Compreendendo e reconstruindo a imagem de mulher nas cartas neo-testamentárias
Grupo MALU – Agosto 2012, Campo Novo do Parecis/MT
Pa. Ms. Scheila dos Santos Dreher
“Tania Mara Vieira Sampaio constata que “[...] não há sociedade que não elabore imagens vinculadas ao masculino e ao feminino, sendo que tais construções são datadas e contextualizadas”. Neste sentido, tanto as imagens/representações que se elaboram quanto a própria construç´~ao de identidades femininas e masculinas respondem a interesses da sociedade na qual o ser humano est´inserido. Em cada sociedade, portanto, meninas e meninos são educadas e educados, cotidianamente, através de discursos, silêncios e vivências para assumirem os papéis de mulher e homem em idade adulta. Isto significa dizer, em sentido cultural pelo menos, que não se nasce sendo mulher ou homem, mas tais papéis sociais são construídos, permanentemente, visto que “[....] as identidades não são, nunca, plenamente e finalmente feitas; elas são incessantemente reconstituídas [...]”; significa, ainda, constatar a pluralidade de histórias e vivências de mulheres e de homens, inclusive, no âmbito de uma mesma sociedade.
Ao longo da história, a teologia, independente do seu lugar confessional, não se isentou de criar representações de masculino e de feminino, bem como de elaborar espaços sociais de atuação dos sexos na família, no âmbito das comunidades confessionais e na sociedade. Tais
representações, no entanto, conduziram, geralmente, a vivências desiguais de poder nas relações de gênero – ou seja, entre mulheres e mulheres, homens e homens, mulheres e homens – e, mais especificamente, conduziram a relações hierárquicas entre os sexos, consolidando um poder do homem sobre a mulher, como se verá adiante.” (DREHER, 2009. p.8s)
Por isso é importante perguntar:
Qual era a imagem de mulher predominante no tempo em que surgiram os escritos do Novo Testamento (primeiro século da era cristã)?
Cultura hebraica: “As mulheres, as crianças e os escravos são súditos do cabeça patriarcal da família. O patriarca tem poder soberano sobre eles, dentro de certos limites.” (RUETHER, 1993. p.71)
Cultura grega: “Na filosofia grega os homens gregos da classe dominante são os exemplares naturais da mente ou razão, enquanto que as mulheres, os escravos e os bárbaros são as pessoas naturalmente servis, representadas pelo corpo e pelas paixões, que precisam ser regidas pela “cabeça”.” (RUETHER, 1993. p.71)
As mulheres no movimento de Jesus
Assim escreve a teóloga Elsa Tamez: “No movimento de Jesus havia mulheres, e não eram poucas. As mulheres eram discípulas e, assim como os homens, seguiam-no na Galiléia (Lucas 8.1-6). Jesus não fazia distinção entre mulheres e homens; pelo contrário, uma de suas características consistia em propor uma ordem de vida diferente do modelo hierárquico ao qual estamos acostumadas. A sociedade judaica discrimina as mulheres. [...] Jesus [...] não deu muita importância a essas tradições que deixam as mulheres de lado; pelo contrário, deixou-se cercar e seguir por mulheres, considerando-as iguais aos homens, e restabeleceu sua dignidade perdida devido aos costumes da cultura patriarcal.” (TAMEZ, 2004, p.10s).
Pesquise na Bíblia:
- A liderança de Maria, mãe de Jesus (Mateus 12.46-50; João 2.1-12; 19.25);
- A atuação das irmãs Marta e Maria (Lucas 10.38-42; João 11.1-57; 12.1-11);
- A mulher que não foi apedrejada (João 8.1-12),
- A mulher mãe de Tiago e João (Mateus 20.20ss; 27.55ss);
- Mulheres no ensino de Jesus (Lucas 18.1-8, Lucas 15.8-10),
- Mulher sírio-fenícia que provocou nova atitude em Jesus (Marcos 7.24ss);
- Mulheres testemunhas da ressurreição (Marcos 16.1-11; Mateus 28.1-10)!
