FESTIVIDADES ALUSIVAS AOS 60 ANOS DA EST
DESAFIOS À EST NA ATUALIDADE
Walter Altmann
Pastor Presidente da IECLB
Congratulo-me com a EST pelos seus 60 anos. Faço-o primeiramente a título pessoal, já que mais da metade de minha vida despendi intimamente a ela ligado, seja como estudante, seja como professor, o que corresponde também a mais da metade da história da EST. (Entre o período de estudante e o de professor, fui pastor na Comunidade Evangélica de Ijuí. Naquela ocasião, acolhi uma estudante de teologia para um período de trabalho prático. Seu nome era Rita Panke, a pregadora do culto de hoje, a primeira pastora ordenada da IECLB. Alegro-me e me orgulho desse dado em minha biografia.) Em segundo lugar, porém, congratulo-me com a EST pela IECLB, como seu Pastor-Presidente, agradecendo pelos seus relevantes serviços prestados à igreja, à ecumene e à própria sociedade.
Ao falar de desafios para a EST, quero evocar, talvez como inspiração, aquela passagem bíblica que nos relata acerca dos discípulos de Emaús (Lucas 24.13-35). Ao longo do caminho eles conversavam sobre os acontecimentos ocorridos. “Conversavam e discutiam”, diz o texto. Era uma pequena faculdade de teologia ambulante, um mini-seminário. Do modo como a conversação seguir, eles talvez estivessem fazendo um pouco mais de análise de conjuntura, um pouco menos de teologia, e isso fosse um problema. Como seja, o assunto era o que havia acontecido a Jesus. Pois quando um estranho se junta a eles e os interroga, é precisamente essa história que contam, e isso com detalhes. Surpreendem-se de que aquele estranho nada saiba acerca de fatos tão conhecidos que eles dominam tão bem, em suas minúcias. O assunto importante era aquele, nenhum outro. No entanto, é aquele estranho que se lhes transforma em professor, passa a discorrer sobre a Escritura, sobre os profetas, e vai colocando os acontecimentos que tão profundamente moveram aqueles discípulos, na perspectiva correta, ou seja, dentro do plano salvífico de Deus. Aquele mestre desconhecido, pois, vai descortinando diante dos discípulos a verdadeira natureza daqueles acontecimentos que os comoviam. Ele faz a correta hermenêutica, a interpretação adequada. Posteriormente, é no partir do pão, isto é, na Eucaristia, que se lhes abrem os olhos e reconhecem naquele professor nada menos do que o próprio Jesus ressuscitado. E dizem: “Não nos ardia o coração, quando ele, pelo caminho, nos falava, nos expunha as Escrituras?” (v. 32)
Bem, é isso: o uso do intelecto e a ardência do coração. Ambas as coisas indispensáveis para um bom estudo de teologia, para um bom ensino de teologia. O uso do intelecto sem a ardência do coração fica estéril, palavras vazias, talvez formalmente corretas, descrevendo os acontecimentos, mas sem lhes conhecer o sentido mais profundo. É conhecimento da palavra, sem perceber ou aceitar que é palavra de Cristo, para a salvação. A ardência do coração sem o uso do intelecto voltado a esquadrinhar diligentemente o que diz a Palavra e como se apresenta nossa realidade descamba para sentimentalismos baratos e presunçosos, substitui os eventos históricos da salvação pelas experiências espirituais subjetivas. Trata-se de duas tentações permanentes no estudo da Teologia, no exercício do ministério e no discipulado.
Para o estudo de Teologia e para o exercício do ministério e para o discipulado são, portanto, indispensáveis ambos: o uso do intelecto no exame da Escritura e da realidade, e a ardência do coração de quem confessa a Jesus: “Tu és o Cristo, o filho do Deus vivo.” (Mateus 16.16) Bem, essa unidade de intelecto e coração não se dá mecanicamente. Ele deverá ser evento. Não poderá ser colocada em currículo, muito menos poderá ser matéria de exame. Será, isso sim, o milagre da fé. Pode-se, talvez – digo com muita ênfase: talvez –, proporcionar um ambiente mais propício para que o evento ocorra. Para os discípulos de Emaús ele, por exemplo, ocorreu quando da celebração da ceia, após o seminário de teologia ocorrido enquanto caminhavam. E a partir da Ceia o estudo efetuado encontrou seu verdadeiro sentido. Assim, também o estudo de teologia deverá vir acompanhado do culto e da oração. Mas a unidade de intelecto e coração poderá ocorrer e ser nutrida de muitas outras formas, em diálogos poimênicos ou, mesmo, nos bastante profanos, na oração e na meditação individuais, nos grupos de apoio mútuo, também no engajamento concreto numa atividade comunitária ou de solidariedade aos “pequeninos” do mundo. Em definitiva, pois, nunca é algo programável. Mas é algo que deverá acontecer para que o estudo de teologia e a “profissão” de ministro da palavra encontrem seu sentido. De outra parte, porém, não precisamos ficar tão preocupados com isso, pois se, de um lado, se trata de um acontecimento que não depende de nós, de outro lado trata-se de um acontecimento que provém de Deus, pelo Espírito Santo e, portanto, ele de fato ocorre, ainda que freqüentemente em modalidades surpreendentes.
