Prédica: 1 Coríntios 8.1-13
Leituras: Deuteronômio 18.15-20 e Marcos 1.21-28
Autoria: Samuel Gausmann
Data Litúrgica: 4º. Doming pós Epifania
Data da Pregação: 28/01/2018
Proclamar Libertação - Volume: XLII
Mais coração, menos cabeça!
1. Introdução: fartar-se de que, por quê?
O texto previsto para a pregação nos traz um banquete de argumentações para nutrir nossa convivência social a partir da fé. Num contexto farto de opções, a sobriedade em favor do próximo deve pautar a convivência comunitária e social. Deuteronômio destaca que o conhecimento da vontade de Deus nos vem intermediado e aponta para a pessoa do profeta. O conhecimento por si só pode ser aiçoeiro. Deus é quem revela sua vontade para quem se compromete com ele. Como cristãos, desde nosso batismo, somos incluídos no sacerdócio geral e essa “fidelidade profética” também nos é exigida. A partir de nossa fidelidade é que vamos temperar nossa vida e ser tempero em nosso ambiente. Na leitura do evangelho fica claro que onde Deus está o mal não permanece. Diante da presença de Jesus, os espíritos maus se manifestam e são expulsos. Novamente o critério não é o conhecimento, mas o amor e a fidelidade, pois até os demônios conheciam quem era Jesus! É o amor que faz do conhecimento uma ponte que aproxima e não um muro que separa. Se tivermos a fé firme no coração, ela nos auxilia a ter clareza em nossas decisões. No período da Epifania, em que celebramos que Deus se manifesta à humanidade na pessoa de Jesus Cristo, vale ressaltar que o caminho da sabedoria não é o de uma mente que concorda, mas o de um coração que se converte. Fé cristã é muito mais um relacionamento inspirado que um conhecimento acumulado, é um relacionamento com Deus, inspirado por ele, que inspira a nos relacionar melhor conosco mesmos e com o próximo.
2. Exegese: analisando o cardápio
1 Coríntios 8.1-13 pertence ao contexto maior dos capítulos 7 a 16, em que Paulo responde a perguntas sobre problemas existentes na comunidade. O capítulo 7 trata de questões relativas ao casamento e à vida familiar, e no capítulo 9 o apóstolo sobre seu exemplo pessoal de renunciar em favor das outras pessoas. Paulo foi um missionário urbano que escolheu estrategicamente os grandes centros, como Corinto (a segunda maior cidade grega daquele tempo), de onde as comunidades podiam atingir todo o contexto à sua volta. A vida em Corinto se concentrava ao redor da ágora, a praça principal, onde templos, casas de comércio e órgãos político-administrativos disputavam o mesmo espaço.
Naquela época, era praticamente impossível viver em uma cidade grega sem deparar-se diariamente com o problema de comer carne que tinha sido oferecida em sacrifício a ídolos. Uma parte da carne sacrificada aos ídolos era queimada no altar, outra parte era comida em uma refeição no templo e uma terceira parte, a carne de menor qualidade, era vendida no mercado para uso doméstico. Para os judeus, comer esse tipo de carne era proibido. Para cada casa, pórtico ou departamento público havia uma divindade e um altar. As festas aos ídolos eram eventos sociais. Alguns dos cristãos coríntios julgavam que apenas assistir a um festival religioso não representaria conflito com a fé. A questão era: comer carne sacrificada aos ídolos é a mesma coisa que adorá-los? Seria uma transgressão ao primeiro mandamento? Esse dilema afligia também outras comunidades, como o demonstram outras referências (At 15.29; Ap 2.14), inclusive o livro da Didaquê [6.3]).
Os gregos aplicavam o termo “deuses” para suas divindades tradicionais, e o termo “senhores” para as divindades de seus cultos de mistério. O ídolo é de si mesmo nada no mundo, mas o apóstolo admite, entretanto, que existem aqueles que se chamam deuses. No contexto urbano pluralista estava lançado o desafi o de afirmar, a partir do evangelho de Jesus Cristo, que há um só Deus e um só Senhor (8.6) e que os demais chamados “deuses e senhores” (8.5) na verdade não o são. É a confissão monoteísta marcando presença no contexto urbano politeísta. Paulo qualifica esse conhecimento de libertador (8.9), pois ele liberta as consciências em relação à infl uência do pensamento politeísta e capacita para a empatia com os que não têm conhecimento e por quem Cristo também morreu (8.11). A edificação dos “fracos” tem prioridade sobre a liberdade dos “fortes”. Paulo percebe a complexidade da questão, pois o fator “familiaridade com o ídolo” (8.7) desempenha decisivo papel na convivência, pois não se troca um padrão cultural como se troca de roupa.
