A Violência no País - 2002

Manifesto da Presidência e dos Pastores Sinodais

22/03/2002

“Até quando, SENHOR, clamarei eu, e tu não me escutarás? Gritar-te-ei: Violência! e não me salvarás? Por que me mostras a iniqüidade e me fazes ver a opressão? Pois a destruição e a violência estão diante de mim; há contendas, e o litígio se suscita. Por esta causa a lei se afrouxa e a justiça nunca se manifesta; porque o perverso cerca o justo, a justiça é torcida.” (Habacuque 1.2-4)

Nossa realidade de violência

O profeta falou há mais de dois milênios, mas parece ter tido em mente a situação que experimentamos hoje no Brasil. O povo brasileiro vive mais e mais sobressaltado e atemorizado pela crescente onda de violência que assola o país. Os seqüestros, sempre abomináveis, já ocorrem de forma aleatória, podendo atingir qualquer pessoa. Avolumam-se os casos de assaltos e assassinatos, atingindo até mesmo detentores de mandatos políticos. Acrescentem-se o despreparo e a incapacidade freqüentes das forças policiais para coibir a violência, esclarecer os crimes cometidos e prender os criminosos. Estes podem agir contando com a impunidade ou, quando presos, com a possibilidade de fuga ou drástica redução da pena. O sistema judicial é lento em punir os delinqüentes, e rápido na concessão de benefícios, em particular para os poderosos. Há corrupção em todos os níveis e setores. A população sente-se desprotegida, não sabe a quem recorrer e não confia nas autoridades. Como o profeta, ela brada aos céus: “Não suportamos mais a violência! Até quando, Senhor?”

Quais são as causas desse quadro assustador? Certamente serão muitas. Apesar das louváveis exceções, a notória incapacidade dos órgãos policiais e judiciais em coibir e punir de maneira eficiente a criminalidade certamente é uma das causas, mas nem de longe a única. Estabeleceu-se na sociedade um clima bastante generalizado de aceitação do consumo e do próprio tráfico de drogas, um dos principais agravantes da criminalidade. Sem dúvida, a pobreza, o desemprego e a distribuição de renda extremamente injusta, que há no país, está associada a políticas econômicas. Essas favorecem o capital, o lucro e, não raro, interesses externos, sempre em detrimento dos serviços sociais mais elementares, como saúde, educação e previdência, agravando decisivamente a situação. Além disso, a sociedade consumista ajuda a criar uma auto-estima negativa e fragilizada através da comparação com as demais pessoas, despertando inclusive a inveja e a cobiça. A lógica do consumo gera necessidades que a pessoa não tem, substituindo o ser pelo ter, a honestidade e a solidariedade por jóias, carro e outros bens materiais.

Nesse contexto, a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) levanta sua voz diante da crescente violência contra a dignidade e a vida humanas. Estamos convictos de que é imperioso resgatar a noção fundamental de que, por ser imagem de Deus, todo e qualquer ser humano é inviolável e tem direito a viver de maneira digna e em segurança.

O ser humano como imagem de Deus

A vida humana, e tudo o que lhe diz respeito, é maravilhosa dádiva de Deus, com origem no seu amor incondicional. Deus concede permanentemente esse seu amor de maneira gratuita, sem demandar previamente mérito algum de nossa parte. Por intermédio de Jesus, o Pai aceita a nossa imagem, o nosso rosto, mesmo em sendo nós pessoas indignas e fracas. Na morte de cruz do Deus-Filho, vítima ele próprio do pecado e da violência humanas, fomos aceitos de forma cabal e definitiva. O valor ilimitado de cada pessoa está estabelecido a partir dessa realidade: “Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3.16). O amor de Deus em Jesus foi de tamanha magnitude que tomou sobre si toda a miséria humana. Ele assumiu inclusive a nossa imagem aviltada e destruída, assumiu a nossa dor, o nosso sofrimento e abandono radical. Assumiu até mesmo a nossa própria morte. Ele o fez para que tivéssemos vida, e “vida em abundância” (João 10.10).

É normal que as pessoas sintam necessidade de fazer por merecer uma boa imagem — o que, porém, não passa de uma vã tentativa de reconquistar por próprias forças a imagem perdida de Deus. Quem aceita o amor de Deus, porém, está livre dessa escravidão do merecimento, de querer conquistar uma boa imagem pelo trabalho, pela inteligência, pela riqueza, pela beleza física, pela roupa que usa, ou pela própria religiosidade. Esta é a linguagem da lei do mercado: “Você precisa fazer algo para ser alguém”. “Você precisa ser poderoso e influente.” “Você precisa ter muitos bens.” “Você precisa...” Entretanto, essa concepção do ser humano está totalmente distorcida. Diante de Deus você não precisa nada disso. Ao contrário, o ser humano é amado por Deus gratuitamente. Isso é válido indistintamente para todas as pessoas. Ninguém é excluído. Vale para sãos e doentes. Vale para o feto e o enfermo terminal. Vale para as pessoas fortes e belas e, em igual medida, para as pessoas portadoras de deficiência física ou mental. Vale para os virtuosos, mas também para os criminosos. Todas as pessoas, sem exclusão, são imagem de Deus. Pela fé, aceitamos o amor de Deus, a imagem que Deus nos dá. Isso é salvação: sentido e esperança para quem aceita o amor de Deus.