Bem, alguém haveria de suspeitar que eu esteja desviando do assunto proposto – os desafios à EST na atualidade. O que estou propondo, porém, é que a consciência dessa necessidade de ter intelecto e coração unidos é o primeiro desafio para qualquer instituição teológica e, portanto, também para a EST e para quem nela labuta. É, em verdade, o desafio fundante: saber que o rigoroso emprego do intelecto e ardência do coração, por obra do Espírito Santo, perfazem o verdadeiro estudo de teologia.
Em segundo lugar, ainda falando em termos gerais, relembro a relação entre Teologia e Igreja. O fazer teológico é parte essencial da vida da Igreja. Mas justamente por ser parte essencial da vida da Igreja, não deve ocorrer à parte da vida da Igreja. “Teologia” e “prática eclesial” se complementam, condicionam e corrigem mutuamente. A Igreja necessita da Teologia não apenas para a capacitação de seus membros para o exercício do sacerdócio geral e de seus obreiros/as para o exercício responsável do ministério com ordenação, mas também como referencial crítico de sua própria atuação. A Teologia exerce esse papel pelo rigoroso recurso à base e à norma bíblica e ao Evangelho de Jesus Cristo, do qual a Bíblia é testemunho. A Teologia deve auxiliar a Igreja também na exposição de sua identidade confessional, no caso da IECLB, de sua identidade evangélica de confissão luterana, e isso não apenas através do recurso verbal aos escritos confessionais, mas também através da indispensável tarefa de sua interpretação atualizada em nossos contextos e para dentro deles.
Além de ser um referencial crítico, a Teologia também exerce um papel de discernimento dos caminhos por onde a Igreja poderia e deveria andar. Há assuntos emergentes, por exemplo, no âmbito da bio-ética. A Teologia deve refleti-los e entregar seus resultados para o posicionamento da Igreja. Há outros assuntos profundamente controvertidos, como os relacionados com a sexualidade humana. A Teologia deve examiná-los a partir do testemunho bíblico-confessional, da experiência pastoral e do conhecimento científico contemporâneo, a partir de todos três. Não lhe cabe o papel de juiz das divergências, mas sim o do exame criterioso das perspectivas divergentes e suas conseqüências para a vida das pessoas e das comunidades, prestando assim um auxílio à Igreja no seu lidar teológico-pastoral com esses assuntos. A Teologia deve também prestar auxílio à Igreja nos posicionamentos em questões de ordem pública, em temas sociais, políticos, econômicos e culturais. A Igreja não pode silenciar nesses âmbitos e necessita do trabalho crítico e criterioso da Teologia.
No entanto, a Teologia também necessita da Igreja, da comunhão das pessoas que crêem e que vivem sua fé a partir da Palavra e dos Sacramentos. Tem sido, com razão, uma das ênfases primordiais da teologia latino-americana que a própria teologia se torna abstrata e vazia quando reduzida a um mero exercício acadêmico intelectual. Nesse sentido, a participação ativa de docentes e estudantes na vida da Igreja pode ser considerada não um pré-requisito, mas uma decorrência natural de seu próprio fazer teológico. No currículo isso se expressa, por exemplo, em variadas formas de estágio prático, mas ocorre também pelo envolvimento extracurricular em grupos de ação e interesse. Quando atuando em comunidade isso se expressará por uma atitude aberta, disposta a aprender da história, da vivência e das convicções dos membros, não de forma acrítica por certo, mas acompanhada com igual intensidade do discernimento autocrítico. Quem exerce o ofício teológico deverá precaver-se de não cair na soberba, mas saber-se um elo certamente pequeno, embora importante, na cadeia histórica do povo de Deus através dos tempos e em todos os lugares.
Simplificando, podemos dizer que a prática eclesial sem a teologia perde seu rumo e torna-se auto-suficiente e centrada em si mesma, enquanto a teologia sem a prática eclesial torna-se insensível e estéril. Em ambos os casos há perda de autenticidade e de relevância. Tanto a Teologia quanto a prática eclesial, quando desconectadas uma da outra, tornam-se instrumentos não de ajuda e libertação, mas causa de frustrações, quando não fonte de práticas discriminatórias e excludentes.