Pergunta:
Se com Jesus as mulheres exerceram discipulado ativo, foram incluídas, valorizadas, cuidadas e escolhidas como protagonistas do anúncio da boa nova da ressurreição, porque as cartas neo-testamentárias, dirigidas às comunidades de seguidoras e seguidores de Jesus, limitaram, novamente, o espaço de atuação das mulheres e promoveram a construção de uma identidade feminina restritiva?
Provavelmente, três anos de ministério de Jesus não foram suficientes para modificar, tão rapidamente, a cultura patriarcal que fomentava restrições ao feminino!
Os textos neo-testamentários que seguem apresentam uma determinada imagem de mulher e prescrevem uma determinada conduta às mulheres na Igreja. Para entender:
O Novo Testamento reúne 27 pequenos livros, redigidos num período de cem anos, incluindo os quatro Evangelhos que falam da vida de Jesus, o livro de Atos dos Apóstolos, as muitas cartas dirigidas às comunidades e o livro do Apocalipse. A partir do Novo Testamento é visível o espaço de libertação e valorização que as mulheres encontraram junto a Jesus Cristo, bem como as mudanças e as restrições à atuação das mulheres na Igreja após Jesus Cristo.
As comunidades que foram surgindo após Pentecostes (evento que marcou o início da Igreja Cristã 50 dias após a ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo) eram compostas, em sua maioria, por pessoas judias e gregas. Estas duas culturas influenciaram decisivamente a identidade das mulheres nesta época e foram determinantes para a definição dos espaços de atuação das mulheres na Igreja!
1Coríntios 14.33-35 (A Comunidade de Corinto foi fundada pelo apóstolo Paulo e pelo casal Áquila e Priscila, por volta do ano 50 d.C. A carta aos coríntios foi escrita no ano 55 d.C pelo apóstolo Paulo.): “Como em todas as igrejas do povo de Deus, as mulheres devem ficar caladas nas reuniões de adoração. Elas não têm permissão para falar. Como diz a Lei, elas não devem ter cargos de direção. Se quiserem saber alguma coisa, que perguntem em casa ao marido. É vergonhoso para uma mulher falar nas reuniões da igreja.”
Efésios 5.22-33 (Esta carta foi redigida como carta circular às comunidades cristãs na Ásia Menor, no final do século I, das quais Éfeso era a mais importante. Dificilmente ela teria sido redigida pelo apóstolo Paulo.): “Mulheres, obedeçam aos seus maridos, como obedecem ao Senhor. Porque o marido tem autoridade sobre a mulher, assim como Cristo tem autoridade sobre a Igreja. [...] Portanto, as mulheres devem ser completamente obedientes aos seus maridos, assim como a própria Igreja é obediente a Cristo. Maridos, amem as suas mulheres, assim como Cristo amou a Igreja e deu sua vida por ela. [...] Os homens devem amar as suas mulheres assim como amam o seu próprio corpo. O homem que ama a sua esposa ama a si mesmo. Porque ninguém nunca odiou o seu próprio corpo; pelo contrário, alimenta-o e toma conta dele, como Cristo faz com a Igreja, pois somos membros do seu corpo. Como dizem as Escrituras Sagradas: “É por isso que o homem deixa o seu pai e a sua mãe para se unir com a sua mulher, e os dois se tornam uma só pessoa.” [...] Mas também se aplica a vocês: cada marido deve amar a sua esposa como a si mesmo, e cada esposa deve respeitar o seu marido.”
1 Timóteo 2.11-15 (Esta carta foi dirigida a uma pessoa, em particular, que exercia função pastoral e orienta, especialmente, sobre a ordem na vida comunitária. Também esta carta, assim como II Timóteo e a carta a Tito, é pós-paulinas. Nesta carta já se percebe a criação de cargos distintos dentro da comunidade bem como uma ordem hierárquica destes cargos.): “Quero que as mulheres sejam sensatas e se vistam com decência e simplicidade. Que não se enfeitem com penteados complicados, nem com jóias de ouro ou de pérolas, nem com vestidos caros, porém com boas ações, como devem fazer as mulheres que afirmam que são dedicadas a Deus. Que as mulheres aprendam em silêncio e com toda a humildade. Não permito que as mulheres ensinem ou tenham autoridade sobre os homens; elas devem ficar caladas. Porque Adão foi criado primeiro, e depois Eva. E não foi Adão quem foi enganado; a mulher é que foi enganada e desobedeceu à lei de Deus. Mas a mulher será salva tendo filhos se ela continuar, com pureza, na fé, no amor e na dedicação a Deus”.
