A Assistência Pastoral no Rito do Sepultamento

Artigo

07/02/1988

A ASSISTÊNCIA PASTORAL NO RITO DO SEPULTAMEMTO

Richard Wangen

E Jó disse: Nu saí do ventre de minha mãe, e nu voltarei; O Senhor o deu, e o Senhor o tomou: bendito seja o nome do Senhor! (Jó 1.21)

I — À guisa de introdução

A morte não respeita ideologia, bens, poder ou raças. Numa sociedade necrófila, como a brasileira, ela pode ser apresentada para muitos, devido às injustiças e explorações. Mas, em última análise, ninguém escapa. Todos nós, inclusive os pastores, somos candidatos com entrada assegurada. De fato, nada é mais comum entre nós do que a morte. Ao mesmo tempo, não há mais nada que inquiete tanto. Talvez nenhum evento na vida torne nossos membros tão abertos à assistência pastoral como a morte ou a ameaça de morte.

Já que é algo tão comum, será necessário tecer algumas considerações sobre a morte como evento social. Ela possui três aspectos que pastores precisam entender ao pastorear o seu povo, a saber:

1. O aspecto biológico reflete a nossa participação da natureza. A morte faz parte da necessidade biológica da continuidade da vida. A partir deste aspecto a sociedade necessita de uma maneira de dispor os corpos que morrem, tanto plantas e animais como humanos. Todos as sociedades (tribos, povos, etnias, etc.) desenvolveram os seus ritos para realizar esta disposição. Estes ritos procuram respeitaras pessoas falecidas e o mistério da morte.

A função do rito é manter a ordem na sociedade, para que ela possa funcionar, apesar da irrupção de caos no meio dela. Alguns ritos procuram justificar o falecido perante Deus, como por exemplo o rito maçônico de enterro. Por isso Manfred Josuttis alerta para o perigo de confundir o ritual com o querigma1. Nesse sentido, a autoridade teológica do pastor é importante, tendo ele a função de auxiliara comunidade a discernir entre a prática evangélica e um rito que mascara as verdades para dar consolo falso e barato aos enlutados. Vamos abordar esta parte adiante, quando se trata da função do pastor.

2. Segue-se o outro aspecto da morte que é o aspecto psicológico. Quando uma pessoa falece, todas as demais pessoas, intimamente ligadas ao falecido, também ficam feridas ou traumatizadas, porque dentro do esquema da psique as pessoas significativas fazem parte dela quase organicamente. O eu (self) é composto de uma série de identificações, investimentos emocionais em outras pessoas significativas. A destruição de uma ou mais dessas pessoas é percebida como destruição de um aspecto do próprio eu (self). A consequência deste acontecimento seria, então, aquilo que se chama de ansiedade de separação que se assemelha muito à emoção do medo.

Este aspecto também requer a atenção pastoral, pois a solidariedade de Deus, sacramentada através do acolhimento comunitário e da assistência transmitida pela pessoa do pastor, pelo seu ouvir atento e o lenitivo da Palavra de Deus, pode amenizar a ansiedade e o medo. A assistência pastoral durante este momento de experiência limítrofe pode ser importante para curar a ferida, mas também para promover o crescimento na fé em todas as pessoas e especialmente nas desinteressadas.

3. O terceiro aspecto da morte, o mais complexo e menos racional, é o aspecto teológico. A Bíblia não encara a morte como algo natural ou biológico Ela vê a morte como resultado da queda humana ou da alienação, ou da falta de relacionamento com Deus, com o próximo e da pessoa consigo mesma. Esta falta de relacionamento denomina-se pecado. O salário do pecado é a morte, diz o apóstolo Paulo (Rm 6.23). O pecado leva ao não-relacionamento. A morte é o resultado final desta tendência ao não-relacionamento2. A esperança cristã reside precisamente na confissão de que Deus se identificou com o Jesus morto para, através do crucificado, revelar-se gracioso para com todos os homens, nasce do não-relacionamento da morte novo relacionamento de Deus com os homens... Identificando-se com o homem Jesus de Nazaré, morto a favor de todos os homens, Deus se revela como o ser que ama infinitamente o homem finito3 . Em Jesus Cristo é Deus que se aproxima do ser humano, oferecendo o seu relacionamento. Este relacionamento que é veiculado por vários meios (a comunidade, amizade, auxílio pastoral) que chamamos de meios de graça, sobretudo a Palavra de Deus e os sacramentos, ajuda a diminuir a ansiedade. Todavia, importante é falarmos de um elemento que traz problemas para o enterro. Este elemento chamamos medo. O medo da morte é perfeitamente natural para o ser humano, pois a tendência de preservar a vida é inerente a ele. Não devemos julgar este medo como covardia, mas lembrar que a fé aceita o medo. Por outro lado, há uma forma de medo que procede do egocentrismo que podemos considerar um certo tipo de idolatria, proveniente de auto-ameaças do Eu do homem. O Eu ameaça-se a si mesmo conquanto se colocar como valor absoluto, tornando-se medida de todos os valores (ideologia, posses, fama etc.)4. Jüngel diz que o remédio que a fé cristã tem a oferecer contra a auto-ameaça à vida, que está presente como tendência latente em cada pessoa, chama-se reconciliação5.