Seriam, então, o pecado humano, a injustiça e a violência, aceitáveis? De forma alguma. Ao contrário, o amor incondicional de Deus é a fonte mais poderosa de superação de toda injustiça e violência. Na fé, a pessoa já não tem necessidade de ser egoísta e egocêntrica, “em-si-mesmada” (assim os reformadores do século XVI caracterizaram a natureza do pecado: não em primeiro lugar falhas morais, mas a realidade da pessoa não voltada nem para Deus nem para o próximo, mas encurvada sobre si mesma). Pela fé em Cristo a pessoa é reconciliada com Deus e, assim, passa a atender o próximo em suas necessidades. Ou seja, o “em-si-mesmado” precisa ser curado, mediante a reconciliação que o amor gracioso de Deus proporciona.

Que fazer diante do quadro de violência?

Em primeiro lugar, mencionamos como absolutamente fundamental o resgate da consciência da dignidade da vida. Não podemos esperar a solução do problema da violência pelo mero combate direto à criminalidade. É preciso atingir suas causas mais profundas, e essas residem na própria organização social e na compreensão de ser humano que a ela subjaz. Sobretudo, é preciso reconhecer que a violência em si apenas gera mais violência, nunca sua superação. Todo e qualquer ser humano precisa ser reconhecido, respeitado e protegido em sua dignidade e seu direito à vida. Obviamente, isso vale para a população que se sente ameaçada e exposta aos perigos da criminalidade, na rua, no trabalho e no lar. Mas vale também para os próprios criminosos que devem ser coibidos em seus intentos e punidos em seus crimes, mas sempre com respeito à integridade de suas vidas, objetivando sua reabilitação social. No combate ao crime, os órgãos constituídos não podem recorrer aos mesmos meios empregados pela criminalidade.

Em segundo lugar, mencionamos como indispensável a construção da paz e da justiça sociais. Estas nunca se dão de maneira automática, mas devem ser construídas com esforço e dedicação. Sobretudo, elas jamais se estabelecem como conseqüência do crescimento econômico que deve, isto sim, ser direcionado intencionalmente para a paz e a justiça. Ou seja: são necessários mecanismos políticos e legais tendentes a garantir o atendimento das necessidades básicas de toda a população, quais sejam, a educação, a saúde, a nutrição, a moradia, entre outras. Acima de tudo devemos fomentar um processo permanente de educação para a paz, a justiça e a solidariedade. Deve-se incentivar que todos os agentes educativos, a começar pela família, seguindo-se o sistema escolar, mas também as organizações da sociedade civil, não por último igualmente as comunidades das igrejas, se insiram decididamente em programas, iniciativas e esforços de construção de uma mentalidade e cultura de paz.

Em terceiro lugar mencionamos o correto e eficiente combate à criminalidade. Este se dá pela eficiência e agilidade dos processos legais, policiais e judiciais, pelos quais, mediante o indispensável respeito à dignidade humana, a população é protegida e a criminalidade combatida. Entendemos que a solução para a violência também passa pela qualificação e melhor remuneração das forças policiais, bem como por um sistema penitenciário mais adequado, mas nunca pela mera repressão violenta à criminalidade. Alimentando a espiral da violência, não se supera a criminalidade, mas apenas se faz surgir no horizonte o espectro de uma verdadeira guerra civil. Sem dúvida, é indispensável um sistema judicial mais ágil e sobretudo não discriminatório para os pobres e não permeável aos privilégios dos poderosos. A impunidade que grassa no país precisa ter um fim. Punições eficientes e exemplares, proporcionais aos crimes cometidos, são necessárias. Contudo, não se esqueça também que a motivação nunca deve ser o desejo de retribuição e vingança, mas sempre o empenho pela proteção da sociedade e pela recuperação das pessoas criminosas respeitadas em sua dignidade. Rejeitamos, portanto, qualquer idéia de introdução da pena de morte e denunciamos como aviltante, odiosa e intolerável a prática, infelizmente nada incomum, de torturas e execuções por integrantes das forças de repressão.

Conclusão

Em comunhão com outras igrejas do país e do mundo a IECLB participa da Década Ecumênica para a Superação da Violência. Ademais, neste ano, a IECLB chama para a ação por meio do tema “Mãos à Obra”. Nesse espírito, desafiamos as comunidades, mas também as autoridades e as organizações da sociedade civil, a empenharmo-nos com determinação e sem esmorecimento, sobretudo em fé e esperança, na construção de uma cultura e uma sociedade de paz, justiça e solidariedade, que correspondem ao anelo mais profundo de todo o povo brasileiro e à dignidade inviolável de cada ser humano.

São Bento do Sul, Santa Catarina, 22 de março de 2002
 

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Não há pecado maior do que não crermos no perdão dos pecados. Este é o pecado contra o Espírito Santo.
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