DIA DA REFORMA
AS TESTEMUNHAS E O SENHOR
1 Coríntios 3.1-17 (Leitura: Salmo 111)
Ao celebrarmos o Dia da Reforma, costumamos olhar para o passado. Costumamos falar de Lutero e dos outros reformadores, que, há quatro séculos e meio, ergueram a sua voz — não só para protestar, mas para proclamar o evangelho, num tempo em que tradições e opiniões humanas vinham abafando mais e mais a voz de Cristo. — Poderá ser bom e necessário, olharmos para o passado. Poderá ser em sinal de gratidão aos servos de Deus que empenharam seu coração e seu cérebro, sim, que empenharam a sua vida, para traduzir e interpretar a Bíblia, para expor com clareza as bases da fé cristã e para deixar claro que igreja era o povo de Cristo, ligado a seu Senhor pela fé, e que as instituições e organizações eclesiásticas eram apenas os andaimes, colocados para servirem ao templo verdadeiro de Deus. Os mestres do passado poderão ser para nós uma espécie de balizas, de estacas, fincadas em uma direção definida, que apontam para o centro da igreja, para Cristo. Assim, eu confesso que, para mim, Lutero tem sido uma tal estaca, enfileirada com outras estacas, enfileirada com as primeiras e principais balizas da cristandade, os apóstolos de Jesus, principalmente com o apóstolo Paulo. Em momentos de dúvida e de incerteza, não poucas vezes esta baliza me apontou o rumo para Cristo. Seríamos ingratos, se esquecêssemos tal serviço recebido por um mestre do passado.
Mas, olhar para o passado encerra também um perigo. A gente poderá esquecer que um mestre da fé é apenas um dedo indicado na direção de Cristo; que ele assinala apenas o lugar de uma estaca, de uma baliza fincada num chão histórico definido, fincada à margem do caminho do povo de Deus -- nada mais e nada menos. O perigo é que os discípulos do mestre com «m» minúsculo se poderão esquecer de que eles são, em primeira e última instância, discípulos do Mestre com «M» maiúsculo. Poderão esquecer de que não foram chamados por seu Senhor para cerrarem fileiras em redor da baliza, ou para formarem outra fila de estacas pequenas, enfileiradas em direção da baliza grande, como se ela fosse o centro da igreja. Poderão esquecer de que os cristãos foram chamados para olharem sobre as balizas do passado, na direção em que elas apontam, para o único Senhor e Salvador: para Cristo, o Filho de Deus.
Nós nos chamamos de luteranos. Dizemos que somos evangélicos de confissão luterana. Outros se dizem calvinistas, metodistas, batistas. A maior parte da cristandade se diz católica-romana, com uma respeitável fileira de balizas, papas e teólogos doutos, a cerrarem fileiras até os primeiros séculos da cristandade, — Estamos vendo o perigo? Os cristãos, cada um• em sua fileira de estacas, olham por esta fila para o passado, e poderão ter a vista estreitada, de forma a verem toda a história da igreja reduzida a um estreito corredor. Quem está fora deste corredor, é como se não existisse. Não há intercâmbio entre os corredores, não há diálogo. Isto é uma situação alarmante que não nos deveria deixar tranqüilos. Frente à divisão da cristandade em igrejas e seitas, discípulos de Cristo, que afinal fundou uma igreja só, nunca poderão ficar tranqüilos. — Consta que Lutero não quis criar um tal corredor estreito, separado do resto da cristandade. Ele quis a Reforma de toda a Igreja (E, quem sabe, se em seu tempo, em lugar dos papas Leão, Hadriano e Clemente — homens como João XXIII, Paulo VI e João Paulo 1 tivessem sido os líderes da Igreja, a Reforma teria sido geral mesmo!). Lutero também não quis que os que ouviam sua pregação se chamassem de luteranos. Chegou a fazer a proposta séria que, quando ele morresse, se queimassem todos os seus livros (e são mais de cem volumes grossos, livros profundos e valiosos) e que em seu lugar se pusesse só a Bíblia no lumieiro, Bíblia que ele tinha traduzido, em 20 anos de trabalho, para a língua do seu povo.