A arrogância torna o conhecimento já adquirido um ponto final, que provoca um comportamento inconveniente, sendo que a arrogância não só leva a um conhecimento limitado, como também a um comportamento inadequado. O conhecimento na perspectiva cristã não é tanto algo ativo (que a própria pessoa busca), mas algo passivo. É o relacionamento com Deus que traz a sabedoria, e não o contrário. Nesse sentido, vale ressaltar que o v. 3 fala que é pelo amor que temos acesso a Deus e não pelo conhecimento. É através do amor que Deus se revela a nós e nos mantém junto dele. Paulo percebe que os cristãos em Corinto dividiram sua igreja em partidos (fortes e fracos) pela sua imaturidade, cometendo um pecado muito maior que comer ou não carne sacrifi cada: mutilaram o corpo de Cristo – a unidade da comunidade.
Da gastronomia à teologia, tudo deve ser cozinhado em amor tal como em banho-maria, com a devida persistência. Nas questões morais secundárias, como o comer da carne oferecida aos ídolos, a liberdade deve ser dosada pelo amor. Em primeiro lugar, a tirania em querer impor sua forma de pensar e agir e a soberba de julgar-se superior representam ingredientes nocivos, os quais fazem qualquer receita de convivência desandar. Em segundo lugar, o apóstolo enfatiza que a decisão de amar e a atitude de renúncia pelo bem do todo é do irmão mais “forte”. Paulo identifica-se com o “grupo forte”, mas está disposto a abrir mão da liberdade de comer carne para não escandalizar os irmãos “fracos”. A palavra grega skandalizo significa tropeço, armadilha, impedimento, ou seja, é tudo aquilo que faz tropeçar ou que seduz para o pecado, é o que desvia de Cristo.
Nesse sentido, o crente maduro não é regido pelos seus direitos, mas pelo amor. É pelo seu conhecimento que o irmão forte vai ao encontro do mais fraco e, se preciso, renuncia a seu direito voluntariamente. É muito significativo que Paulo, ao tratar da carne sacrificada aos ídolos, não apela para o pronunciamento do Concílio de Jerusalém (At 15.19-20). Teria sido fácil resolver o problema mediante o recurso a uma lei em vigor em toda a igreja. Em vez disso, ele apela aos conceitos espirituais mais sublimes, que os gregos apreciavam muito.
O desafio que Paulo lança é encontrar uma maneira de viver na cidade, agora que o critério se tornou o evangelho de Cristo. O caminho do evangelho no meio urbano é caracterizado pela conflitividade. No entanto, o exercício evangélico da cidadania não se concretiza no isolamento em relação ao urbano, mas no esforço organizado e comunitário para uma inserção embasada na fé.
3. Meditação: dor de barriga ou peso na consciência?
À primeira vista, pode causar estranheza o assunto de comida sacrificada a ídolos como se fosse algo desconectado do mundo atual. Pode causar desconforto ao pregador e à pregadora lidar com um assunto complexo por precisar de muita pesquisa para compreendê-lo e muita inspiração para contextualizá-lo. Por isso começo questionando o seguinte: será que, de fato, não continuamos a comer comida sacrificada a ídolos e principalmente ao “ídolo Mammom”? Em 1589, o bispo alemão Peter Binsfeld elaborou sua própria classificação de demônios, associando cada um deles a um pecado capital. A cobiça/ganância foi associada a Mammom. O lucro é como uma divindade na sociedade moderna e tudo gira em função dele. Vivemos em um tempo em que sabonetes têm vitaminas, e a comida veneno. O lucro a qualquer custo torna nossas mesas altares de Mammom. Se pesquisarmos a procedência de tudo o que comemos, vamos perder o apetite! Que postura cristã precisamos ter diante do “deus mercado”? Assim como a sociedade de Corinto da época de Paulo estava imersa no pluralismo religioso, nós estamos imersos no consumismo desenfreado. E sem falar em outras situações como, por exemplo: um cristão pode comer acarajé sendo que esse alimento é geralmente oferecido a orixás? Até que ponto um cristão pode consumir bebida alcoólica sem implicar prejuízo para si mesmo ou causar escândalo a outros? Uma comunidade cristã pode promover festas regadas a bebidas alcoólicas?
Como definiu muito bem o filósofo Zigmunt Baumann, vivemos em tempos líquidos. É difícil distinguir o preto do branco quando tudo se manifesta em tons de cinza. É sintomático que livros como “50 tons de cinza” fazem tanto sucesso porque também na sexualidade e afetividade a permissividade predomina. O enfoque é o próprio prazer sem levar a outra pessoa em consideração. Sacrifício e doação estão fora de questão quando o assunto é relacionamentos.
Não é necessário isolar-se do mundo em uma estufa espiritual, cortando todos os vínculos com pessoas de outra orientação religiosa. A liberdade cristã termina onde começa a consciência do seu irmão, da sua irmã. O amor, não o conhecimento, estabelece os limites da liberdade cristã. Para muitos, o conhecimento é a chave que destranca a liberdade. Se não for dosada essa liberdade, nos tranca numa prisão egocêntrica. Pode ser que existam coisas que para nós não representam uma tentação, mas que são tentações violentas para outras pessoas. Portanto, ao considerar se faremos ou não determinada coisa, devemos pensar não só em seu efeito em nós, mas também no impacto ao próximo.