Menciono o aspecto teológico da morte, especificamente ligado ao sepultamento, devido ao medo, aos sentimentos de culpa ou ao trauma psicológico da perda. Este aspecto da morte atinge fortemente não apenas o moribundo, e sim as pessoas significativas ligadas a ele e também a comunidade que assiste os atos fúnebres (exéquias).

Neste sentido a .alocução tem uma finalidade, além do consolo, de corrigir e ensinar aos enlutados e aos presentes o que a Palavra de Deus revela sobre a morte e o fim de cada qual. Portanto, a parte querigmática desempenha uma função central no ritual fúnebre evangélico. Num país influenciado pela doutrina da Igreja Católica Romana e pelos cultos afros, o povo pensa muito em corpo e alma. A natureza humana é de apegar-se a um resquício de material, ao invés de confiar totalmente no Deus da Ressurreição. Por outro lado, o vazio criado pela perda de um ente querido necessita de compreensão pastoral. A alocução fúnebre não é lugar para polemizar a respeito da alma. Para que o enlutado se cure, o falecido precisa, de uma forma ou outra, ressuscitar dentro do enlutado. Geralmente se consegue esta cura pela recordação em conversa. Por isso Josuttis fala da necessidade de poimênica após o ritual fúnebre.

Levemos em conta estes três aspectos da morte (biológico, psicológico e teológico) para a confecção de uma alocução fúnebre, lembrando que pregar a Palavra não é uma mera enunciação dela. É também uma encarnação da Palavra, indo ao encontro das necessidades do enlutado e agindo com tranqüilidade e respeito para com todos os envolvidos. Antes de tratarmos do texto indicado, convém refletirmos sobre a realização do ritual fúnebre. Dividimos esta parte nos seguintes títulos: As necessidades dos enlutados, o desempenho do pastor, a função da prédica ou alocução, o texto e contexto, reflexões textuais e exegéticas, sugestões para a alocução.

II — As necessidades dos enlutados

Aflição e pesar com a morte de alguém sempre criam uma necessidade de apoio. Sentimento de perda e solidão pessoal exigem um ajuste ou uma conformação à nova situação. Às vezes um pânico se apodera da pessoa diante da aparente impossibilidade de reajuste. Ela necessita de recursos pessoais e espirituais acessíveis, para ajudar na conformação à nova situação. A pessoa busca também um sentido neste acontecimento, pois, com a separação da pessoa significativa, a pessoa necessita de uma certa concreticidade e não duma abstração. A pessoa querida faltante representa um valor. Portanto, a pergunta que persiste é: Há outros valores? Neste ponto não adianta falar sobre a vontade de Deus, mas apontar para valores que permanecem. Como falamos ao tratar do aspecto psicológico da morte, a falecida querida representa um investimento emociona! do nosso ser: o não-ser do falecido, em parte, é o meu não-ser. Uma parte do enlutado morre também. Ele tem pensamentos como: Uma parte de mim morreu; Por que não foi eu?; Também eu vou morrer, e daí? Grande parte do pranto das pessoas provém do pavor perante a sua própria morte. Portanto, o enlutado necessita de um(a) pastor(a) com uma postura estável, tranqüila e especialmente confiante, pois a postura do(a) pastor(a) e da comunidade transmite muito mais do que palavras. Às vezes, a maneira de proferir a alocução fúnebre transmite tanto em compreensão e apoio quanto o conteúdo.

Finalmente, a pessoa enlutada necessita de perdão, porque ela sempre sente uma parcela de culpa, culpa real ou imaginada. O sermão fúnebre não pode sempre transmitir ipsis litteris este perdão. Os outros gestos, porém, como ouvir o enlutado, os sacramentos com a sua concretividade material, a presença do pastor e do acolhimento comunitário, auxiliam em transmitir este perdão.