Poderemos dizer: Sim, mas foram os outros que nos chamaram de «luteranos» e de «protestantes». Foram os outros que nos botaram a etiqueta. Nós queremos ser apenas cristãos, em sentido bíblico, discípulos de Cristo em nosso tempo, assim como Lutero o foi no seu tempo, Lutero — e todos os mestres autênticos da igreja. — Mas verdade é que nós também nos achamos dentro de um corredor — assim como qualquer cristão do mundo. E, contudo, sabemos muito bem que não é nem o corredor, nem as estacas enfileiradas, postas ao lado do caminho do povo de Deus, que nos salvam. Sabemos que o único Salvador é Jesus Cristo, o Filho de Deus, É neste sentido que quero entender Lutero, quero entender também a sua doutrina da justificação do homem pela graça de Deus, não por suas obras humanas; neste sentido quero entender sua mensagem: «Só por Cristo, só pela fé, só pela Escritura.» -
Tenhamos, pois, a lógica luterana de não fixarmos o olhar em Lutero, no dia dedicado à comemoração da Reforma,, Tenhamos a lógica luterana de neste dia olharmos para Cristo, de aprendermos dele a sermos membros do povo de Deus. Tenhamos a lógica luterana de ouvirmos o testemunho apostólico, de forma direta, testemunho dirigido ao nosso presente, rogando a Deus que nos livre de qualquer condicionamento humano, de qualquer tradição contrária ao evangelho que nos possa turvar o olhar para aquele, que é a luz do mundo.
O apóstolo Paulo teve que lutar com um problema semelhante ao de Lutero: Na comunidade de Corinto, fruto de sua pregação, depois de algum 'tempo surgiram pessoas que se agruparam em redor de balizas, As principais «balizas», as principais «estacas» daquele tempo eram Pedro, Tiago e João, que Paulo, em Gálatas 2,9, chama de «colunas,» Mas em Corinto, as duas balizas mais importantes eram Paulo e Apolo, ambos testemunhas de Cristo, agraciados com grandes dons. E então foram aparecendo os que se agarraram às estacas: Uns diziam que eram de Paulo, outros afirmavam que eram de Apoio. Paulinos e apolinos, portanto. Dois corredores formados — conforme a natureza carnal do homem, que parece precisar •de partidos e de facções para se afirmar a si mesmo; para poder dizer que os outros é que são os errados. O fim deste espírito leva à Irlanda do Norte ,.-- onde até o presente se combatem «católicos» e «protestantes» não com argumentos da fé, mas com bombas e com metralhadoras. Em realidade são duas tribos mais ou menos pagãs que lá se combatem.
Paulo, em nosso texto, clã um banho frio — não só nos adeptos de Apoio, mas também a seus próprios «bons paulinos». Dá o mesmo banho frio que Lutero, se vivesse hoje, daria a nós, luteranos, enfileirados em nosso corredor. Paulo diz que os coríntios não são espirituais, mas que são carnais. Que ele não lhes pôde dar alimento sólido, mas sim, leite, como se dá a bebês. Os «paulinos» e os «apolinos» da comunidade cristã de Corinto não se estão comportamento como adultos em Cristo, mas sim como crianças. São infantis. Precisam de mamadeira. E- o apóstolo não deixa de dizer o que ele precisa dizer, mesmo que com isso corte para dentro de sua própria carne (Paulo também tinha o seu lado carnal, bem assim como Lutero e como nós!), mesmo que ofenda o partido paulino que se agrupou em redor de sua pregação e de sua pessoa. Ele diz sem rodeios: Se entre vocês há ciúmes e brigas, se um diz que é de Paulo, outro que é de Apoio, então é sinal de que vocês não são espirituais, e sim carnais: «então é evidente que andais segundo os homens,»
E Paulo vai dando a mamadeira a estes cristãos bebês em Corinto. Mamadeira que contém leite bom e genuíno. Diz que Paulo e Apoio são servos do Senhor, servos que lhes pregaram o evangelho conforme os dons que tinham recebido de Deus, servos, por meio dos quais os coríntios chegaram a ter fé. Diz que eles, Paulo e Apoio, foram que nem agricultores que trabalharam na mesma lavoura: Um plantou, o outro regou, mas foi Deus quem deu o crescimento: «Ora, o que planta e o que rega são um.» Como são um? Não são dois? São duas pessoas, sim. Mas já que servem ao mesmo Senhor, já que seguem o mesmo propósito, não será possível separar Paulo de Apolo, não será possível jogar um contra o outro, sem ofender o dono da lavoura, que é Deus: «Porque de Deus somos cooperadores. A lavoura de Deus, o edifício de Deus sois vós.»
