Quando Martim Lutero escreveu, no século XVI, que “os homens não devem excluir ninguém da comunhão com a Igreja”, ou quando bradou “que a restauração do evangelho incluía a restauração dos direitos do povo”, estava mexendo definitivamente com o centro nefrálgico do sistema religioso da época. Apesar do mundo misógino ao extremo em que ocorreu a Reforma, mulheres falaram, escreveram, protestaram e se posicionaram. É importante rememorar os movimentos dentro do Movimento da Reforma, que foi para além do âmbito religioso – para dentro do social, o político, cultural e econômico.
Katarina von Bora, mais conhecida por ter sido a esposa do reformador, chegou a organizar uma pensão para estudantes, estudiosos e para quem estivesse de passagem, cultivava um pomar, tinha um tanque de peixes e mantinha uma cervejaria doméstica, para sustentar a família. Era uma legítima pequena empresária, uma mulher empreendedora. Como havia tido uma boa formação acadêmica enquanto esteve no mosteiro, participou ativamente das traduções da Bíblia. Ela levava as crianças para os quartos e se juntava a Lutero, Felipe Melanchton e os outros que se reuniam ao redor da mesa para as traduções. Como Lutero queria uma tradução que fosse acessível a todos e todas, ela era a chave porque circulava pelos mercados e ouvia a língua do povo. Katharina Von Bora, sem dúvida ajudou a traçar os caminhos da Reforma, mas se tornou mais conhecida como a Käthe de Lutero.
Outra Katharina teve um importante papel no movimento da Reforma. Katharina Zell foi esposa de Matheus Zell, o primeiro pastor protestante da Catedral de Münster. Fazia o que conhecemos hoje como trabalho diaconal: prestou serviços de acolhida a flagelados, exercendo o ministério da visitação, intercedeu por melhorias hospitalares e em 1525 , chegou a acolher em sua casa pessoas refugiadas da Guerra dos Camponeses e envolveu a comunidade através de coletas de mantimentos. Sempre posicionando-se frente às controvérsias da reforma. Mesmo sem ser ordenada pregou na Catedral de Münster e, em 1548, no velório do seu esposo. Sendo viúva iniciou uma nova fase, passou a visitar comunidades e manteve contato com estudiosos. Em 1558, escreveu vários textos entre eles a belíssima “Meditação sobre o Pai Nosso”.
“Nosso Pai, que habita no céu.”
Ele não é chamado de Senhor ou Juiz, mas Pai. E desde que Ele nos enviou seu filho e nós nascemos de novo, nós devemos chamá-lo de avô também. Ele deve ser admirado também como uma mãe que soube das aflições do nascimento e o prazer de amamentar.
“Santificado seja o teu nome.”
Devemos abraçar isso com respeito, não só pelo nosso comportamento, os outros abraçaram isso com reverência.
“Venha teu reino.”
Que reines em nossos corações, alma, corpo e consciência.
“Seja feita a tua vontade.”
Salve-nos de murmurar contra qualquer cruz que jaz sobre nós.
“O pão nosso de cada dia, nos dá hoje.”
Abençoe o labor de nossas mãos para que possamos fazer nossa própria comida e também para os outros. Dê-nos do pão e da água de cada dia, do qual se alguém comer ou beber nunca mais terá fome ou sede. Como os grãos de trigo se tornam um pão, que assim nós possamos nos unir em Cristo, prontos para com Ele enfrentar pobreza, dor e vergonha.
“Perdoe as nossas dívidas.”
Salve-nos dos ressentimentos quando somos caluniados e desprezados, como Cristo, que como uma ovelha que antes de ser tosquiada permanece muda e não abre sua boca.
“Livra-nos da tentação”
de acreditar que nós fomos verdadeiramente perdoados, enquanto o rancor permanece e perante a tentação desesperadora da tua misericórdia, esquecer que Pedro e Maria Madalena foram perdoados.
“Liberta-nos dos demônios”,
da fome, da guerra, escassez e aborrecimento, mesmo se esta for a tua vontade.
“Pois teu é o Reino.”
Cristo deve reinar no céu e na terra.
“E o poder.”
Assim mesmo como libertaste Israel, liberta-nos.
“E a glória.”
Assim como deste o seu sopro para cada coisa que vive, porque a tua glória não tem fim.
Em 1986, na cidade de Estrasburgo, sua cidade natal, foi lhe feito uma homenagem com teses para uma teologia e um mundo mais inclusivos. Vale a pena citar algumas dessas teses: As irmãs não são irmãos em Cristo; Deus é mais do que Deus Pai; Deus fala através de sentimentos e lágrimas; escutar-se mutuamente é uma forma de escutar Deus; “que as mulheres guardem silêncio”, não significa que os homens devem falar por elas.