Liberdade cristã é um estilo de vida difícil e desafi ador, que exige muita maturidade, humildade e decisões diárias sobre o certo e o errado, o melhor e o pior, o conveniente e o inconveniente. Vai além do nosso conhecimento porque exige amor. Há pessoas que sabem muito, mas não amam. O uso de minha liberdade, sem levar em conta a situação do meu próximo, poderá fazê-lo recair no contexto nocivo do qual Cristo o libertou.
Precisa-se cuidado para não cair em conduta legalista. Nesse sentido, é inspirador lembrar que as novas comunidades em formação na época de Paulo apresentavam uma nova proposta de convivência social a partir de sua inserção, e não isolamento ou pré-condenação da ordem estabelecida. Por isso a abordagem do apóstolo é argumentativa e flexível, pois tudo ainda estava em construção. Paulo é quem fez a transição do ser igreja do contexto rural dos primeiros discípulos e Jesus para o contexto urbano. O que ocorre em grande parte nessa e em todas as cartas paulinas é a busca concreta pelo caminho novo. Nossa prática deve ser inclusiva sem deixar nossa teoria ser relativizada.
Admitindo-se as diferenças, tem-se condições de aprender, crescer e ensinar. O cristianismo é exemplo clássico disso, pois enquanto os judeus-cristãos insistiam em abolir diferenças, impondo o modo de vida judaico, o cristianismo correu sério risco de tornar-se seita judaica. Com a proposta paulina de assumir as diferenças como parte integrante e constituinte da fé, o cristianismo tornou-se apto para superar-se e crescer.
Toda essa doutrina moral cristã é comunitária e não individual. A dimensão individual é moldada pelo coletivo e não vice-versa. Baseados na excelência da sua gnose, os diversos grupos religiosos e culturais de Corinto entendiam-se libertos e Paulo redimensiona essa noção de liberdade vinculando-a ao servir por amor.
4. Imagens para a prédica: apetecendo a comunidade para o serviço
Mostrar à comunidade um sabonete com vitaminas e um alimento (tomate, maçã etc.), comparar os dois como introdução à temática, conforme a reflexão da meditação acima.
Não podemos seguir a estratégia da avestruz que, escondendo a cabeça na terra e por não ver a realidade e o perigo, acha-se seguro. Nem podemos agir como um camaleão que, conforme o ambiente, muda de cor. A igreja de Cristo é enviada ao mundo, vive no mundo, mas não é do mundo. Não podemos ser sal apenas dentro do saleiro. Sua serventia está no contato com o exterior. Afinal, o sal só vai salgar o alimento em contato com ele. Nem sempre se acerta a receita na primeira vez. Mas não vamos desistir de buscar sabor porque uma vez experimentamos amargor.
A comunidade deve ser lembrada de que em seu meio também há “fortes” e “fracos”. Como os departamentos na comunidade se relacionam e de que forma as orientações do apóstolo podem servir de inspiração na interação entre paróquia, sínodo e IECLB? Como isso pode impulsionar a parceria ecumênica e a ação social da comunidade em seu contexto?
Na perspectiva da justificação, a cultura também deve ser pensada em função da prática do amor consciente e libertador. Dessa forma, também a cultura popular, por mais simpática e “inofensiva”, deve passar por esse filtro: serve a quem? Celebramos 500 anos da Reforma Protestante: agora são outros 500. Temos propostas de interação com a sociedade e inserção nos contextos urbanos de nosso país? O que estamos informando (receitas), formando (cozinhando) e reformando (temperando) como comunidades de fé, herdeiras da Reforma de Martim Lutero?
5. Subsídios litúrgicos: alimentando a espiritualidade
Versículo de acolhida ou para a Liturgia da Palavra: 1 Coríntios 1.23-25
Engolimos sapos. Engolimos o choro.
Mas não engolimos o orgulho. Vomitamos palavras de ódio.
Não alimentamos a alma.
Sobrecarregamos o corpo pela estética
e afrouxamos a moral por falta de ética.
Ruminamos o que a mídia propõe.
Queremos sabor, mas temos pressa.
Queremos quantidade e esquecemos a qualidade.
Não questionamos a procedência, queremos mesmo é a aparência.
Onde foram parar a fome e a sede por justiça?
Somos empanturrados pelo narcisismo, individualismo, materialismo.
Fechemos a boca, abramos os olhos, estendamos as mãos!
Busquemos Jesus, que de si mesmo diz: Eu sou o pão da vida,
quem vem a mim não terá fome e quem crê em mim não terá sede.
Bibliografia
BRAKEMEIER, Gottfried. A Primeira Carta do Apóstolo Paulo à Comunidade de Corinto. Um comentário exegético-teológico. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2008.
SCHNEIDER, Nélio. Primeira Carta de Paulo aos Coríntios. São Leopoldo: CEBI, 2008.
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