A EST tem sido e continuará sendo, primordialmente, um centro de formação de futuros/as obreiros/as da IECLB. Assim, o que eu disse em termos gerais para a relação da Teologia com a Igreja, vale de maneira muito especial para a relação entre Teologia e práticas pastoral, catequética, diaconal e missionária. A Teologia é um instrumento essencial não apenas no processo de formação que antecede ao envio por parte da Igreja para o ministério com ordenação, mas também permanentemente para o aprofundamento, a atualização e a revisão crítica da prática ministerial. Inversamente, as instituições de formação teológica, como a EST, necessitam atualizar-se constantemente e revisar seu ensino e sua pesquisa, como resultado do contato vivo com as bases comunitárias da Igreja e através de uma relação dialogal com aquelas pessoas que exercem o ministério com ordenação nas comunidades e nas frentes missionárias e diaconais.
Em suma: Teologia e prática eclesial se distinguem, mas o que lhes confere unidade é o recurso permanente à base bíblico-confessional e uma espiritualidade comum, na consciência de constituírem-se em agentes para o discipulado, sempre convocadas para servir a Jesus Cristo em seu povo.
Em terceiro lugar, menciono alguns desafios que decorrem para a EST, conjunturalmente, neste momento, da IECLB.
O cenário em que atua a EST se alterou profundamente. Na sua origem a então Faculdade de Teologia foi um primeiro e decisivo instrumento institucional de unidade da Igreja em formação. Ainda hoje, a grande maioria dos obreiros e das obreiras da IECLB recebeu sua formação aqui e isto dá uma marca teológica distintiva à IECLB, ainda que os egressos da Faculdade de Teologia não tenham uma teologia e uma prática ministerial uniforme. Esse cenário está em mutação. Hoje a IECLB recebe candidatos e candidatas ao ministério de três centros de formação, com suas próprias peculiaridades e história. Um currículo comum, aprovado pelo Conselho da Igreja, não pode esconder sensíveis diferenças de orientação teológica, espiritual e prática. Para a IECLB isso acarreta um grande desafio de como integrar essas diferenças na igreja, enriquecendo-a nas diferenças, mas sem colocar em risco sua unidade e sua confessionalidade. Para a EST o desafio consiste num primeiro nível, ainda superficial e secundário, em aceitar o papel de ser um protagonista entre outros, ainda que siga sendo o “irmão-maior” dentre os centros de formação teológica.
Num segundo nível, mais profundo, o desafio para a EST consiste em apresentar-se com uma face teologicamente coerente, certamente não uniforme, mas ainda assim claramente discernível. Na década de 70 a Faculdade de Teologia conseguiu, num momento de certa crise interna pela saída provocativa de alguns estudantes, formular um documento básico para sua identidade e seu fazer teológico, “O Evangelho e Nós”. Isso foi aproximadamente no meio da história até agora transcorrida da EST, pois outras três décadas transcorreram desde então. Hoje, na IECLB, muitos observam que os demais centros de formação têm uma identidade bem nítida, ainda que discutível em alguns aspectos, enquanto que se perguntam qual é, afinal, o perfil teológico e ético propositivo da EST. Talvez devamos olhar um pouco mais profundamente ainda: qual é a visão, qual é a mística que norteia a EST hoje? Para onde ela está apontando? Qual é o desafio que ela apresenta para a Igreja? O que move os egressos da Faculdade de Teologia para além da aspiração, legítima por certo, de acesso a um campo de serviço ministerial?
Ao suscitar essas questões, estou consciente de que sua contundência é exagerada e, desta forma, injusta. Poderia, inclusive, nutrir preconceitos existentes no seio da Igreja em relação à EST e que devem ser combatidos. Mas elas querem, ainda assim, apontar para algo que muitos na Igreja estão sentindo e expressando. Como seja, uma imagem difusa da EST, ou mesmo contraditória, não será benéfica nem para a EST nem para a IECLB. Por isso, há um grande desafio para a EST em tornar explícitos seu perfil e seu norte.
