Estimados irmãos e estimadas irmãs!
Uma grande parte de população brasileira vive em cidades. Esta realidade fez com que a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil - IECLB tomasse como referência essa realidade na escolha do tema do ano de 2014: Vias em Comunhão/ViDas em Comunhão.
A cidade se caracteriza pela circulação de milhares de pessoas num mesmo território, num mesmo espaço. A cidade se torna espaço de encontro e nela as pessoas estabelecem milhares de relações. Ela se torna espaço para a concentração das pessoas que buscam viver e/ou sobreviver. As pessoas que circulam e se relacionam são pessoas diferentes entre si quanto a sua aparência, a sua cor da pele, a sua formação, a sua condição social, a suas visões de mundo e suas ideologias, a seus credos e crenças, etc.
Em meio a toda esta movimentação, não raras vezes ocorrem tensões e conflitos. Os encontros viram des-encontros. Os estremecimentos e as contrariedades podem ser motivadas por diversos fatores. Muitas vezes, a origem está no fato de que as pessoas com as quais ocorrem om relacionamento, de estas pessoas serem diferentes de mim. E o diferente, o novo, o desconhecido cria um mal-estar, uma animosidade. O novo, o diferente ameaça a minha paz e tranquilidade. O novo desestrutura e nós queremos (ou precisamos) seguranças e estabilidades. Queremos tranquilidade nas relações sociais, interpessoais.
A causa da inconformidade pode ser o medo. E tudo aquilo que intimida, que desestabiliza faz com que nós criemos clichês, rótulos, ou até xingamentos, para equilibrar nosso mundo interior.
Ocorre que o diferente não está distante. Ele está a nossa porta, na nossa rua, na vizinhança, em nosso trabalho, na escola e também na comunidade religiosa. É fato que o diferente, o novo, normalmente chega sem ser convidado, sem ser desejado. Ele aparece. Ele simplesmente está aí.
Em nosso contexto o diferente assumiu e assume características diferentes no tempo e no espaço e se apresenta por meio de pessoas que podem ser: o nordestino, o afrodescendente, o japonês, o indígena, o boliviano, o coreano, o haitiano, o nigeriano, o empobrecido que, de repente, quebra a tranquilidade da nossa rua ou cidade, do jovem que se coloca em espaços reservados aos adultos, da mulher que ocupa espaços reservados aos homens e por aí vai.
Este é um cenário bastante familiar para nós. E neste cenário que queremos ouvir e receber a Palavra de Deus neste domingo.
Vamos ler e ouvir Gálatas 3.23-29.
A palavra que ouvimos é categórica. Ela é afirmativa. “...vós sois filhos de Deus” ...”vós sois um em Cristo Jesus”. A palavra não diz: “sereis”. Ela diz “vós sois”. Ou seja, todos nós somos incluídos pelo batismo na família de Deus. Nós nos tornamos filhos e filhas de Deus ao ponto de não haver mais diferenças. Nós assumimos uma nova condição. Nós integramos o povo de Deus independentemente de nossa condição. E vejam que maravilhoso: Nós nos tornamos descendentes de Abraão. Pela fé somos participantes da promessa.
Irmãos e irmãs, um evento em nossa vida faz toda a diferença para agirmos de forma diferente em relação ao diferente. O batismo nos coloca uma nova roupa, uma roupa nova. “...de Cristo vos revestistes...” quer dizer uma nova postura, uma nova atitude, um novo jeito de ser e de viver: o jeito e o modo de ser de Jesus Cristo. Ele é o modelo. A sua proposta de vida, os seus valores e os seus princípios são assumidos e aceitos por nós no batismo. Eles dão sentido. Eles fazem sentido para a vida. Nossa adesão a Jesus Cristo faz com que sejamos assimilados, incorporados no seu corpo. Nós participamos da promessa mesmo não fazendo parte da tradição histórica do povo eleito.
