Prédica: 2 Timóteo 1.1-14
Leituras: Salmo 37.1-10 e Lucas 17.5-10
Autoria: Alberi Neumann e Paulo Sérgio Macedo dos Santos
Data Litúrgica: 17º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 02/10/2022
Proclamar Libertação - Volume: XLVI
O Espírito habita em nós!
1. Introdução
As duas cartas a Timóteo e a carta a Tito estão entre os textos paulinos chamados de cartas pastorais. Nelas, o leitor ou a leitora encontrará subsídios para o pastoreio nas comunidades. São textos que têm em comum a linguagem e o estilo, e dão pistas sobre as condições e formas de organização que havia nas comunidades do cristianismo primitivo. Têm semelhantes formas de combater as heresias, por exemplo, caracterizando uma teologia em comum, por isso muitos estudiosos as situam como uma unidade dentro do Novo Testamento.
Lorenz Orbelinner (1999) aponta que a linguagem utilizada na Carta a Timóteo, ou a qualquer outra liderança de comunidade local, demonstra que o autor já possuía uma intimidade com o destinatário. Esse fato faz com que o texto difira de outras cartas paulinas sem ter, por exemplo, as longas admoestações presentes nos conjuntos de escritos enviados a coletivos ou igrejas como as cartas aos coríntios e aos efésios. O texto da Carta a Timóteo tem um tom muito mais paternal e fraterno que em outros escritos paulinos.
Tanto Timóteo como Tito são colaboradores próximos de Paulo. Timóteo, conforme a narrativa de Atos 16, foi escolhido por Paulo para acompanhá-lo nas ações missionárias. Esse convívio gera cumplicidade e torna-o um dos colaboradores mais próximos e, em muitos casos, o representante do apóstolo quando da sua ausência.
O endereçamento a Timóteo pode ser a primeira chave de compreensão para o texto constante em 2 Timóteo 1.1-14. Orbelinner assevera que a Carta a Timóteo aponta para um discurso de despedida em clara dependência dos textos do Antigo Testamento (Gn 47.29 – 49.3; 1Rs 2.1-9, p. ex.). Nesses textos, formulados como discursos de despedida pelos diversos patriarcas, o modelo estrutural sempre se repete: o patriarca, que prevê sua morte iminente, diz aos seus filhos o que vai acontecer; diz-lhes como se comportar, mas acima de tudo instiga-os a seguir seu exemplo e preservar fielmente seu ensino. Nas cartas a Timóteo é possível perceber esse modelo de estrutura. O caráter testemunhal e testamentário que o autor utiliza demonstra a amizade e a cumplicidade entre Paulo e Timóteo, aquilo que Paulo espera que seus “herdeiros na fé” façam a partir de então, bem como estimulá-los com a certeza de que Deus não nos deu o espírito de temor, mas de fortaleza, e de amor, e de moderação.
2. Exegese
A carta começa com a saudação tradicional, presente em outras cartas paulinas. Os v. 1 e 2 dessa introdução mostram características peculiares da carta. Paulo apresenta-se como apóstolo pela vontade de Deus e de acordo com a promessa de vida em Cristo. Timóteo é apresentado como seu filho na fé, aquele a quem a carta-testamento é destinada e de quem se espera que se atente aos desígnios que nela se encontram.
Os v. 3 a 5 demonstram que a graça de Deus se manifesta pela fé. O apóstolo deixa claro seu vínculo emocional com Timóteo, o conhecimento de suas origens, seus antepassados, suas lágrimas, sua fé sem hipocrisia e da lealdade para com ele. A fé de Timóteo é, por isso, sincera. Não se envergonha nem de sua história nem de suas lágrimas. Esse bloco, mais do que demonstrar a relação de cumplicidade de fraternidade existente entre os dois, mostra que o motivo dessa união é a manifestação absoluta da graça de Deus em suas vidas.
O bloco que compreende os v. 6 a 14 é uma grande exortação a um testemunho sem medo e que possua constância na fé. No v. 6, Paulo afirma que o mesmo Espírito que habita nele opera também em Timóteo. Aqui a cumplicidade mostrada nos versículos anteriores ganha outra nuance. Não são íntimos só por afinidades humanas. Suas afinidades também vêm do reconhecimento de que o dom provém de um mesmo Espírito, e que esse Espírito não é de covardia e de medo, mas de poder, amor e moderação (v. 7).
Esse bloco central está claramente articulado como um sanduíche. Estão intimamente ligados. Os sofrimentos expostos pelo apóstolo estão presentes tanto nos versos iniciais como nos finais, e há a afirmação clara de que esses sofrimentos não são motivo de vergonha (v. 8); pois o Espírito que “nos” foi dado não é nem de covardia nem de medo (v. 7 ). O sofrimento só pode ser compreendido à luz do evangelho conforme expresso no texto.