Essa tarefa se faz tanto mais importante quanto a EST tem respondido de múltiplas maneiras e criativamente ao novo cenário na IECLB e no país. Nas últimas duas décadas a EST percorreu um impressionante caminho de abertura ecumênica. Através de seus cursos de pós-graduação e extensão, por exemplo, desenvolveu uma abrangência para muito além das fronteiras da IECLB, e isso tanto no país quanto no exterior. A EST recebe estudantes de outras denominações e de outros países. Ela é hoje uma instituição teológica largamente respeitada e até admirada, uma referência na Teologia, também reconhecida assim pelo sistema de avaliação do Estado brasileiro. Um crescente número de publicações, muitas delas fruto da pesquisa na pós-graduação, abordam tópicos até agora não-desbravados, outras questões candentes da atualidade ou são materiais básicos para o estudo de teologia. Intercâmbios estudantis e docentes proporcionam experiências ecumênicas relevantes e alimentam a reflexão teológica e os compromissos eclesiais. A EST tem, na IECLB, pioneirismo na abordagem de questões de gênero e etnia (talvez lhe falte ainda, nesse particular, encontrar melhores mecanismos de interconexão com vivências nas comunidades, embora esse seja igualmente um desafio para a própria igreja). Na área do ecumenismo a EST tem se tornado referência e organizou em fevereiro passado um congresso ecumênico de largo alcance. Na área da diaconia, a EST tem contribuído para abrir novas pistas que hoje são perseguidas no âmbito do luteranismo mundial e, até certo ponto, da ecumene mundial. O conceito de diaconia profética é crescentemente aceito ou, pelo menos reconhecido e referido. Também a liturgia e a música poderiam aqui ser mencionadas. Na recente assembléia do Conselho Mundial de Igrejas, em Porto Alegre, foi palpável a contribuição litúrgica e musical oriunda da IECLB, mas em larga medida cunhada na EST e nutrida a partir dela.
Não são poucas essas contribuições positivas. Muitas delas não são ainda suficientemente reconhecidas em âmbito da Igreja. Esta, até certo ponto compreensivelmente, olha mais diretamente para os frutos imediatos em termos obreiros/as na Igreja. Ainda assim, é importante realçar: essas e outras contribuições valiosas e com resultados certamente de longo alcance para a IECLB e a ecumene, devem prosseguir e ainda ser solidificadas. No entanto, justamente porque é assim, porque a contribuição da EST tem se expandido e diversificado, justamente por isso é também fundamental que a EST dê atenção ao princípio teológico norteador e orientador de suas múltiplas iniciativas.
O último desafio aqui mencionado ilustro com dois exemplos, um do impacto da identidade luterana para fora dos limites da igreja, outro de seu impacto nas tensões internas da igreja:
Há um ano atrás a IECLB recebeu uma série de mensagens eletrônicas enviadas por um grupo constituído de São Luís do Maranhão, onde a IECLB não tinha nenhum trabalho, dizendo que ela era a igreja que esse grupo procurava. Hoje, após um período em que proporcionamos um apoio mensal, esta comunidade de maranhenses está constituída e há duas semanas atrás mais de 150 pessoas se reuniram no culto de instalação do Pastor Cleber Fontinele Lima e da catequista Maria Ione Pilger, para lá enviados em fevereiro. Quando estive visitando esse grupo em junho passado, para contatos e entendimentos preliminares, perguntei a seu líder e animador, Nataniel da Silva, pelas razões de identificar a IECLB como a igreja que buscavam. Ele mencionou que estavam à procura de uma Igreja que desse espaço para o discernimento e a decisão dos membros, sem rigidez e imposição; desejavam também uma igreja aberta ecumenicamente. À distância, via internet, esse grupo havia descoberto traços essenciais da identidade confessional luterana, como expressa na IECLB.
O segundo exemplo vem de Monte-Mor, onde se localiza uma das comunidades da IECLB que ao final do ano passado sofreu agudo processo de divisão. Em fins de janeiro deste ano oficiei lá a ordenação do Pastor José Alencar Lulhier Jr., num templo bastante amplo mas tomado por membros, também de comunidades vizinhas, animados com o processo de reedificação da comunidade. À saída, um de seus líderes, que o fora também na fase anterior, antes da divisão, me deu a classificação que reputo a mais impressionante nesse difícil processo de definições pelo qual a IECLB tem passado. Ele, como muito outros, agradeceu as iniciativas e o apoio da igreja e suas lideranças, e acrescentou: “Foi um processo doloroso, mas somos hoje uma igreja mais livre e mais alegre.” Mais livre e mais alegre. Outra vez elementos essenciais da confessionalidade luterana. Mais ainda: elementos essenciais da proclamação paulina. Lembrei-me de Gálatas 5, onde o Apóstolo Paulo descreve maravilhosamente a dádiva divina da liberdade cristã e, mais adiante, no v. 22, coloca a alegria, em segundo lugar, logo após o amor, entre os frutos do Espírito.
É para dentro dessas frentes que a EST, com um perfil teológico nítido e coerente, seguirá servindo e moldando a IECLB, também nos anos vindouros. Assim, expresso uma vez mais a gratidão pelo passado da EST e desejo que o Espírito Santo a acompanhe nos compromissos futuros. E que o Mestre, por nós já conhecido na fé, Jesus Cristo, siga orientando o fazer teológico nesta instituição, contribuindo assim a que a IECLB seja sempre e cada vez uma igreja aberta, livre e alegre.
Obrigado.