Assim, depois de ter comparado a comunidade de Corinto com a lavoura de Deus, Paulo passa a compará-la com um edifício erguido por Deus: Paulo, o primeiro pregador da cidade, lançou o fundamento, como prudente construtor. Os outros — que edifiquem sobre este fundamento! Edifiquem com prudência e com responsabilidade: «Cada um veja como edifica.» E depois diz com clareza qual é o fundamento que ele dançou: Não fala de coisas secundárias. Não fala de andaimes nem de estacas. Não fala de diferenças de dons existentes entre ele e Apoio. Paulo diz esta coisa maravilhosa —. a paulinos, apolinos, luteranos, católicos, presbiterianos, metodistas, batistas e a todos os que querem ser de Cristo: «Porque ninguém pode pôr um outro fundamento, além do que foi posto, o qual é Jesus Cristo.» Isto, por um lado, é leite de mamadeira, que ele vai dando. Mas por outro, é comida firme, comida salgada, para adultos mesmo. Paulo deixa tudo de lado que possa ser importante também, e diz o que realmente importa. Deixa as estacas (inclusive as colunas, lá de Jerusalém) de lado e aponta para Cristo. Não para uma teoria sobre Cristo, mas para Cristo mesmo. Ele é o Senhor. Não há outro Senhor além dele. Ele é o fundamento. Não há outro fundamento, além dele. Todos que construírem sobre este fundamento, são responsáveis perante seu Senhor pelo que fazem: O dia do juízo o manifestará, se alguém construiu com ouro, prata, pedras preciosas, madeira, feno ou palha. O fogo, que vai assolar a construção, vai manifestar a obra de cada um de Paulo, de Apolo — de Lutero, de Calvino, do Papa Leão, que excomungou Lutero, do Papa João XXIII, que, com o II Concílio Vaticano iniciou um movimento de Reforma na Igreja Católica. E vai manifestar também a obra de pequenos construtores, de serventes como de você e de mim — porque cada cristão é, ao mesmo tempo, pedra de construção — e é também construtor seja ele o mais humilde servente.
«Não sabeis que sois o santuário de Deus, e que o Espírito de Deus habita em vós? Se alguém destruir o santuário de Deus, Deus o destruirá; porque o santuário de Deus, que sois vós, é sagrado.»
É uma coisa muito séria que o apóstolo nos vai dizendo, no dia dedicado à Reforma. Ele nos diz com clareza que não somos pessoas etiquetadas desta ou daquela maneira, presas em suas tradições religiosas. Ele diz que somos santuário de Deus, templo de Deus, cujo fundamento é Jesus Cristo. Isto implica que deixemos de olhar por aquele corredor estreito corredor carnal e humano — que ergamos os olhos para Cristo. E erguendo os olhos para Cristo, vejamos o todo de sua obra de salvação. Que oremos por nossos irmãos de outras igrejas. Que nos alegremos por toda reforma autêntica que se está processando, também fora de nosso canteiro da lavoura de Deus; também pela Reforma que atualmente se está processando na Igreja Católica. Que as balizas também a grande baliza de Lutero — nos sirvam de orientação — para que enxerguemos com clareza o Salvador e a sua obra: a edificação do santuário eterno de Deus.
Oremos: Pai Celeste: Damos-te graças, de coração, por nos teres dado mestres que nos lembraram de tua divindade e de tua justiça. Agradecemos-te também pelos benefícios espirituais que temos recebido através da Reforma de Lutero. Rogamos-te que nos guardes de todas as falsas dependências. Que nos faças depender de teu Filho Jesus Cristo. E rogamos-te por todos os nossos irmãos, de todas as igrejas, para que construam, com fé e confiança, sobre o fundamento de Cristo. Amém.
Veja:
Lindolfo Weingärtner
Lançarei as redes - Sermonário para o lar cristão
Editora Sinodal
São Leopoldo - RS