A CONFISSÃO
Harald Malschitzky
I - Considerações preliminares
Quando se pergunta a confirmandos ou também a outros membros das nossas Comunidades qual é a diferença entre a Igreja Católica Romana e a Igreja Evangélica, um número esmagador afirma em primeiro lugar: Nós não precisamos confessar os pecados ao pastor. Aqui se revela um grande preconceito existente em nossas Comunidades contra a confissão particular dos pecados e, em decorrência disso, uma indiferença quanto à confissão dos pecados em geral. Que isso não é apenas a opinião particular de um ou outro pode ser ilustrado com dois exemplos. Max Frisch, escritor alemão, escreve: Um católico tem a confissão particular... Eu tenho apenas o meu cachorro que silencia como um sacerdote (apud Jentsch). Aqui um ator de renome coloca a questão claramente. O segundo exemplo: Um pastor da IECLB propôs aos confirmandos a confissão particular e explicou o assunto à Comunidade. Imediatamente se armou quase que uma revolução e a frase mais frequente foi: Afinal, nós não somos católicos. Mesmo admitindo que a Comunidade não tenha compreendido a proposta ou que a proposta tenha faltado na maneira de ser feita, a reação da Comunidade é característica.
Se fizéssemos um levantamento em nossos grupos de confirmandos eu nossas Comunidades, iríamos constatar que estes últimos estão desinformados sobre o assunto enquanto que os primeiros pouco ou nenhum conhecimento tomam da matéria que consta no Catecismo lüvro de Doutrina), uma vez porque a matéria é difícil, mas também porque se traía de algo muito estranho à nossa gente. Isso. ssrn contar a dificuldade reinante entre nós, pastores.
Na boca do povo parece que a ausência de uma confirmação particular de pecados se transforma ern uma espécie de artigo de fé ou, no mínimo, em uma característica da igreja Evangélica.
II - Lutero e a Reforma
Lutero encontrou na Igreja Católica de sua época uma doutrina da penitência capaz de levar o crente às raias do desespero. Uma das consequências de tal doutrina para a confissão particular era a necessidade de que o confessando enumerasse todos os seus pecados num esforço quase que gigantesco de memória. O confessor anuncia vá, junto com a absolvição, a respectiva penitência. A absolvição proclamada valia na medida em que a penitência era posta em prática f-oi neste ponto que Lutero se desesperou, pois a cada momento ele dês cobria que suas obras penitenciais não eram suficientes e nem capa zes para apagar os pecados cometidos. O inter-relacionamento entre confissão particular e penitência é que levou ao extremo da vendíi de indulgências. Por outro lado, a descoberta de que Deus perdoa o justifica por graça levou Lutero a ver a confissão sob um ângulo dito rente. Mas jamais passou por sua cabeça a ideia de acabar com a con fissão de pecados, especialmente com a confissão particular de peca dos. No Catecismo Maior, em sua primeira edição, Lutero afirma: Nós não (confessamos) por causa de qualquer obrigação ou medo, nós tomos libertados do martírio de enumerar todos os pecados; além disso temos o privilégio de saber como se pode usar a confissão particular de uma maneira santa para.o consolo e a fortificação de nossas consción cias. Em uma de suas prédicas de Invocavit ele se expressa assim só bre o assunto: Vocês estão vendo que a confissão particular não é ai go a ser desprezado, mas sim algo cheio de consolo. E é necessário que tenhamos muita absolvição e consolação, pois precisamos lutar contra o diabo, a morte e o inferno e não podemos deixa; que nos seja tomada qualquer arma.
