As chamadas bíblicas com que as Senhas nos motivam à reflexão sobre a bondade de Deus no dia de hoje, são de Lamentações 3.25 (“Bom é o Senhor para os que esperam por ele, para a alma que o busca.”) e de 1 Pedro 2.3 (“Vós já tendes a experiência de que o Senhor é bondoso.”).
Um Deus bom que, como aprendemos, também é amor (1 João 4.8: “Aquele que não ama não conhece a Deus, pois Deus é amor”), misericordioso com todos (Romanos 11.32: “Porque Deus a todos encerrou na desobediência, a fim de usar de misericórdia para com todos”) e fiel (1 Coríntios 10.13: “Não vos sobreveio tentação que não fosse humana; mas Deus é fiel e não permitirá que sejais tentados além das vossas forças; pelo contrário, juntamente com a tentação, vos proverá livramento, de sorte que a possais suportar”).
É este Deus bondoso, amoroso, misericordioso e fiel que nos lapida e vocaciona para servir-mo-nos em sacerdócio universal como irmãos e irmãs, filhos e filhas, pais e mães uns dos outros em sua grande família. Uma família que extrapola os laços sanguíneos para incluir a todos que querem servir à vontade bondosa, amorosa, misericordiosa e fiel de Deus para com toda a sua criação. Tal qual definida por Jesus ao seus discípulos e do qual nos conta Mateus 12.50: “Porque qualquer que fizer a vontade de meu Pai celeste, esse é meu irmão, irmã e mãe”.
Com esta visão de família de Deus que solicitei ao P. Geraldo que me desse a oportunidade de reafirmar para mim mesmo e dividir com todos vocês, queridos irmãos e irmãs em Cristo, partes significativas das angústias, das dúvidas e das convicções que permearam minhas reflexões neste último quase um ano em que a nossa vida, a minha e a vida da minha esposa, tem girado em torno da procura por um diagnóstico, identificação e tratamento da doença do nosso querido neto Enzo. O neto que nos encaminhou nos primeiros passos vacilantes e ajudou e motivou a viver com intensidade a graça primeira de ser avós.
Tenho ciência que abordarei questões muito particulares e que não precisarão impactar o entendimento de vocês na mesma intensidade com que me impactam. Mesmo assim, como me serviram para encontrar luz em meio a momentos difíceis, ouso apresenta-los a vocês no desejo de que encontrem alguma utilidade nos mesmos.
Na semana passada, em 14 de agosto último, completaram-se 9 meses do diagnóstico de tumor na base do cerebelo do meu neto Enzo que, então, na época do diagnóstico, tinha acabado de completar 6 anos de idade. Em 8 dias depois do diagnóstico, prazo bastante curto para os padrões de encaminhamento do sistema de saúde oficial e dos planos de saúde convencionais, ele foi submetido à retirada do tumor em Hospital da UNIMED no Rio e recebeu a indicação para radioterapia tão logo recuperasse da cirurgia.
Em cerca de 2 semanas depois da cirurgia, no dia 08/12/14, o Enzo foi admitido pelo SUS no Hospital do Câncer do INCA no Rio, entrou em coma no final do dia 09 e nestas condições iniciou as radioterapias no crânio e tronco neural (medula espinhal) a partir do dia 10/12, num total de 30 seções na caixa craniana e cerca de 10 na coluna, até 19/03/15.
O estado de coma foi mantido até meados de fevereiro para proteção do cérebro que, em atividade mínima, teria chances de ser menos afetado pelo câncer pontualmente verificado ao microscópio na meninge durante a cirurgia e pelos efeitos diretos e indiretos da radioterapia como os edemas e pontuais necroses ou queimaduras.
Como o efeito da radioterapia acontece no nível de DNA e se completa cerca de 4 a 6 semanas depois da última aplicação, a ressonância detalhada de avaliação do Enzo só aconteceu em 22 de abril. A equipe de especialistas que analisou as imagens observou que as mesmas não evidenciavam sinais de câncer remanescente e recomendaram o seu monitoramento pela repetição das ressonâncias a cada 3 meses no 1º ano, a cada 4 meses no 2º e 3º anos, a cada 6 meses no 4º ano e anualmente a partir do 5º ano após o tratamento.
