Nm 11.4-6, 10-16, 24-29
Um bando de estrangeiros que havia no meio deles encheu-se de gula, e até os próprios israelitas tornaram a queixar-se e diziam: “Ah, se tivéssemos carne para comer! Nós nos lembramos dos peixes que comíamos de graça no Egito, e também dos pepinos, das melancias, dos alhos-porós, das cebolas e dos alhos. Mas agora perdemos o apetite; nunca vemos nada, a não ser este maná!” (…) Moisés ouviu gente de todas as famílias se queixando, cada uma à entrada de sua tenda. Então acendeu-se a ira do SENHOR, e isso pareceu mal a Moisés. (…) E o SENHOR disse a Moisés: “Reúna setenta autoridades de Israel, que você sabe que são líderes e supervisores entre o povo. Leve-os à Tenda do Encontro, para que estejam ali com você. (…) Então Moisés saiu e contou ao povo o que o SENHOR tinha dito. (…) O SENHOR desceu na nuvem e lhe falou e tirou do Espírito que estava sobre Moisés e o pôs sobre as setenta autoridades. Quando o Espírito veio sobre elas, profetizaram, mas depois nunca mais tornaram a fazê-lo. Entretanto, dois homens, chamados Eldade e Medade, tinham ficado no acampamento. Ambos estavam na lista das autoridades, mas não tinham ido para a Tenda. O Espírito também veio sobre eles, e profetizaram no acampamento. Então, certo jovem correu e contou a Moisés: “Eldade e Medade estão profetizando no acampamento”. Josué, filho de Num, que desde jovem era auxiliar de Moisés, interferiu e disse: “Moisés, meu senhor, proíba-os!” Mas Moisés respondeu: “Você está com ciúmes por mim? Quem dera todo o povo do SENHOR fosse profeta e que o SENHOR pusesse o seu Espírito sobre eles!”
A murmuração
Em minha leitura regular estou repassando o livro de Números, o quarto da Bíblia. Como o próprio nome já sugere, é uma leitura bastante árida. Árida, porque os temas de queixumes se repetem. Números, porque faz referência aos dois censos do povo israelita citados no livro. Começa com a história do Sinai, onde foram publicados os DEZ MANDAMENTOS e termina com os passos finais do êxodo, a caminhada de quarenta anos desde a libertação da escravidão do Egito.
É basicamente um livro de transição. Neste tempo de transição dois temas sempre de novo aparecem: a murmuração de um povo insatisfeito — no caso do texto que nós lemos ainda acrescido de estrangeiros que colocaram lenha na fogueira da insatisfação — e as providências de Moisés e Arão para que, em nome dos cuidados divinos, as coisas fossem novamente colocadas no seu devido lugar.
De maneira pedagógica, o livro de Números de refere à organização política de um povo, a partir dos DEZ MANDAMENTOS, ou, a organização de um reinado-messiânico baseado na teocracia. A teocracia, o governo de Deus-Javé sobre as instituições humanas, é claramente o exercício de uma autoridade que faz questão extrema da disciplina. Neste sentido, o livro de Números mostra, passo-a-passo, como o povo da promessa está protegido, guardado, amparado e mesmo rejuvenecido neste tempo de provações, uma vez seguindo as ordens de Deus. O livro também descreve as primeiras vitórias à medida que o povo vai se adentrando na Terra Prometida, em Canaã.
A ralé
O texto bíblico não se refere de forma elogiosa às pessoas que estavam instigando os israelitas. O bando, a turba, a ralé é mencionada em uma tradução mais amena, como viajantes estrangeiros entre o povo. Provocaram o povo da promessa para que não mais buscassem avançar. Induziram o povo a olhar para trás. Estavam decididos a retroceder. Não foi a primeira vez e nem a última que circunstâncias adversas estavam promovendo a cizânia entre o povo e os líderes Moisés e Aarão.
Enquanto Moisés, ainda calmo e resiliente, ouve o queixume levantado pelos de fora entre o povo, a ira do Senhor Deus se acende. Há aqui uma revolta patológica em curso. Um “efeito-rebanho”. Todos reclamam sem nem sequer reconhecer que o plano da libertação e o plano da tomada da terra estava em curso. Reclamavam sem perceber em todas as providências que Deus já proporcionara para a caminhada vitoriosa deste povo. Claro, estranhos contrários e não conhecedores da vontade de Deus estavam agindo e, pior, obtendo sucesso.