Às vezes, há a necessidade material: os enlutados perderam o ganha-pão da casa, ou a figura materna deixa desamparadas crianças pequenas ou outras pessoas. O sermão fúnebre pode e deve estimular a ação comunitária em prol dos desamparados. A desolação espiritual e psicológica da pessoa ou das pessoas enlutadas cria a necessidade prioritária de uma ação pastoral. No entanto, um apoio meramente moral, quando há necessidades materiais, seria um ultraje ao Evangelho e à comunidade cristã!

III — A função do(a) pastor(a)

Talvez não haja nenhum evento comunitário, onde a autoridade pastoral se tornasse tão necessária como no enterro. A disposição do corpo é uma necessidade biológica, mas teologicamente o irrompimento da morte na vida da comunidade é uma expressão de caos do mundo e, por vezes, da sociedade necrófila. Diante desta situação, a postura equilibrada do pastor ou líder comunitário (muitas vezes um leigo designado fará o ritual fúnebre) é de suma importância. Isso, de forma alguma, significa frieza ou falta de calor humano. Significa, porém, que o pastor, após ter recebido registro legal do óbito, sem o que o corpo não pode ser enterrado sob hipótese nenhuma, toma consciência da sua responsabilidade pastoral para conduzir o ritual do enterro, com dignidade e conforme a boa ordem indicada pelo Evangelho e os costumes da Igreja. Neste sentido ele é o teólogo em residência e tem autoridade, em conjunto com o presbitério, de decidir, se a sua comunidade pode ou não dar o seu beneplácito ao ofício do enterro. O determinante não é a situação econômica do falecido, e sim a avaliação evangélica conforme a doutrina central da justificação pela fé. Isso é importante, quando entidades não-religiosas ou fraternidades querem exigir os seus ritos e suas cerimônias junto ao ritual cristão de enterro. Se ele ou ela decidir negar o ofício e o acolhimento da comunidade, há a possibilidade de acompanhar o enlutado por razões pastorais, mas sem a vestimenta litúrgica, quer dizer, sem representar a comunidade.

Ainda quanto à autoridade, o pastor tem a função de prestar testemunho cristão perante o mundo secular, e também uma responsabilidade pública de anunciar e afirmar a fé cristã, a esperança e a convicção alicerçadas na constância e na soberania de Deus, e relativizando as coisas passageiras deste mundo.

Contudo, esta autoridade tem uma função pastoral. Eu gostaria de delinear aqui alguns passos que tornam esta liderança concreta e pastoral. Estou consciente de que existem situações, onde a exeqüibilidade desta orientação não seria possível. Todavia, a maneira de ser do(a) pastor(a) seria aguai: Caso não tenha estado presente no local do falecimento, seria aconselhável, o(a) pastor(a) fazer uma visita breve à casa ou ao hospital, onde os familiares estiverem reunidos, logo ao receber a notícia da morte. Ali deverá tomar nota das condições de falecimento e compartilhar a solidariedade de Deus no sofrimento.

Se não der assim, deverá procurar dividir o processo fúnebre em duas partes. A primeira parte será reservada para os familiares ou diretamente atingidos pela perda. A sua finalidade é dar oportunidade à expressão dos sentimentos de aflição e pesar dos mais chegados. Pastoral e terapeuticamente a despedida, com toda a sua dor e pranto, é importante. O pastor(a) até pode provocar o choro, reiterando o fato de que isto será a última vez de ver o falecido. Neste momento, a lembrança da ressurreição de Jesus seria maior benefício para o(a) pastor(a) do que para os enlutados. A confiança do(a) pastor(a) e a sua postura equilibrada ajudam muito neste momento de trauma e confusão. O choro alivia a tensão. Uma breve leitura da Bíblia ou um Salmo e uma oração serviriam neste momento. Mas o importante é deixar a família expressar a sua tristeza e o seu lamento.

