sem a graça de Deus, estou completamente perdido; assumir que não me basto; assumir que não posso viver de mim mesmo, para mim mesmo, em mim mesmo e por mim mesmo! Arrependimento é renúncia: matar o velho homem para que um novo ressurja! Arrependimento é ir aos pés da cruz de Jesus clamar por misericórdia. Lutero falou sobre o arrependimento: “por arrependimento diário, a velha pessoa em nós deve ser afogada e morrer com todos os pecados e maus desejos. E, por sua vez, deve sair e ressurgir diariamente nova pessoa, que viva em justiça e pureza diante de Deus para sempre”5.

Portanto, aceite hoje esse convite. Arrependa-se dos seus pecados e volte-se em direção a Deus, mesmo que isso lhe traga perseguição. Jesus nos diz: “Porque Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que condenasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele. Quem nele crê não é condenado; mas o que não crê já está condenado, porque não crê no nome do unigênito Filho de Deus”. (João 3.17-18).

2    AO RECOMEÇO

A partir da fé em Cristo, a nossa vida ganhará sentido. Entenderemos que o sentido da vida não é uma propriedade que posso chamar de minha, mas algo que se descobre e se vive em amor ao próximo. A pergunta não é “qual o meu sentido da vida?”, mas “qual é o nosso sentido da vida?”

Por isso, o recomeço exige a vida em comunidade. A própria vivência em comunidade é uma luta contra o individualismo e o hedonismo. Ao invés da fé ser vivida de modo egoísta e apenas para si mesmo, ela passa a ser vivida com outros cristãos com pensamentos e ideias diferentes dos nossos pensamentos e ideias, mas que possuem seu centro em Cristo conforme ele foi revelado nas Escrituras.

A Igreja Cristã é o próprio Corpo de Cristo na terra onde todas as pessoas são membros do mesmo corpo. Como Corpo de Cristo, a Igreja viverá a prática da fé, colocando-a em prática através da diaconia: ““Venham, benditos de meu Pai! Venham herdar o Reino que está preparado para vocês desde a fundação do mundo. Porque tive fome, e vocês me deram de comer; tive sede, e vocês me deram de beber; eu era forasteiro, e vocês me hospedaram; eu estava nu, e vocês me vestiram; enfermo, e me visitaram; preso, e foram me ver.” – Então os justos perguntarão: “Quando foi que vimos o senhor com fome e lhe demos de comer? Ou com sede e lhe demos de beber? E quando foi que vimos o senhor como forasteiro e o hospedamos? Ou nu e o vestimos? E quando foi que vimos o senhor enfermo ou preso e fomos visitá-lo?” – O Rei, respondendo, lhes dirá: “Em verdade lhes digo que, sempre que o fizerem a um destes meus pequeninos irmãos, foi a mim que o fizeram.” (Mateus 25.34-40).

O amor ao próximo quebra de vez o individualismo, o egoísmo e o hedonismo. O “eu” deixa de estar no centro para que Cristo esteja no centro; e quando Cristo está no centro, o próximo é sempre prioridade! E não há maior alegria ou satisfação que ajudar ao próximo através do amor cristão. Somos livres pela fé, mas escravos pelo amor: “Um cristão é senhor livre sobre as coisas e não está sujeito a ninguém. Um cristão é servo prestativo em todas as coisas e está sujeito a todos”6, escreveu Lutero.

3    A CONFIAR

Só assim poderemos crer nas promessas de Deus. Assim como o povo de Isaías, também nós ainda não estamos no nosso lugar permanente; também nós estamos exilados da Terra Prometida, a Nova Jerusalém preparada para aqueles que amam ao Senhor. Não somos pessoas sem futuro, mas irmãos que creem na vitória sobre a morte. Sim, Deus nos tornou tão livres que nem mesmo a morte será capaz de nos prender! Ela foi vencida: “Cristo estava preso nas amarras da morte, entregue por nosso pecado. Ele ressurgiu novamente e nos trouxe a vida. Regozijemo-nos por isso, louvemos e demos graças a Deus e cantemos aleluia”7, diz um hino de Lutero.

Como pessoas arrependidas, em recomeço e confiantes nas promessas de Deus, somos motivados a servirmos ao nosso Deus através dos nossos dons. Na esperança do futuro, já vivemos a fé no presente na prática. Aqui em nossa própria Paróquia temos exemplos concretos disso: na Comunidade Vida Nova, temos um trabalho maravilhoso de recebimento de alimentos que são doados a quem precisa; na Comunidade Bom Pastor, há o belíssimo trabalho que as mulheres realizam através do Brechó com roupas e calçados a um preço bem acessível; sem contar a oportunidade que estamos tendo neste ano de levar a Palavra de Deus, música, ânimo e alegria a dois lares de idosos da nossa cidade.