“...todos vós sois um em Cristo Jesus.” – Não há mais homem nem mulher, nem senhor e nem escravo, judeu e nem grego. Em Jesus essas diferenças, essas formas de ver e estruturar a vida são superadas.
Que quer dizer isso para a nossa vivência comunitária e para as nossas relações no cotidiano das cidades?
À luz da fé em Jesus Cristo somos levados a encarar as pessoas e as formas de relacionamento de forma nova. As diferenças são derrubadas, neutralizadas. Um novo olhar ilumina as relações interpessoais. Não há preferências, não há primeiros, não VIPs (very importante person), não há direitos adquiridos. Isso vale para as diferenças culturais, para a condição social. Não conta o status de abonado, de abastado, a conta bancária, as relações de influência. Não conta condição de gênero, de homem e de mulher, de orientação sexual. Não conta o estado de pessoa casada, solteira, viúva. Não conta a aparência “a” ou “b”, se usa gravata ou não. Mesmo as hierarquias eclesiásticas são relativizadas. Se religiosos usam vestes clericais ou não, isso não conta.
Martim Lutero ao comentar o v. 28 afirma que:
“Por isso um cristão ou um crente é uma pessoa sem nome, sem marca especial, sem diferença, sem acepção de pessoa. O Salmo 133.1: Oh! Como é bom e agradável viverem unidos os irmãos! Onde há unidade, não há marca, diferença e também nenhum nome. (...) Também na Escritura se observa de forma maravilhosa que sempre quando justos são descritos, evita-se palavras que pudessem remeter para uma comunhão especial ou acepção pessoal. Assim o Salmo 1.6: Pois o SENHOR conhece o caminho dos justos, mas o caminho dos ímpios perecerá.; não se diz: ‘ o caminho dos judeus, dos homens, dos idosos, das crianças.’ E o Salmo15.1s: ‘Quem, SENHOR, habitará no teu tabernáculo? Quem há de morar no teu santo monte?’ E a resposta é: ‘O que vive com integridade, e pratica a justiça, e, de coração, fala a verdade;’ Não se diz: quem é judeu, quem profere este ou aquele voto (religioso). E o Salmo 111.1: ‘...na companhia dos justos e na assembleia.’ Isso não significa: no conselho de sacerdotes, monges e bispos. O mesmo julgamento precisa ser proferido sobre todo tipo de acepção pessoal, pois ‘Deus não aceita a aparência do homem’ Gálatas 2.6. Aqui não há rico nem pobre, bonito nem feio, aqui não há burguês nem camponês, beneditino nem cartuxo, minorita nem agostiniano. As coisas estão dispostas de tal forma que, caso estiverem presentes, elas não fazem um cristão e, caso faltem, não transforma alguém em descrente. Tudo isso começou e foi instituído para que sirva para melhor prática do cristão.”
Sim, irmãos e irmãs, porque todos vós sois um em Cristo Jesus. Como isso mexe conosco??? Como isso mexe conosco!?! Assim o creio... Admitir a diversidade e ver a nossa realidade à luz da fé nos perturba e inquieta.
Acontece, porém, que parece ser tranquilo e pacífico compreender a realidade da diversidade do ponto de vista racional. De modo algum alguém de sã consciência vai admitir que discrimina e desrespeita o diferente. Objetivamente até temos consagrado este princípio do respeito na Constituição brasileira. “Todos são iguais perante a lei...”
Agora, do ponto de vista da emocionalidade..., do ponto de vista das relações reais, as coisas mudam de figura. Temos dificuldade de apreender, de assimilar o outro, o diferente. Existem fatores internos, quem sabe, até inconscientes, que nos levam a rejeitar, a discriminar, a desconsiderar, a menosprezar ou até “demonizar” o diferente.
No passado se encontrou até uma forma de contornar as dificuldades de caráter emocional apelando para a razão. Procurava-se achar uma forma de justificar as diferenças. Perguntava-se e se discutia longamente séculos atrás acerca dos povos indígenas e povos de origem africana. Perguntava-se sobre a possibilidade de eles terem alma ou não, ou que tipo de humanidade eles poderiam representar. Ou então, não muito tempo atrás classificava-se as pessoas entre superiores e inferiores, fazendo-se a medição do seu crânio.