A posição oficial da Reforma consta em diversos documento. Assim lemos no Artigo XI da Confissão de Augsburgo: Da confissão ensinam que a absolvição particular deve ser mantida nas igrejas, ainda que na confissão não é necessário a enumeração de todos os delitos, pois tal é impossível, segundo o Salmo: 'Os delitos, quem os discerne?' (SI 19.12). No mesmo documento, em seu Artigo XXV se lê: A confissão não está abolida em nossas igrejas. Pois não se costuma dar o corpo do Senhor a não ser àqueles que previamente foram examinados e absolvidos. E o povo é instruído diligentissimamente sobre a fé na absolvição... Na Apologia da Confissão os mesmos artigos são reforçados e detalhados. Nos seus Artigos de Esmalcalde Lutero é muito incisivo quando trata da confissão dos pecados, mormente em se tratando da confissão particular. Visto que a absolvição ou poder das chaves, que Cristo instituiu no Evangelho, também é auxilio e consolo contra o pecado e má consciência, por isso de forma nenhuma se deve permitir que a confissão ou absolvição caia em desuso na igreja, especialmente por causa das consciências tímidas, outrossim por causa da mocidade insciente, para que seja examinada e instruída na doutrina cristã. Mas, quanto à enumeração dos pecados deve deixar-se ao arbítrio de cada qual decidir o que quer ou não quer enumerar Pois enquanto estivermos na carne não mentiremos se dissermos: 'Sou pobre homem cheio de pecado'; Rm 7.23: 'Sinto outra lei em meus membros, etc'. Pois visto que a absolutio privata vem do oficio das chaves, não se deve desprezada, porém tê-la em alto apreço, como os demais ofícios da igreja cristã (Artigo VIII).
Dos textos mencionados acima podem ser destacados dois pontos: Antes de mais nada fica claro e evidente que a Reforma manteve a confissão particular e que Lutero se empenhou muito em seu favor. Se queres desprezar (a confissão) e seguir o teu caminho orgulhosamente sem ela, então temos que tirar a consequência de que não és cristão... pois isso é um sinal evidente de que tu também desprezas o Evangelho (Catecismo Maior, 1 .ed.). Em segundo lugar fica claro que a confissão particular passa a ser uma possibilidade em que não é necessário enumerar todos os pecados e isso porque no centro de tudo está a proclamação do perdão, estando esta intimamente ligada ao ofício das chaves (Mt 16.19). O cristão, confessando particularmente o seu pecado, não mais precisa temer uma carga de atos penitenciais, mas, antes de mais nada, a boa noticia do perdão. Se não mais é imposta uma série de atos penitenciais, isso não significa que o perdão não comprometa o perdoado. Muito pelo contrário, o perdão deve opor-tunizar um novo início de vida responsável diante de Deus e dos homens (Jo 8.11).
Temos colocado bastante ênfase na confissão particular. Ocorre que outras formas de confissão continuam em uso em nossa Igreja. Entretanto, justamente a confissão de uma culpa especifica a uma pessoa de confiança e em particular é que está muito em desuso entre nós. A pessoa a quem se confessa uma culpa particularmente não precisa ser obrigatoriamente o pastor. Aliás, a partir da doutrina do Sacerdócio Geral dos Crentes houve muitas tentativas de realizar a confissão particular diante de um irmão. Ainda assim, nossos membros de Comunidades precisam ser incentivados e encorajados a procurarem o pastor para a confissão particular, podendo estar certos do perdão que ele proclama, neste particular talvez seja necessário lembrar que o pastor não pode, de forma alguma, passar adiante o que lhe foi confiado em confissão (cf. o Art. 11, V do Regulamento do Ministério Pastoral).
III - Perdão e comunhão
Como vimos, a grande crítica de Lutero em relação â confissão particular de pecados se dirigia especificamente à penitência praticada. A partir da graça de Deus que justifica e salva abriram-se perspectivas bem novas para a prática da confissão. De repente ficou claro que a confissão é um acontecimento libertador. O confessando é libertado de um peso que o tornava uma pessoa ensimesmada, pois o peso do pecado fecha as pessoas em si mesmas e as afasta das demais A culpa confessada e perdoada abre o caminho à comunhão com os outros.
