UM SINAL NO MUNDO
1 Corintios 3.11
45ª. Assembléia Geral Ordinária do Sínodo Rio-grandense, Santa Cruz do Sul1
Estamos aqui reunidos, os representantes de todas as comunidades do Sínodo Rio-grandense, no seio da mesma comunidade, na qual, há 59 anos, se realizou o Primeiro Concílio Geral da Igreja Evangélica do Rio Grande do Sul2. Há duas semanas comemoramos, em São Leopoldo, o sexagésimo aniversário da Igreja. Há uma semana levamos ao seu derradeiro repouso o último dos fundadores de nossa Igreja3. Hoje estamos nós aqui em Santa Cruz para deliberar e resolver sobre o futuro caminho da Igreja. Estamos aqui não como indivíduos, que nada mais têm a seguir do que sua opinião pessoal, mas como membros de comunidades evangélicas, representando a totalidade de urna Igreja. Como tais achamo-nos num determinado lugar, e esse lugar é indicado pelo nome Jesus Cristo. É o mesmo lugar no qual se acharam os nossos pais e no qual, como esperamos, se acharão os nossos filhos. A Igreja não começa conosco, e ela não termina conosco. Mas agora, hoje, ela a nós é confiada. O que faremos dela? Saibamos que pelas decisões que tomarmos, somos responsáveis perante toda a Igreja, perante o seu passado e o seu futuro : somos responsáveis perante Aquele que era no passado e que será no futuro o Senhor de sua Igreja. Que Ele seja também hoje o nosso Senhor! Que Ele queira hoje dirigir os nossos pensamentos e inspirar as nossas palavras. Sem Ele tudo será em vão. Mas estando Ele conosco, como o Senhor de nós todos, o Senhor de cada um de nós, então, sim, Ele poderá aceitar as nossas decisões; então Ele poderá edificar, também por nós, a sua Igreja assim como a edificou por nossos pais.
Tornar-se-á então visível, também entre nós, nestes dias, que é a obra de Cristo que aqui nos reune, e não a nossa própria obra. Tornar-se-á visível que pensamos, falamos e agimos baseados naquele que é o único fundamento da Igreja. Saber-nos-emos incluídos como membros naquela comunidade que com Pedro e os outros apóstolos confessa: Tu és Cristo, o Filho de Deus vivo. (Mt. 16,16)
Esse fundamento não é posto pelos homens; quanto a isso nada temos que deliberar. O fundamento já foi posto, uma vez por todas, por Deus. E pertencer à Igreja é saber-se edificado sobre esse fundamento, não por nossa vontade ou decisão, porque não fomos nós que o escolhemos, mas Ele, em sua supremacia, se tornou poderoso sobre nós; Deus aceitando-nos em Cristo, é que decidiu sobre nós.
Por isso na Igreja não podemos agir, como se aqui se tratasse de nossa opinião sobre Jesus e de que outros se convertam para essa nossa opinião. A Igreja com toda a sua ação só pode querer tornar visível o fundamento no qual tem a sua existência; ela quer ser um sinal no mundo, quer ser testemunha de que Deus mesmo em Cristo pronunciou a sua decisão fundamental sobre os homens; e com tudo que faz, quer chamar os homens para que aceitem e se submetam a essa decisão. Por isso a sua ação principal, aquela que determina todas as outras, é a pregação do Evangelho da benigna decisão do santo Deus, que em Jesus Cristo vem ao encontro de nós e nos salva em sua morte e ressurreição. Dessa mensagem, dessa palavra que Deus pronunciou em Cristo, vive a Igreja.
Mas essa Igreja que tem o seu fundamento posto por Deus mesmo, é formada de homens. E a existência desses homens deve corresponder ao fundamento. Pela nossa vida, pela nossa atitude toda tem que transparecer que nós mesmos ouvimos e aceitamos a palavra, pela qual Deus em Cristo decidiu sobre nós. Só poderá ser assim que a nossa vida seja uma viva confissão de fé.
Naquela primeira vez em que neste mundo foi pronunciada a fé em Cristo, o Filho de Deus, naquele dia em Cesaréia de Filipe, Jesus, logo em seguida, adverte os seus discípulos de que o seu caminho é o caminho para a cruz. E o apóstolo Paulo declara: Nós pregamos a Cristo, o crucificado. (1 Cor. 1,23) Ao fundamento da Igreja está incluída a cruz. A cruz, porém, para o mundo é repugnante, chama a sua resistência e oposição. A Igreja não pode calar da cruz, não pode escondê-la. A tentação é grande, muitas vezes; mas mesmo para ganhar o mundo, a Igreja não pode permitir que seja considerada apenas como instituição conservadora na sociedade humana, que seja recomendada e propagada pelos seus múltiplos benefícios que já trouxe à humanidade e à sua cultura, esquecendo-se completamente de que o seu fundamento é o crucificado. A Igreja jamais se pode subordinar a interesses e fins que não lhe são indicados por Ele. A Igreja é serva de Cristo, mas não é serva de interesses deste mundo. Esse fato, muitos não querem percebê-lo; mas nós, a Igreja, temos que reconhecê-lo. É por isso que a Igreja não pode e não deve tomar em consideração as múltiplas repreensões de que ela tenha fracassado, por não se ter logo adaptado a essa ou àquela nova corrente ou situação no mundo. Deveríamos saber que a Igreja não vive de correntes e situações do mundo nem a elas pode obedecer. A única repreensão legítima, a única crítica que a Igreja não pode deixar de ouvir, seria esta de se ter afastado de seu fundamento, de não ter seguido a Cristo, seu único Senhor.