A nossa realidade mostra que o ódio e a intolerância estão à flor da pele. Queima-se indígenas, pessoas em situação de rua, ataca-se violentamente pessoas de orientação homoafetiva. Diz-se que vivemos em um momento novo na sociedade; que as pessoas não têm mais vergonha de ser o que são, ou de dizer o que pensam; que isso é positivo; que é melhor trazer à luz o que estava sempre velado, reprimido e sufocado...
Mas será que dando vazão aos sentimentos de todo tipo não estamos perdendo a razão? Será que o extravasamento de todo tipo de impulso não pode ser motivo para induzir atitudes de perseguição e de violência cada vez maiores?
Como povo de Deus, como Igreja que tem como missão e propósito a promoção da comunhão, temos o desafio de testemunhar no contexto das cidades em que estamos localizados, os valores que promovem aceitação, inclusão e respeito. Somos impelidos pelo Espírito de Deus a promover a justiça e a equidade e fazer a defesa dos direitos humanos em sua maior amplitude possível. Nosso papel será sempre o de apontar para o valor de todas as pessoas que à luz de nossa fé são pessoas criadas à imagem e semelhança de Deus, pessoas que Deus dignifica, valoriza e reconhece como filhos e filhas.
Irmãos e irmãs! Sejamos conservadores! Conservemos os valores apregoados por Jesus Cristo. Ao conservar e preservar os valores de Jesus Cristo seremos revolucionários em meio a uma cultura que suscita comportamentos contraditórios. Em alguns momentos, relativiza tudo e, em outros, mostra sinais de profunda intolerância.
Deixe-me mencionar aqui uma pequena história e uma reflexão baseada em uma notícia de jornal e um comentário de Magali do Nascimento Cunha.
“No Rio, estudante evita linchamento de ladrão”. Era um texto pequeno, alguns parágrafos de uma coluna de página. Mas ali havia uma luz, como uma revelação, uma mística. Mikhaila Copello, 22 anos, estudante de Arquitetura, fez de tudo e conseguiu impedir que um jovem que tinha roubado um celular fosse morto por um grupo irado na Freguesia, Zona Oeste da cidade. Ela gritou “vocês não são Deus, não podem julgar quem morre e vive” e ficou protegendo o rapaz até que a PM chegasse. A jovem ainda ouviu do policial, que recebeu aplausos: “se gosta de bandido, leva pra casa”. O preso teve chance de dizer obrigado a Mikhaila, que, depois, desatou a chorar. Não vou comentar a atitude do grupo irado e muito menos a do policial sem ética. Prefiro ressaltar a da estudante, uma luz de esperança. Não seria uma porção da possibilidade de humanizar um mundo desumano e promover a paz com justiça acima de tudo? Não seria o “tem jeito!”?
Sim, irmãos e irmãs! Manter a serenidade e assumir uma atitude diferente e com determinação não é nada fácil. Vivemos sempre numa contradição entre o querer e o fazer efetivamente. As melhores intenções nem sempre correspondem aos fatos. Por isso cabe aqui muito bem a oração do salmista que reconhece a sua fraqueza e deseja que a vontade e a atitude se encontrem.
“Cria em mim, ó Deus, um coração puro e renova dentro de mim um espírito inabalável.” – Salmo 51.10
Irmãos e irmãs! A Palavra de Deus nos apresenta hoje um credo, uma verdadeira profissão de fé. Esta palavra, testemunhada e vivida na sociedade, estabelece novas relações de convivência. Como comunidade cristã sejamos parte dos caminhos que promovem encontros, encontros de comunhão. Como comunidade cristã, integremos as vias que estabelecem vidas em comunhão.
Que o Espírito de Deus crie em nós uma vontade nova e uma atitude nova que promove a paz entre a pessoas, que cria comunhão e vida plena. Amém.