Contudo e associado à boa notícia da ausência do câncer naquelas primeiras imagens, as mesmas mostraram vários e dispersos pontos de dano ao tecido cerebral. Esta condição, junto com os remanescentes medicamentos corticoides que estavam sendo retirados gradativamente, foi colocada pelos neurologistas como responsáveis pela sua lenta recuperação da consciência e dos movimentos.
Ele foi deslocado do CTI para a enfermaria pediátrica em meados de junho e no final de julho, dada a sua condição de estabilidade clínica, a carência de leito hospitalar e o risco de infecção hospitalar, o trouxemos para um homecare doméstico com os recursos de instrumentação, enfermagem e especialidades médicas requeridas.
Ele parece nos reconhecer, fixa o olhar em nós quando falamos com ele e nos acompanha, tem pequena reação nos membros quando estimulado, mas continua requerendo auxílio de ventilação para garantir a necessária oxigenação. Está recebendo apoio permanente de enfermagem e visitas diárias de fisioterapeutas e fonoaudiólogas contratadas pelo provedor do homecare.
Nova ressonância feita em 06 de agosto evidenciou o retorno do câncer com atapetamento intenso da meninge na porção traseira inferior do crânio e no terço inferior no tronco neural. O tipo de câncer presente reage mais à radioterapia só que o meu neto já completou sua capacidade de irradiação. Restariam, tentativamente, quimioterapias radicais e específicas que, contudo, para terem chance de algum sucesso, requerem quadros clínicos mais fortalecidos para sua formulação e aplicação.
Nestes últimos 9 meses temos dedicado a nossa vida a esta nova condição de prioridades flexíveis, de sobressaltos, sem a rotina organizada das leituras diárias, dos passeios despreocupados, da academia relaxante e convivendo, no dia a dia do HC, com casos extremamente variados de cânceres em todas as idades, em diferentes estágios de desenvolvimento, nas mais diversas localizações e dos mais diferentes tipos de crescimento descontrolado.
Em meio a isto tudo e somado às nossas próprias dúvidas e questionamentos, ouve-se de tudo entre acompanhantes, visitas e servidores hospitalares, mas em geral trazendo à luz o desejo natural e humano de querer entender minimamente o que está acontecendo: por que Deus permite ou permitiu que isto acontecesse com este paciente ou com esta família? Ele ou ela nada fez para merecer isto! O que Deus quer nos ensinar com isto? Por que ele usa isto para nos ensinar alguma coisa se o seu poder poderia ter poupado o sofrimento do paciente? Faz parte da cruz que preciso carregar? Faz parte do meu destino? É o meu carma? Como fica a questão do “nada acontece no mundo sem que Deus o permita” diante de todas estas desgraças que presenciamos todos os dias no Hospital e agora em casa? e assim por diante.
Perguntas até, de certa forma, compreensíveis diante da simplicidade e limitado entendimento das pessoas que estão aí sofrendo e se sentindo completamente incapazes de ajudar a aliviar a dor do seu familiar e que, na maioria das vezes, foram jogados neste turbilhão de intervenções urgentes sem nenhum preparo e que vivem um torpor diário como o lento acordar de um sonho ruim que pode virar pesadelo acordado como o que estamos vivendo agora.
Perguntas que, contudo, não se alinham com o conceito básico que deveríamos todos apreender a partir do que Ele, o nosso Deus, mostrou ser em palavras e ações como Pai, como Filho e como Espírito Santo e do qual nos testemunham os livros do Novo Testamento. Deus é amor bondoso, misericordioso e fiel e nos quer dignos, com vida plena. Ele tem conhecimento vivido como homem das nossas fraquezas e por isso, na aliança vigente, a Nova Aliança, assumiu salvar-nos por graça e fé. Diante da fraqueza humana que não resiste à diversidade de tentações que lhe são apresentadas, e Jesus sentiu e resistiu como Deus Filho às tentações que Satanás lhe apresentou, não cabem mais na nossa vida terrena disciplinamentos ou castigos de Deus.