Ao lermos capítulos posteriores, veremos que havia um grande medo dos reis dos territórios por onde passariam os israelitas. Medo de que fossem derrotados. Por isso, infiltrar pessoas que provocam divisões poderia ser uma boa estratégia para livrar os reis de uma derrota por um povo desarmado. Afinal, o povo de Deus avançava.
Os setenta
Para enfrentar a turba descontente, Deus-Javé ordena que sejam reunidas setenta autoridades, pessoas líderes entre o povo. Gente de confiança! Conforme o relato, estas setenta pessoas foram reunidas na Tenda do Encontro e lá receberam o Espírito Santo, que Moisés já tinha, mas agora era colocado também sobre estas pessoas escolhidas a dedo.
A natureza se manifestou. Deus se manifestou ao descer como forte nuvem e soprou poderosamente seu Espírito sobre os setenta. O reino natural se manifesta no reino da graça de Deus. Foi um momento único que não mais se repetiu, nos diz o texto.
Estes setenta, profetizaram! O que falaram? Fica claro que aqui age o Espírito de Deus e não o de Moisés. O testemunho de setenta líderes pode ser um poder persuasivo diante da reiterada murmuração. Os líderes profetizaram. “O dom da profecia é na Bíblia um fenômeno visível do agir do Espírito Santo. Muitos estudiosos associam esse dom aqui a um estado de êxtase (cf. 1Co 12-14)”. (Wanke, Roger, PL41, 2016, p.199) Dois líderes, Eldade e Medade, profetizam mesmo sem terem se deslocado à Tenda do Encontro, que ficava fora do arraial. Isto causou certo desconforto ou até uma indignação entre a liderança. Mas Deus falou tanto através dos que estavam no acampamento quanto através dos dois que estavam no arraial.
Quem dera todos profetizassem
Em alguns comentários que li sobre esta perícope, me pareceu que a tendência é valorizar esta última frase do texto como sendo o centro da mensagem, seu escopo. No entanto nem todos profetizam, nem todos profetizaram e nem todos profetizarão. Ou, quando se pensa que profetiza, há se de perguntar se o Espírito Santo está por detrás das palavras ou são projetos pessoais que são colocados em evidência em nome de uma “profetada”.
Entendo que o que o texto nos ensina é que Deus não fala apenas pelo líder maior, mas usa igualmente seu povo para que deixe claro — através de um forte agir do vento do Espírito — qual é a Sua vontade eterna. Deus convida a olhar para o passado com gratidão e para o futuro com esperança.O povo de Deus não é imediatista! O imediatismo é negacionista. O negacionista imediatista quer ver tudo resolvido o mais rápido possível e, se possível, ir sempre contra a vontade eterna de Deus.
É no contexto da “contratação de profetas fora de forma” , afastados da comunhão íntima com Deus, como Balaão, que o capítulo 23 de Números nos ensina: “Deus não é homem, para que minta; nem filho de homem, para que se arrependa. Porventura, tendo ele prometido, não o fará? Ou, tendo falado, não o cumprirá?” (v.19 -ARA) De igual forma sobre a questão do Espírito que concede a profecia: é para pessoas em comunhão com Deus. E, depois disso, derramarei do meu Espírito sobre todos os povos. Os seus filhos e as suas filhas profetizarão, os velhos terão sonhos, os jovens terão visões. Até sobre os servos e as servas derramarei do meu Espírito naqueles dias. (…) E todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo, pois, conforme prometeu o Senhor, no monte Sião e em Jerusalém haverá livramento para os sobreviventes, para aqueles a quem o Senhor chamar. (Joel 2.28-32)
Recapitulando
Infiltrados desestabilizam a confiança no povo de Deus. Sua ganância e sua descrença em Deus tiram a visão da eternidade das pessoas que estariam comprometidas com Deus. Deus resgata lideranças fieis que auxiliam Moisés na difícil tarefa de conduzir um povo sem perspectiva e sobre estas derrama seu Espírito Santo consolador e visionário. Os infiltrados perdem o espaço quando Deus se manifesta.O povo de Deus recupera a visão de que todos os cuidados são proporcionados por Deus e, através da ação de Deus, as pessoas recuperam confiança umas nas outras, cuidando umas das outras.
Quem dera se todas as pessoas que passaram a crer em Jesus Cristo, redentor da humanidade, de igual forma fossem movidas pela ação do Espírito Santo. Que assim, estas pessoas, vocês e eu, fôssemos agentes ativos, ativas, na retomada da esperança colocando um fim no queixume de uma vida sem o vento do Espírito Santo.
Que sopre o vento da confiança e fé em nosso Deus cuidadoso e zeloso!
Amém!