1 Pedro 3.1-7 (A pesquisa indica que o autor desta carta utilizou material oral que circulava pelas comunidades. Cristãos estavam se distinguindo da sociedade na qual estavam inseridos por conduta diferenciada; algumas, realmente louváveis [Atos 4.32ss], outras, questionáveis. A pesquisa conclui que dificilmente o apóstolo Pedro foi o autor da carta, escrita no final do século I.): “Assim também vocês, esposas, obedeçam aos seus maridos [...].Não procurem ficar bonitas usando enfeites, penteados exagerados, jóias ou vestidos caros. Ao contrário, a beleza de vocês deve estar no coração [...], a beleza de um espírito calmo e delicado. Isso tem muito valor para Deus. Porque era assim que as mulheres piedosas do passado, [...] costumavam se enfeitar. Elas eram obedientes aos seus maridos. Sara foi assim; ela obedecia a Abraão e o chamava de “meu senhor”. Vocês serão agora suas filhas se praticarem o bem e não tiverem medo de nada. Também vocês, maridos, na vida em comum com as suas esposas, reconheçam que elas são o sexo mais fraco e que por isso devem ser tratadas com respeito. [...]”
Apesar do discurso que limitava a atuação das mulheres na igreja, encontramos resistência da parte de mulheres! Alguns textos bíblicos testemunham que mulheres continuaram com participação ativa nas comunidades, no primeiro século!
Atos 16: Conversão de Lídia ao cristianismo, o batismo de toda a sua “casa” e sua liderança na Igreja.
Atuação de mulheres nas comunidades cristãs no século I: Priscila (Atos 18.2, 18.18, Romanos 16.3); Maria, Febe, Júnias, Trifena, Trifosa, Pérside, Júlia, Olimpas (Romanos 16)
Gálatas 3 testemunha o espírito libertador de Jesus no que tange a relação entre os gêneros:
Gálatas 3.28: “Desse modo não há diferença entre judeus e não-judeus, entre escravos e livres, entre homens e mulheres: todos vocês são um só por estarem unidos com Cristo Jesus.”
Com o passar do tempo “mulheres foram sendo excluídas, gradativamente, de uma participação reconhecida no âmbito comunitário confessional e institucional. Contra elas pesava o argumento de terem nascido do sexo feminino e sobre elas se elaborou uma teologia da exclusão e da inferioridade que propunha representações contrastivas do masculino e do feminino, com possibilidades distintas de atuação. Anterior à pergunta pela sua capacidade para assumir uma tarefa estava sua identidade feminina a lhe impor restrições”. (DREHER, 2009, p.17s) “Muito lentamente, inicialmente com vozes isoladas e, mais tarde, como expressão de coletivos, começaram a ser gestados movimentos de mulheres com características bastante heterogêneas”. (DREHER, 2009, p.26).
“Vem ó, tu, que fazes novos, os sistemas de pensar,
Que às letras dá sentido e que amplias nosso olhar.
Vem e toca nosso mundo: terra árida de dor.
Neste vale de ossos secos sopra a vida e o amor.”
(Canção: Vem, Santo Espírito. Simei Monteiro.)
Referências
DREHER, Scheila dos Santos. Costurando Saberes e Experiências de Mulheres. São Leopoldo: CEBI, 2009. p.8s
LOHSE, Eduard. Introdução ao Novo Testamento. Editora Sinodal: São Leopoldo, 1985.
RUETHER, Rosemary R. Sexismo e Religião. Rumo a uma Teologia Feminista. Editora Sinodal/EST IEPG: São Leopoldo, 1993.
SAMPAIO, Tânia Mara Vieira.Horizontes em discussão na arte de fazer teologia. In: SOTER (Org.)Gênero e Teologia. Interpelações e perspectivas. São Paulo: SOTER/Paulinas/Loyola, 2003, p. 187-202.
TAMEZ, Elsa. As mulheres no movimento de Jesus, o Cristo. São Leopoldo: Editora Sinodal, 2004.