Outra mulher que movimentou a Reforma foi Argula Von Grumbach, tanto que Lutero a chamava de “Reformadora da Baviera”. Quando a Universidade de Ingolstadt forçou um estudante a revogar seu posicionamento pró Reforma e retratar-se em publico. Argula não se conteve. Nem se confessava uma adepta do “luteranismo”, contudo não conseguiu calar-se diante da posição da universidade. Escreveu, em 1523, para o reitor da Universidade intercedendo pelo estudante, como não sabia tão bem o latim escreveu em alemão, citando vários textos bíblicos ela termina escrevendo: “Tais palavras pronunciadas por Deus mesmo estão sempre diante de meus olhos, nestas palavras nem homens nem mulheres são excluídas. Por isso enquanto cristã me sinto obrigada a escrever...”
Para um parente de Neuberg escreveu: “Me chamam de luterana. Mas não sou, fui batizada em nome de Cristo, este reconheço e não Lutero. Mas também reconheço que Lutero é fiel a Cristo. Os homens da Igreja de Würzburg confiscaram as terras de meu marido. Deus proverá para minhas quatro crianças, elas comerão com os passarinhos do céu, se vestirão com as flores dos campos...”
O marido morreu em 1530, mesmo assim ela conseguiu dar formação às quatro crianças, correspondia-se com Lutero, casou-se mais uma vez com um luterano de nome Schlik e foi presa algumas vezes por posicionar-se contra a Igreja de Roma. Lutero a considerava a reformadora da Baviera. Tanto a respeitava que em 1524, escreveu para alguns conhecidos pedindo que orassem por Argula: “Ela merece que nós todos oremos por ela e pela batalha que está travando em nome do Evangelho”.
Em Genebra, temos Marie Dentière , que pregava e escrevia livros: “A Guerra e o Livramento da Cidade de Genebra” (1536), sobre a “Reforma genebrina” entre 1504 a 1536, “Defesa das Mulheres” e “Uma Carta Muito Útil” (1539), duas cartas escritas para a rainha Marguerite de Navarra.
“Embora não seja permitido a nós (mulheres) pregar em assembleias públicas e nas Igrejas, não obstante não nos é proibido escrever e admoestar uma a outra com todo o amor. Não somente para vós, senhora, desejei escrever esta carta, mas também comunicar coragem a outras mulheres mantidas em cativeiro, a fim de que todas elas não temam ser exiladas do seu país, parentes e amigos, como eu mesma, por causa da Palavra de Deus. Para que elas possam, de agora em diante, não ser atormentadas e afligidas em si mesmas, mas antes, rejubiladas, consoladas e estimuladas a seguir a verdade, que é o evangelho do Senhor Jesus Cristo. Até agora, este evangelho tem estado escondido, de sorte que ninguém ousa dizer uma palavra a respeito dele, e apareceu que as mulheres não deviam ler e entender nada dos escritos sagrados. É esta a causa principal, minha senhora, que me compeliu a escrever a V. Excia., esperando em Deus que no futuro as mulheres não serão tão desprezadas como no passado... em todo o mundo”.
Sobre as mulheres testemunhas da ressurreição de Jesus, Marie Dentière, escreve:
“Se Deus deu então a graça a algumas boas mulheres, revelando-lhes, pelas Santas Escrituras, algo santo e bom, não ousariam elas escrever, falar e declará-lo uma à outra? Ah! seria uma audácia pretender impedi-las de fazê-lo. Quanto a nós, seria muita tolice esconder o talento que Deus nos deu”.
Elas escreveram, falaram, protestaram... e pouco se lê ou se vê sobre seus pensamentos, nomes e rostos. O sacerdócio universal de todos/as os/as crentes está longe de ser inclusivo enquanto não houver o reconhecimento e a afirmação da igualdade de direitos entre homens e mulheres. Estamos falando de direitos e não de “favor ou chance”. Ao comemorar a data que marca o Movimento da Reforma, vamos ouvir e ler as palavras de algumas das mulheres reformadoras. Elas nos representam também!
No dia 31 de outubro teremos o Bazar e café da Reforma, que acontecerá no pátio da Igreja da Paz, em Joinville, durante todo o dia. Haverá um espaço com o nome de “Livraria e Café Katharina Von Bora”. Ali e em todos os estandes serão distribuídos textos escritos por essas mulheres que caminharam lado a lado com os reformadores e tem muito a nos ensinar sobre a teologia luterana e direitos humanos.
Bibliografia:
BAINTON. H. Roland. Frauen der reformation – von Katharina von Bora bis Anna Zwingli. Gütersloher Verl.-Haus, 1986.
DURANT, Will. A reforma – a história da civilização europeia de Wyclif a Calvino. Rio de janeiro: Record, 1957.
ROPER, H.R. Trevor. Religião, reforma e transformação social . Lisboa: Presença, 1972.
FROMMENT, Anthonie. Les Actes et gestes merveilleux de la cité de Genève. Universidade de Lausane. Editora J.F. Fick. 1854, digitalizado em 2008.
AUTORAS:
Cibele Kuss
Pastora Luterana na Paróquia Bom Pastor
Joinville/SC - Brasil
Vera Cristina Weissheimer
Pastora Luterana no Departamento de Diaconia
da Comunidade Evangélica de Joinville/SC - Brasil
Fonte: Rede de Mulheres e justiça de Gênero de Igrejas da América Latina e Caribe ligadas a FLM