Ele, o fundamento, sobre o qual estamos edificados, nos diz: Quem quiser seguir-me, negue-se a si mesmo, tome sobre si a sua cruz e siga-me. (Mc. 8.34; Mt. 16.24) Nós, também na Igreja, gostamos mais de ir os nossos próprios caminhos, gostamos de insistir em nossa liberdade, e, em se tratando de lutar, preferimos as nossas próprias lutas pelos nossos próprios interesses. E com isso nos afastamos de Cristo, nos excluimos de sua Igreja. Porque Ele indicou um outro caminho para os seus: Negar-se a si mesmo e seguir a Ele que vai o caminho para a cruz, e entregar-nos a nós mesmos e aos nossos interesses à cruz e à sua sentença; que tudo aquilo que é propriamente nosso, e o que nos separa um do outro, diariamente seja entregue à morte: o nosso pecado e a nossa virtude, o nosso orgulho e a nossa coragem, o nosso direito e a nossa honra, para que não reste mais nada do que Ele, Cristo, e o que Ele de nós fizer. Ele vai diante de nós. Ele, o crucificado, é o fundamento de nossa fé, o fundamento de nossa confiança. Submetendo-nos à sentença da cruz sobre nós, ouvimos a outra palavra da cruz, a palavra do amor que morre, para que nós vivamos. A cruz de Cristo é a decisão fundamental de Deus sobre nós, e essa decisão é vida, e por isso somente dessa cruz, que é a negação de tudo o que somos por nós mesmos, recebemos a força para sermos, pela nossa vida, o que Deus quer que sejamos. Porque a palavra da cruz é um poder de Deus para salvar a todos que nela crêem.
A cruz, a negação do nosso poder e da nossa sabedoria, mas a manifestação da sabedoria e do poder de Deus, ela nos torna bem humildes; ela não deixa lugar a nenhum orgulho nosso e torna impossível qualquer rivalidade humana. Ela nos faz pequenos, deixando-nos reconhecer que somente Cristo é grande. E mostra-nos como é uma tarefa além e acima de todas as nossas possibilidades, a tarefa a nós confiada de edificarmos a sua Igreja. Mas, somente assim Cristo quer utilizar-se de nós. Lembremo-nos, pois, sempre de que o fundamento já foi posto, por Deus mesmo, e esse fundamento é tal que todo o nosso fazer e edificar só pode consistir em seguí-lo, negando-nos a nós mesmos. Seguir a Jesus é a regra fundamental para todo o trabalho da Igreja. Deixemos de considerá-la como nosso empreendimento e de exigir que ela corresponda aos nossos desejos. Isto não é a Igreja, onde nós nos propomos realizar isso ou aquilo; mas esta é a Igreja, onde Cristo em sua condescendência se propõe a realizar em nós a sua obra, ,sem mérito ou dignidade alguma de nossa parte. Nós não somos autônomos, nem comunidades, nem pastores, nem o Sínodo; nós todos somos servos; Cristo sozinho é o Senhor. Nós nunca dispomos dele, mas Ele quer sempre dispor de nós. Por isso não pode e não deve nunca parecer como se o Evangelho fosse uma mercadoria que a Igreja possui e oferece e propaga. Mas teremos todo o cuidado, para que sempre seja manifesto que a Igreja tem um Senhor, de cuja palavra ela mesma vive, e em cuja obediência ela não pode deixar de dizer a palavra. E de que Cristo, por sua palavra, seja o vivo Senhor de sua Igreja, disso são responsáveis não só os pastores, mas igualmente as comunidades.
Há 40 anos, mais ou menos, o então presidente do nosso Sínodo, referindo-se ao particularismo e individualismo que dificultavam a realização da Igreja, disse as palavras: É tempo de deixarmos uma vez para trás as nossas moléstias de infância4. Hoje podemos constatar, com gratidão, que em nossas comunidades cresceu a compreensão pelo todo da Igreja; mostrou-se, nos últimos anos, que existe entre nós a firme vontade de sermos Igreja. Mas, não perdeu ainda de todo a sua verdade aquela palavra. Vastamente a Igreja é reconhecida e desejada por sua necessidade e utilidade. Mas antes de tudo é necessário reconhecer, e disso sempre temos que lembrar-nos, que a Igreja não existe para servir aos nossos interesses humanos. A Igreja serve a Cristo. Querer a Igreja é querer a Cristo como nosso Senhor, e não a nós mesmos. Querer a Cristo, porém, significa querer Aquele, no qual nós os muitos com todas as nossas diferenças temos que achar-nos. Neste lugar, neste fundamento, sempre de novo temos que deixar colocar-nos, por Ele mesmo, ouvindo e seguindo a sua palavra.