O carisma recebido de Deus e expresso no texto no v. 6 é o que motiva tanto a salvação como a vocação expressa nos v. 9 a 11. A designação que foi dada a Paulo como apóstolo, pregador e mestre é transmitida a Timóteo pela imposição de mãos. Este, por sua vez, é chamado a perseverar no caminho, não só pela intimidade pessoal com o apóstolo, mas pela intimidade demonstrada pela sua fé. Assim como no v. 5, Paulo recorda que Timóteo possui uma fé sem fingimento, verdadeira, que habitou em sua história pessoal que Paulo conhecia. Timóteo não deve se envergonhar dos sofrimentos a que Paulo está passando. A fé que Paulo reconhece em Timóteo não deixa espaço para dúvidas, vergonha ou medo, pois o Espírito que fortalece Paulo é o mesmo carisma que está presente na vida e no ministério de Timóteo.
Os dois versículos finais da perícope reafirmam que é necessário manter o padrão e a coerência das palavras que Timóteo ouviu de Paulo. Não deixa dúvidas nem espaço para medo, para incertezas, tampouco covardia. Termina no v. 14 pedindo que Timóteo guarde as palavras e os ensinamentos mediante o Espírito Santo que os une. Assim, mais que unidos por afinidades fraternais e humanas, agora são unidos por um mesmo Espírito, que não possui medo nem covardia, mas sim poder, moderação e amor.
3. Meditação
Essa perícope aponta para a necessidade de vivermos a experiência cristã a partir da comunhão. Entende-se comunhão não como um momento de celebração apenas, mas comunhão no sentido pleno, que é capaz de compreender o sofrimento pelo que o próximo passa. Quando batizados, passamos pela mesma experiência mística que Timóteo passou quando Paulo impôs as mãos sobre ele. Somos convidados e convidadas a viver o evangelho sem medo, sem covardia, plenos no amor e na moderação. Somos convidados e convidadas a compreender o sofrimento humano e, principalmente, que, a partir do batismo, não temos superpoderes que nos isentam de qualquer sofrimento. E, sim, que temos um “superpoder”, absolutamente verdadeiro, que nos ensina a conviver com o sofrimento e compreender o sofrimento do outro.
Nas palavras do apóstolo Paulo, não existe espaço para um descompromisso com a criação. Viver o batismo não é se isentar do mundo, é compreendê-lo. Quando aponta para a verdadeira comunhão, para o exercício do carisma que Deus nos concede, Paulo não deixa espaços para dúvidas, medo ou covardia. Misericórdia é, como a própria palavra diz (misere – ter compaixão / cordis – coração), ter a capacidade de sentir o que o outro sente, compreender o sofrimento que está no outro, ser solidário. Corações solidários não são indiferentes. Sofrem juntos, mas visam atenuar o sofrimento do outro, compreendendo.
Enquanto escrevemos isso, estamos no auge da pandemia da Covid-19. Mais de dois mil mortos por dia. A vida relativizada ao extremo, a morte banalizada. Descompromisso com a vida notado em diversos momentos pela inatividade governamental. Pela incapacidade humana de compreender o sofrimento do outro. E Paulo nos ensina, assim como ensinou a Timóteo, a exercer nosso carisma neste mundo. Viver o batismo diariamente, compreendendo que estamos unidos pelo Espírito Santo que habita em nós, é muito mais do que estarmos unidos pela língua que falamos, pelo time que torcemos, pelo bairro ou país em que moramos. Somos, assim como Timóteo, herdeiros de uma boa nova que deve ser propagada aos quatro cantos da terra. Nesse anúncio não existe espaço para dúvidas ou medo. Somente para o amor.
Mário de Andrade no título do romance Amar, verbo intransitivo subverte uma regra da gramática portuguesa. Na norma culta o verbo amar é um verbo transitivo direto, ou seja, quem ama, ama algo ou alguém. Porém, por mais que a norma culta exigida em vestibulares e provas afirmem isso, no exercício do nosso batismo, havemos de concordar com Mário de Andrade. Para nós, cristãos e cristãs, a única maneira de compreendermos verdadeiramente o amor é tratá-lo como verbo intransitivo, daqueles que não necessitam de complementação, de um destinatário. Amemos apenas.
E amando verdadeiramente exercemos o carisma a que Paulo se refere no início do nosso texto. Compreendemos por meio do amor o sofrimento. Afastamos por meio do amor o medo e a covardia.
4. Subsídios litúrgicos
Sugerimos iluminar o templo com lanternas ou velas e dar um destaque à fonte batismal com alguma ornamentação.
Indicamos o hino 332 do HPD 2 (Deus está aqui) para ser uma boa moldura para o culto.
Oração: Querido Deus! Que habitas os montes e as colinas e desceste para habitar em nossos corações por meio de seu Santo Espírito! Reunimo-nos em tua presença para que por meio de tuas palavras possas abrir nossas mentes e corações e que assim, a cada dia, sejamos convidados a compreender e a resistir aos sofrimentos que nos cercam. Ajuda-nos para que por meio do teu amor consigamos levar alento àqueles que pelo medo se afastam de teu caminho de justiça. Que o nosso carisma seja a expressão maior de teu amor. Por nosso Senhor Jesus Cristo, que contigo e com o Espírito Santo reina de eternidade a eternidade. Amém.
Bibliografia
ANDRADE, Mário. Amar, Verbo Intransitivo. Itatiaia: Garnier, 2002.
OBERLINNER, Lorenz. Le lettere pastorali – Tomo Scondo: La seconda lettera a Timoteo. Brescia: Paideia, 1999.
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