Cabe sim, como expressão de fé, o nosso humilde reconhecimento das falhas, o sincero arrependimento, a permanente súplica pela ajuda e cuidado de Deus para que não repitamos erros já cometidos, e que a luz do entendimento, do discernimento e do amor seja mentora da nossa caminhada que queremos seja cada vez mais no sentido daquilo que Deus quer e espera que façamos e cada vez menos aquilo que nossa fraqueza e volúpia humana incitam que façamos.
Penso que podemos ou até devemos aprender com outras pessoas que já viveram circunstâncias de enfermidade na família e fizeram questionamentos similares e encontraram consolo. Remeto-me, por exemplo, à reflexão “quando coisas ruins acontecem às pessoas boas” do Rabino Harold Kushner, inspirada no Livro de Jó, diante do diagnóstico de velhice precoce em seu filho de 3 anos e que o levaria à morte no início da adolescência.
Quero pinçar alguns pensamentos do rabino com que tenho sintonia e que me ajudam:
1) Deus não nos prometeu vida terrena sem dor e desapontamentos. Mas prometeu não nos deixar sozinhos com nossa dor e que nele poderíamos buscar força e coragem para sobreviver às tragédias;
2) Vivemos em um mundo regido por leis naturais e com liberdade moral humana. Disto é que decorrem doenças, acidentes e desastres naturais e não da vontade de Deus. Mesmo assim podemos estar certos que Deus, pelo seu amor por nós, sofre com o nosso sofrimento;
3) Deus não causa nossas desgraças e que vem por má sorte, são causadas por gente perversa, são consequências inevitáveis da nossa condição humana e mortal e vivendo em um mundo de leis naturais inflexíveis. Não são punição e nem fazem parte do desígnio de Deus;
4) Como a tragédia não vem de Deus podemos ir a Ele em busca de auxílio para superá-la confiantes que o próprio Deus, nosso Pai cuidadoso, está tão ofendido quanto nós e sempre disposto a nos amparar quando clamamos por seu amparo;
5) Não existindo desígnio de Deus para o mal que nos acomete, não tem significado plausível procurar um sentido especial no sofrimento que decorre deste mal. Nada ganhamos com perguntas do tipo “Por que isto me aconteceu? Que fiz eu para merecer isto? Mas tem sentido perguntar: “Agora que isto me aconteceu, o que posso, devo e/ou vou fazer?” e clamar “Por favor, Senhor, me ajuda!”;
6) Esta última pergunta é que vai estabelecer a quem o nosso sofrimento vai servir, para onde ele nos conduz, se lhe damos um sentido positivo ou negativo. Se a doença, sofrimento ou morte de alguém que amamos, nos torna ácidos, amargos, ciumentos, avessos à religiosidade e incapazes de renovar a alegria, criamos um mártir do mal. Se, por outro lado, do sofrimento tiramos forças para explorar os limites de nossa capacidade de amar, de buscar novas alegrias e descobrir fontes de consolo, criamos mártires do bem e nos tornamos testemunhas da afirmação da vida e não de sua rejeição;
7) E testemunhando a afirmação da vida nos tornamos linguagem de Deus que, vocacionando os seus filhos, propicia condições para redução e consolo mútuo diante dos males que a natureza aflige.
Que Deus nos ilumine e dê forças para que em todas as nossas palavras e ações de testemunho esteja presente e reconhecível o Deus amoroso, bondoso, misericordioso e fiel em quem cremos e confiamos, que este reconhecimento agregue cada vez mais gente à família de Deus entre nós e que, juntos, consigamos edificar sinais concretos de vida plena e inclusiva por onde andamos. Amém!