Fazemos isso e muito mais porque acreditamos na vivência da fé em comunidade. O individualismo nos enfraquece, a comunhão nos fortalece; o individualismo nos isola, a comunhão nos liberta; o individualismo nos exalta, a comunhão nos torna iguais; o individualismo nos enche de arrogância, a comunhão nos oportuniza ouvir os diferentes; o individualismo nos separa, a comunhão nos une.

Portanto, recomeçar significa viver a fé na prática do dia a dia e não apenas aos domingos nos cultos. Até porque é muito fácil sermos cristãos dentro da igreja; o desafio é sermos verdadeiros cristãos no mundo, servindo a Deus por meio do próximo.

Amados irmãos, amadas irmãs, sem o próximo, a fé é

um “louvorzão” sem o rosto prostrado no chão. É amar o próximo como desencargo de consciência e não como encargo de uma essência diaconal. É um amor a Deus desvinculado do amor ao próximo, um amor ao próximo como a si mesmo, sendo esse mesmo um narcisista.8

Deus nos liberte de nós mesmos; Deus nos dê a possibilidade de não sermos encurvados em nós mesmos, mas de levantarmos a cabeça para que enxerguemos o nosso próximo; Deus use nossas mãos, nossos pés e nossos braços em sua obra; Deus use nossas bocas para dizermos palavras certas; Deus use os nossos ouvidos para ouvirmos com paciência;

Deus nos torne livres para que sejamos felizes beneficiando o próximo! Sejamos livres de sempre queremos vencer; nos coloquemos junto aos que mais sofrem. Sejamos livres para estar do lado dos fracos, oprimidos, sofredores, excluídos e rejeitados. Sejamos livres para viver a justiça, denunciando aqueles que promovem a guerra, o armamento, a violência. Sejamos livres! Termino citando belas palavras da poetisa Cora Coralina:

Senhor, fazei com que eu aceite
minha pobreza tal como sempre foi.

Que não sinta o que não tenho.
Não lamente o que podia ter
e se perdeu por caminhos errados
e nunca mais voltou.

Dai, Senhor, que minha humildade
seja como a chuva desejada
caindo mansa,
longa noite escura,
numa terra sedenta
e num telhado velho.

Que eu possa agradecer a Vós,
minha cama estreita,
minhas coisinhas pobres,
minha casa de chão,
pedras e tábuas remontadas.

E ter sempre um feixe de lenha
debaixo do meu fogão de taipa,
e acender, eu mesma,
o fogo alegre da minha casa
na manhã de um novo dia que começa.9


11º DOMINGO APÓS PENTECOSTES | VERDE | TEMPO COMUM | ANO C

21 de Agosto de 2022


P. William Felipe Zacarias


1 BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 10.

2 LUTHER, Martin. Luther's Works, Vol. 25: Lectures on Romans. San Luis: Concordia Publishing House. (Locais do Kindle 7792-7794). Edição do Kindle.

3 WANKE, Roger Marcel. “A essência e a coerência da fé”. in: HOEFELMANN, Verner. Proclamar Libertação. v. 46. São Leopoldo: Sinodal; Faculdades EST, 2021. p. 257.

4 WANKE, 2021. p. 256.

5 LUTERO, Martim. Catecismo Menor. 17. ed. atualizada. São Leopoldo: Sinodal, 2012. p. 18.

6 LUTERO, Martim. Da Liberdade Cristã. 5. ed. São Leopoldo: Sinodal, 1998. p. 7.

7 LUTERO, Martinho. “Cristo estava preso nas amarras da morte – 1524”. in: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas: Vida em Comunidade: Comunidade – Ministério – Culto – Sacramentos – Visitação – Catecismo – Hinos. v. 7. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia; Canoas: ULBRA, 2016. p. 522.

8 WANKE, 2021. p. 257.

9 CORALINA, Cora. Meu livro de cordel. 11. ed. São Paulo: Global Editora, 2022. p. 49.

 

 


Autor(a): P. William Felipe Zacarias
Âmbito: IECLB / Sinodo: Rio dos Sinos / Paróquia: Sapiranga - Ferrabraz
Área: Confessionalidade / Nível: Confessionalidade - Prédicas e Meditações
Testamento: Antigo / Livro: Isaías / Capitulo: 58 / Versículo Inicial: 9 / Versículo Final: 14
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Prédica
ID: 67838
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Não sei por quais caminhos Deus me conduz, mas conheço bem o meu guia.
Martim Lutero
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