O que faz e forma a Igreja não será, portanto, a força de nossa convicção e vontade; não será também a perfeição de nossa ordem e de nossas instituições; e não será tampouco a nossa teologia e doutrina. O que faz a Igreja, o que mantém e salva a Igreja, é sempre e unicamente a mão de Deus, que em Jesus Cristo nos segura; é sempre a benignidade e misericórdia divina, que veio em Cristo para salvar-nos a nós, que sem Ele estávamos perdidos.
Neste lugar, nesta situação estamos nós, a Igreja em meio ao mundo. É um mundo em desordem e confusão. É um mundo de sofrimento e aflição. E essa aflição não nos pode permanecer alheia. É também a nossa aflição. Não procuremos culpar ao mundo por sua desordem, mas procuremos a nossa culpa, e com ela nos aproximemos da cruz. Também agora Cristo o Senhor espera que ponhamos nele toda a nossa confiança, que sirvamos a Ele e o sigamos, também na aflição. Então veremos que há muito que fazer. Representantes das comunidades : considerai que a maior parte de vossos pastores estão hoje mais diretamente atingidos pela aflição do mundo do que vós. Pensai somente no que significa: perder a sua pátria terrestre por longos anos. Se quereis a vossa Igreja, dai-lhes, aos vossos servidores, ao menos a possibilidade de cumprir a sua tarefa aqui entre nós com confiança; mostrai-lhes vossa compreensão, para que possam servir-vos, pregando-vos o Evangelho, sem preocupações desnecessárias. O nosso cristianismo de nada vale, se ele não se manifesta também na nossa atitude para com as necessidades da Igreja e dos irmãos na Igreja.
Cristo está na aflição. E Ele espera por nós. E por isso a Igreja que o segue, não perecerá na aflição, porque Cristo está com ela. E se nós desesperarmos pela nossa fraqueza, Ele pode realizar justamente o que a nós é impossível. Porque a sua graça se torna eficiente em nossa fraqueza. Confessemos a Ele a nossa culpa e a nossa fraqueza. Deixemos tudo o que nós julgávamos saber e poder realizar; a Ele o entreguemos pedindo: Tu, Senhor, só tu nos podes e queres ajudar. Vem, Senhor, e ajuda! Edifica tu mesmo o teu reino! Vem e salva e governa tu em meio à nossa fraqueza e confusão e culpa a tua Igreja!
Seja este o sentido, meus irmãos, no qual hoje aqui nos reunimos como Igreja: com gratidão para com os pais que, antes de nós, em obediência ousaram pôr mãos à obra que é de Deus. Ousemos nós continuar o que eles começaram, na mesma obediência e gratidão para com Aquele que é o fundamento da Igreja. Essa gratidão nos indica a nossa atitude. Torna-nos humildes perante o Senhor, do qual inteiramente dependemos, e essa humildade perante Deus exclui qualquer mérito de nossa parte; nos faz ver e reconhecer os irmãos ao nosso lado, A gratidão para com Deus, se fôr verdadeira, há de manifestar-se em sermos nós uma verdadeira união fraternal, na qual há inteira confiança dum para com o outro por ser ela inspirada e dirigida por Aquele que está em nosso meio como Senhor e Salvador de todos e de cada um pessoalmente. Queira este dia tornar forte o nosso amor à Igreja como amor a Cristo. Queira ele tornar forte a nossa gratidão por sabermo-nos, em nossa vida toda, como membros da Igreja, edificados sobre o eterno fundamento que é Cristo, nosso Senhor.
Notas:
1 Assembleia depois da II Guerra Mundial. A 44ª. Assembleia realizara-se de 21 a 24 de maio de 1937, igualmente em Santa Cruz do Sul.
2 A 4 e 5 de maio de 1887.
3 Conrad Schreiber, nasc. em 1854 em Weidenhausen/Hessen, Alemanha, fal. a 25 de maio de 1916 em Porto Alegre; pastor em São Sebastião do Caí RS de 1882 a 1920.
4 Dr. 'Wilhelm Rotermund disse no seu relatório na 23ª. Assembléia Geral do Sínodo Riograndense, realizada em novembro de 1911 em São Leopoldo: «Wir wollen hoffen, dass die Zeit der Kinderkrankheiten, die sie (die Synode) durchgemacht hat, nun vorüber ist...» (Synodalbericht p. 27).
Pastor Ernesto Schlieper
2 de Junho de 1946 (Exaudi),
Veja:
Testemunho Evangélico na América Latina
Editora Sinodal
São Leopoldo - RS