O Novo Testamento nos ensina que tanto a cura como o perdão — quase sempre as duas coisas estão inter-relacionadas — devolvem a pessoa à comunhão com os demais (Lc 15.3ss, 11-32; 17. 11-19, Joü 1-11); quem se sabe perdoado não precisa ter receio de ser desmasca rado em sua culpa e é, portanto, livre para o outro e diante do outro Poi outro lado, aqueles a quem os pecados não são perdoados ou aqueles que acham que não têm pecado também não têm comunhão, nem com Deus nem com seus semelhantes (Tg 5.16; 1 Jo 1.7). O pecado destrói a comunhão em todos os sentidos (1 Co 8.12s) e não é por menos que. no Pai Nosso, o perdão de Deus está relacionado ao perdão que a pessoa concede ao seu semelhante (Mt 6.12).
IV - Meditação
Em nossa Igreja — é necessário admitir — a confissão de pecados, mormente a confissão particular, é um filho enjeitado. Mas esta situação não se refere apenas à confissão particular, pois onde a confissão particular é relegada a um plano secundário ali dificilmente se poderá falar seriamente sobre a confissão geral dos pecados ou a individual diante de Deus. Segundo Lutero isso é um sinal de falta de fé e confiança em Deus. Ou será que aqui não transparece também o nosso orgulho protestante, segundo o qual pecadores são os outros? Esta realidade, por sua vez, se reflete na participação do membro da Cornunidade na Santa Ceia. Salvo algumas exceções, a participação é grande e maciça apenas uma vez por ano, mais precisamente na Semana Sanla Será que por detrás disso não se esconde o pensamento de que a nossa comunhão — com Deus e com nossos semelhantes — está em ordem, tornando o perdão desnecessário e a participação na Santa Ceia algo de pouca importância? Será que não estamos diante de uma compreensão muito estreita daquilo que vem a ser a libertação através do perdão? Daquilo que é a nova chance de viver e conviver?
Não se pode esquecer de que na sociedade — com exceçao dcs consultórios psiquiátricos — prevalece o mais forte, e é forte aquele que não erra e que também nem pensa em admitir o seu erro, pois admiti-lo seria um sinal de fraqueza! O quanto esta mentalidade esta arraigada também em nossas Comunidades pode ser deduzido da nos sã forma de contribuição financeira: Todos devem pagar igual, porque diante de Deus todos são iguais. Pagar menos colocaria alguém entre os fracos e, portanto, entre os marginalizados.
O testemunho bíblico, todavia, deixa bem claro que a história do Deus com sua criatura é permeada pelo amor e pelo perdão (Gn 4 i (>.8.21; Jr 31.31-40; Lc 15.11-32). Cabe a nós, que nos dizemos cristãos, articular este amor e este perdão; cabe a nós deixar bem claro que o homem é falível e passível de erros de toda espécie, isto é, que o homem é pecador e carente de perdão. Urge que este aspecto da mensagem evangélica seja estudado com mais esmero em nossa Igreja, a menos que queiramos proclamar simplesmente a graça barata e barateada peio nosso descompromisso com Deus e com os homens. É importante que em nossa Igreja tenhamos sempre mais pessoas dispostas a ouvir a confissão e a proclamar o perdão.
Sem dúvida não será uma prédica ou um pequeno estudo que terão este efeito. Uma prédica poderá ser um primeiro passo, o inicio de um movimento que redescobre o que significam confissão e perdão no relacionamento entre as pessoas. Acontece que o nosso falar do perdão é, para tantos, um discurso totalmente abstraio e doutrinário, talvez justamente porque a confissão e o perdão em seu verdadeiro sentido foram deixados de lado na vivência eclesial e comunitária.
V - Proposta para a prédica
A prédica, embora deva ter certa abrangência, jamais poderá esgotar o assunto de uma só vez. Por isso proponho um esquema muito simples:
1. Que é pecado no testemunho bíblico?
2. A confissão do pecado.
a) confissão geral
b) confissão particular
c) confissão individual diante de Deus
3. Perdão e comunhão.
Caso queira usar o assunto para um ciclo de estudos o esquema poderia ser o seguinte:
1 ° estudo: Pecado no testemunho bíblico.