Na segunda parte, ao sair de casa ou da capela, será importante o(a) pastor(a) conduzir o esquife para o carro fúnebre, ao templo ou, no cemitério, ao túmulo. A condução pode ser acompanhada por leituras bíblicas, canto ou em silêncio. A dignidade deve ser mantida, não o pomposidade, seja qual for a condição do falecido, pois foi criado na imagem de Deus e merece o nosso respeito. A alocução deve ser proferida ou na igreja (se for o caso) ou no cemitério, em todos os casos, num lugar público, porque a alocução não serve para elogiar o falecido, mas para dar testemunho cristão de esperança e preparar s ouvintes para sua própria morte. As percepções dos membros e dos que assistem ao ritual fúnebre, são mais aguçadas. Portanto, o líder que conduz o ofício, deveria estar consciente dos gestos e dos símbolos que utiliza. O símbolo de lançar terra sobre o caixão é forte em termos de despedida, onde há o costume dos participantes jogarem terra, deve ser permitido. Depois da encomendação, se possível, a presença do(a) pastor(a) ao lado dos enlutados é importante, por alguns minutos, em silêncio, enquanto a sepultura for sendo fechada.

IV — A contribuição da alocução ou do sermão fúnebre

A alocução fúnebre desempenha um papel importante no ofício. Ela não é, no entanto, o único elemento querigmático dentro do ritual. A própria liturgia casuística é composta de diversas partes oriundas diretamente das Escrituras (Salmos, Evangelho de João, Apocalipse, as Epístolas, etc.). De fato, algumas denominações excluem totalmente em sermão ou alocução fúnebre, para não incorrer no perigo de elogiar demais os poderosos deste mundo e esquecer os humildes e oprimidos. Esta prática tem seus méritos. A IECLB, porém, sempre deu ênfase na pregação da Palavra e, em termos de testemunho, isto tem seu valor. Aliás, convém dizer que a teologia de morte não deve ser restrita aos enterros. Uma função dos cultos, entre outras, é pedagógica. E várias perícopes podem ser utilizadas para preparar a comunidade para um confronto com as situações extremas de vida como, por exemplo, a morte.

Seguem aqui algumas diretrizes para o uso e a preparação de uma alocução fúnebre:

1. A alocução deve ser breve

2. Deve ser suficientemente otimista, para não se tornar demasiadamente sentimental, e suficientemente realista, para afirmar a graça de Deus em Jesus Cristo como a única esperança para o cristão.

3. Deve levar o Evangelho de redenção para os vivos, de tal maneira que eles ouçam!

4. Deve expressar a esperança da Igreja quanto aos seus mortos em Cristo e a gratidão da Igreja àquelas pessoas que mereciam a sua gratidão.

5. Não deve dizer nada sobre os mortos, para os quais a Igreja Cristã não pode expressar esperança. Acrescentamos ainda mais: A apresentação da prédica deve ser apoiada por uma postura de firmeza e objetividade no ritual6.

V - Notas bibliográficas

1 Josuttis, Manfred. Prática do Evangelho entre Política e Religião. Recomenda-se a leitura do capítulo 8, pp. 199-219
2 Jüngel, Eberhard. Morte, Editora Sinodal, São Leopoldo, 1977, p. 76
3. op. Cit., p. 106.
4. op. Cit., p. 124.
5. op. clt., p. 125.
6. Caemmerer, Richard R. Preaching for the Church. St. Louis, Concórdia Pub. House, 1959, p. 207.

 

VI – Bibliografia

- ARNOLD, William V. Introduction to Pastoral Care. The Westminster Press, Philadelphia, Pennsylvania, 1982.
- CAEMMERER, Richard R. Preaching for the Church. St. Louis, Concórdia Pub. House, 1959.
- CARGAS, Harry M. & WHITE, Sister Ann. Death & Hope. Corpus Books, New York, 1970.
- HULME, William. Pastoral Care & Counseling. Augsburg Publishing House, 1971.
- JACKSON, Edgar N. How to Preach to People's Needs. Baker Book House, Grand Rapids, Michigan, 1976.
- JOSUTTIS, Manfred. Prática do Evangelho entre Política e Religião. Editora Sinodal, São Leopoldo, 1977.
- ODEN, Thomas C. Pastoral Theology. Harper & Row, Publishers, San Francisco, New York, NY, 1983.
- SWITZER, David K. The Dynamics of Grief. Abingdon Press, 1970.
- WHITE, R. E. O. A Guide to Pastoral Care. Pickering & Inglis, Ltd, 3, Beggarwood Lane, Basingstoke RG 23 7 LP, 1979.

VII — Sugestões de textos para a ocasião de sepultamento

 


Proclamar Libertação – Suplemento 2
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia


Autor(a): Richard Wangen
Âmbito: IECLB
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1988 / Volume: Suplemento 2
Natureza do Texto: Artigo
ID: 7317
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