A política das gavetas

Artigo

08/11/2002


É verdade! Lenços, toalhas, livros, cadernos, talheres... tudo isso e muito mais se guarda em gavetas. É uma questão de ordem, de higiene e de economia doméstica. Basta puxar uma gaveta e logo se tem à mão o que se deseja. Não é prudente misturar documentos pessoais com meias e toalhas no dormitório. Gera confusão e dificulta a localização do que se quer, na hora precisa. Cada coisa no seu devido lugar, na gaveta certa. Isto faz parte do senso de organização, para o qual fomos treinados, desde pequenos. Agora, mudando o que deve ser mudado. Fazemos parte de uma organização social que enfia pessoas, vidas humanas em gavetas. As regras na sociedade determinam as pessoas para as suas respectivas gavetas. Quem mora, por exemplo, na periferia da cidade, cabe na gaveta da periferia. Quem é do centro tem o seu lugar no centro. Mulheres tendem a ser confinadas nas gavetas apropriadas para elas. Nas gavetas dos brancos não se mistura gente preta, vale também o contrário. Quem comete delitos sociais, fatalmente vai para a gaveta dos marginais. É quase inadmissível que a pessoa pobre venha a ocupar um lugar em meio a uma elite social abastada. Os bons garantem o seu lugar e deslocam os maus para o seu contexto..

Para cristãos luteranos há espaço numa gaveta; cristãos católicos vivem em outra; e os pentecostais asseguram os seus espaços em outro lugar. Pecadores e piedosos, os moralistas e os imorais, cada qual tem, na sociedade atual, o seu compartimento pré-determinado. Chefes e subordinados não se misturam. Esta é a ordem social vigente. O que rege o mundo são determinados princípios ideológicos e um espírito hierárquico. E achamos normal que suceda assim. Quem garante que ninguém é predestinado a viver sob a influência do mal ou do bem? E haverá consenso naquilo que, sob aparência do bem, é de fato bom? O contrário não seria também uma possibilidade imaginável?

Nos escritos do Novo Testamento, o recado de Jesus é outro. Sede misericordiosos, como também é misericordioso o vosso Pai: Jesus Cristo revoluciona as regras que regem o convívio na sociedade humana. Por causa da misericórdia de Deus, as ações misericordiosas humanas podem superar as marcas do passado. Reverter as injustiças cometidas no passado é muito difícil, mas a misericórdia, motivada pelo amor de Deus, impede que o nosso futuro seja determinado pelo passado. As coisas antigas já passaram, eis que se fizeram novas, diz o apóstolo Paulo.

Jesus Cristo veio para inaugurar uma nova ordem de convivência. A política das gavetas está, de fato, superada. Valem a misericórdia e o espírito de fraternidade.

A sociedade humana motivada pela misericórdia de Jesus Cristo tem essa liberdade maravilhosa de viver dialeticamente a sua qualidade de ser justa, aceita por Deus, ainda que falha e pecadora. É tarefa de todas pessoas vocacionadas ao exercício dos desafios públicos, isto vale também no contexto eclesial, a anunciar que o Deus, cujo rosto se tornou transparente em Jesus Cristo, não se mantém preso às políticas das gavetas, tão difundidas e tão escravizadoras na sociedade humana.

Manfredo Siegle
pastor sinodal do Sínodo Norte-catarinense
da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB)
em Joinville - SC
Jornal ANotícia - 08/11/2002


Autor(a): Sínodo Norte Catarinense
Âmbito: IECLB / Sinodo: Norte Catarinense
Natureza do Texto: Artigo
ID: 8047
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