2° estudo: Deus do amor e do perdão.
3° estudo: A confissão dos pecados.
4° estudo: Perdão e absolvição.
5° estudo: A nova comunhão.
VI - Subsídios Litúrgicos
1. Intróito: Se confessarmos os nossos pecados, Deus é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda a injustiça (Jo 1.9).
2. Confissão de pecados: Senhor, nosso Deus e Pai em Jesus Cristo! Confessamos diante de ti e de nossos irmãos que pecamos muito e sempre de novo: em pensamentos, porque pensamos apenas em nós mesmos e sonhamos vingança até para as pequenas coisas; em palavras, porque tantas vezes usamos a palavra como instrumento para ofender e magoar o nosso irmão; em atitudes porque nos esforçamos para viver a nossa vida e alcançar os nossos próprios obietivos. Por causa de tudo isso nós te pedimos: Tem piedade de nós. Senhor'
3. Absolvição: Assim diz o Senhor: Eu, eu mesmo, sou o que apago as tuas transgressões por amor de mim e dos teus pecados não me lembro (Is 13.25).
4. Oração: Obrigado, Senhor, porque é possível confiarmos em teu perdão e porque, desta maneira, toda a comunhão que destruímos pode começar novamente. Ajuda-nos, Senhor, a reconhecermos o nosso pecado e a aceitar rnos o teu perdão. Por Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador! Amém
5. Evangelho: Lucas 15.11-32.
6. Epístola: Efésios 2.1-10.
7. Oração final: Deus, nosso Pai! Quando ouvimos como é grande o leu amor é que nos fica claro o tamanho do nosso pecado Q começamos a com preender que tantas coisas erradas neste mundo não são mais do que a consequência deste pecado. Damos-te graças, Senhor, porque teu amor pode encobrir os nossos pecados e apagar as nossas transgressões. Confiantes nesio amor é que pedimos:
por cada um de nós e por esta Comunidade para que reconheçamos o nosso pecado, aceitemos o teu perdão e perdoemos uns aos outros;
por tua cristandade em toda terra, cuja história sempre de novo esta marcada pelo pecado, para que ela se volte a ti e pergunte com insistência por tua vontade;
por todos os oovos da terra para que, reconhecendo os próprios erros dêem lugar à compreensão, à paz e à justiça;
por todos os que sofrem as consequências dos pecados alheios, para que tu os ajudes a fim de não desesperarem e para que tu nos transformes em instrumentos que se disponham a caminhar com eles;
por mais comunhão, mais compreensão, mais solidariedade entre nós e todos os homens. Por Jesus Cristo, em cujo nome oramos em conjunto: Pai Nosso...
VII - Bibliografia
COMISSÃO INTERLUTERANA DE LITERATURA, ed. Livro de Concórdia. As Confissões da Igreja Evangélica Luterana. Tradução e notas de A. Schül;er. São Leopoldo/Porto Alegre, 1980.
FORELL, G.M. Die Augsburgische Konfession. In: Zur Sache. Vol. 2, Berlin/Hamburg, 1970.
HELBICH, H.-M. Kateckismus 74. 2.ed., München, 1974.
JENTSCH, W. Wer hõrt mir zu? In: Wir glauben und bekennen. Gõttingen, 1979.
JETTER, W. W. Artigo Beichte. In: Religion und Theologie (VI x 12 Hauptbegriffe). Stuttgart, 1976.
LUTHER, M. Der Grosse Katechismus. In: Ausgewählte Werke — Calwer Ausgabe. Vol. 1. Stuttgart, 1930.
THIELICKE, H. ed. Informação sobre a fé. 2. ed., São Leopoldo, 1977.
Proclamar Libertação – Suplemento 1
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia