A coca-cola, a pepsi e a família brasileira

21/06/2007

Domingos eram de festa. Meu pai solicitava um dos destemidos filhos a buscar uma Coca para o almoço. Verdadeiros cavaleiros de Arthur em busca do Santo Graal, casco de vidro na mão, atravessávamos a rua em busca da imponente Coca Cola. No armazém, éramos agraciados com o a garrafa cristalina com seus dizeres em rubro. O líquido negro aguardava silencioso o momento de espocar sua espuma pelo ar, enchendo a casa de um cheiro adocicado e levemente ácido. Era apenas um litro e atendia satisfatoriamente a ânsia festiva de uma família de seis pessoas. A Coca Família era uma instituição da classe média brasileira. Sob o slogan da Coca Família, atravessamos felizes o regime militar. Porém, o tempo passa, coisas mudam. A Coca mudou. Nós mudamos. A família mudou.

Então, veio a Coca de 1 litro e 250 ml. Tudo bem! Sabe como é, sempre sobrava uma vontadezinha de dar um bico no refri à noitinha ou, quem sabe, ali durante o Silvio Santos, ou, mais recentemente, durante o Faustão. Porém, o tempo passa, coisas mudam. A Coca mudou. Nós mudamos. A família mudou.

De repente, veio a Coca de 2 litros. Bom, a coisa complicou. Só dava para encarar o desafio chamando os avós e uma tia mais velha ou um tio ranzinza. Somente com algum esforço, e muitos e discretos arrotos depois, vencíamos o produto que, antes, transformava as nossas refeições de domingo de uma necessidade biológica em um evento transcendente. Sim, continuava um evento, mas agora um evento quase insuportável, com netos brigando com os avós e irmãos lavando a roupa suja das gerações. Porém, o tempo passa, coisas mudam. A Coca mudou. Nós mudamos. A família mudou.

De repente, lançaram a Coca de 2 litros e 250 ml e, sem seguida, um tambor de 3 litros, comemorativo ao Natal de 2003. A moça no supermercado, sorridente, garantiu-me que era um excelente negócio, pois o preço era quase o mesmo de uma de 2 litros e 250 ml. Bom, mas a vantagem comercial transformava-se uma desvantagem sociológica, pois, para enfrentar o suplício de 3 litros, além dos avós, um tio ou tia, era preciso chamar a família do vizinho, aquele colega insuportável do trabalho, seu cunhado, sua sogra. Para enfrentar com galhardia a nova demanda do Graal, você precisa dos cavaleiros e de todos os súditos de Arthur.

Qual é a lógica em tudo isso? A família brasileira, estatisticamente, está diminuindo dia após dia. A inflação está diminuindo. O risco país está diminuindo. A Coca Cola Família, entretanto, já chegou à casa do 3 litros (três dígitos). Você não vê lógica e tem poucas opções de enfrentar a questão. Vejo três possibilidades: a) aos domingos, você transforma sua casa na Marquês de Sapucaí e agüenta o seu vizinho e o cunhado com as respectivas companheiras; b) você bebe os 3 litros e vai ser confundido com um balão metereológico e, depois, sozinho diante do Big Brother, arrotará até terceira ou quarta geração; c) beberá só um dos três litros no almoço e terá dois litros daquele xarope intragável para o jantar - aí aconselho a não chamar ninguém, pois você poderá perder os poucos amigos que lhe restam.

A Coca Cola Família tornou-se o inimigo número um da família brasileira, pois é o pivô de todas as crises. Da Coca família chegamos, após longas escaramuças, à Coca anti-família. Eu sugiro que acabemos com a Coca família antes que ela acabe com o que resta da família brasileira, pois logo concluiremos que é melhor tomar nossa Coca - mesmo a de 3 litros - sozinhos do que enfrentar o inferno dominical de precisar reparti-la com esse monte de gente irritante que nos torna uma família.

O fato, a lógica, é que o capitalismo - sim, desculpe revelar isso assim sem mais cuidados, a Coca Cola é uma empresa capitalista e não foi criada apenas para fazer nossa felicidade - ignora propositalmente a dinâmica estatística da família brasileira. Para ela pouco importa o que você fará com os 3 litros (ou com 2 litros e 250 ml) desse melado espantoso, desde que deixe algumas moedas - sim, moedas, porque a Coca custa uma ninharia - a mais no caixa. O engodo da vantagem, a ilusão do excesso oferecido regularmente nas prateleiras é inversamente proporcional à dinâmica da família brasileira. A Coca não pensa que você precisa ou deva ter uma bela confraternização dominical com sua família extensa. Aliás, para a Coca Cola, a família ideal tem um indivíduo, pois aí, ao invés de algumas milhões de famílias, ela terá, pelo menos potencialmente, 6 bilhões de famílias-indivíduo, comprando 3 litros de Coca e tentando em vão convidar alguém para a dura empreitada de consumir a coisa antes que volte a ser um monte de água piorada e, obviamente, tentando em vão se reproduzir. Bom, teremos, em breve, a clonagem. Desde que não comecem a clonar a Coca Cola, poderá haver uma solução de continuidade para a família.-indivíduo.
 

É preciso, porém, admitir que, desta vez, a Pepsi saiu na frente. Em segundo lugar e menos comprometida com a imagem de um refrigerante-família, a Pepsi, numa recente série de comerciais, assumiu de vez o fim da instituição família e consagrou o pega-pega como nova forma de intercâmbio afetivo. Todo mundo pega todo mundo e todo mundo pega Pepsi. E, suma sumarum, já temos até trilha sonora nacional para embalar os ritos desse novo tribalismo: eu sou de ninguém, eu sou de todo mundo e todo mundo é meu também (Os tribalistas).

No futuro diremos que a família acabou porque ninguém agüentava mais tanta Coca Cola e mesmo porque a proposta social da Pepsi era bem mais interessante e, para felicidade geral, sugeria de quebra o desaparecimento do cunhado e da sogra.

Dr. Valério Guilherme Schaper


Autor(a): Valério Schaper
Âmbito: IECLB / Sinodo: Sudeste / Paróquia: Belo Horizonte (MG)
Natureza do Texto: Artigo
ID: 6770
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