Escola pública em Lutero

A luta pela escola pública no plano do discurso teológico-político de Lutero

25/09/2008

O objetivo deste trabalho é analisar o discurso luterano como um discurso teológico-político compromissado com uma reforma social que tem na efetivação e disseminação da escola pública um de seus movimentos mais importantes.

Para se chegar à análise do discurso, através do exame de dois de seus principais escritos dirigidos às autoridades alemãs, em especial, para que abram e mantenham escolas públicas, e à sociedade como um todo, para que enviem as crianças à escola, cumpriu este trabalho um itinerário conceitual-investigativo, pautado pelo enfrentamento de algumas questões que julgamos norteadoras.

Algumas destas questões podem, assim, ser expressas: o que renasceu e o que permaneceu entre a Idade Média e o Humanismo Renascentista para que o discurso luterano florescesse? Frente às estacas que demarcam o domínio religioso, a inquietação pagã e o horizonte científico, empírico-racionalista, onde se enraíza o discurso luterano? Como se configura, ante à inquieta e quase volúvel análise histórica, o “elemento corruptor” que possibilita que um discurso teológico-político ganhe expressão e penetre nas mentes de nobres e camponeses, clérigos e agnósticos, analfabetos e intelectuais eruditos, e se estabeleça como um jovem e voraz império? Como este discurso religioso pôde constituir-se num poderoso instrumento educacional, grave o bastante para promover a conversão rápida de homens tão diversos, num cenário medieval permeado por valores humanistas? Que Renascimento é este que estaria em conformidade com o discurso luterano na defesa da escola pública? De que forma pode-se apontar a Reforma Luterana como um dos pilares da modernidade, tendo em vista que o empirismo e o chamado racionalismo intelectualista apareçam entre as principais características deste movimento cultural?

No enfrentamento destas questões, o trabalho investigativo foi tomando forma e, inevitavelmente, assumindo posições, muitas delas desafiadoras frente à nossa herança cultural iluminista, que sempre olhou para o passado medieval-religioso como um longo período sombrio, sob o domínio da irracionalidade, do medo e das crendices; colocando como partidários das trevas todo e qualquer pensamento que apresentasse elementos religiosos. Para tanto, a tradição iluminista precisou construir e defender uma história oficial, uma interpretação histórica linear e coesa, livre de contradições e paradoxos, obediente a um modelo autoritário, que praticamente definia de antemão, de forma quase maniqueísta, os papéis históricos representados pelos chamados livres pensadores e homens religiosos. Ideologicamente, no entanto, nunca revelou que os chamados livres pensadores eram homens de alguma forma ligados à religião.

No entanto, um passeio histórico pela Renascença Humanista nos leva à conclusão de que este movimento cultural, que antecede e acolhe a Reforma Luterana, é cada vez mais objeto de controvérsias históricas, tendo em vista que seus estudiosos não conseguem concordar quanto ao século que lhe viu nascer, quanto aos seus mais destacados representantes, quanto às correntes de pensamento que suscitou, quanto às suas principais características e às relações que manteve com a religião oficial e outras formas de religiosidade. Com isto podemos entender que há uma certa imprecisão conceitual e cronológica nestes estudos, o que nos leva a afirmar que o Humanismo Renascentista pode ser interpretado como um movimento cultural que se assemelha a um rio caudaloso de curso impreciso.

No sentido da perspectiva histórica podemos afirmar, então, que o Humanismo Renascentista não é linear, tampouco progressivo e muito menos homogêneo. Configura-se como um momento de transição, mas também de permanência; de ruptura, mas também de continuidade; de crise generalizada, mas também de melhoria na qualidade da vida cotidiana. A referência ao passado é tão visível quanto à sua devoção ao novo. Inaugura um novo tempo, promove o novo homem, enquanto resgata o antigo, enaltece o clássico e defende a rigidez da forma através da adoção de modelos que querem se fazer únicos.

Lutero encontra-se neste contexto entrecortado pelas mais diversas correntes de pensamento e é preciso entender com que trajes culturais se veste no momento em que escreve sua volumosa obra. É preciso compreender em quais campos Lutero colheu suas influências, como este terreno foi preparado pelos humanistas e fiscalizado pelos escolásticos, de que técnicas dispunham e que sementes foram semeadas, como foram irrigadas e, finalmente, que contribuições deu Lutero a esses canteiros. Quem o vê trabalhando enxerga um intelectual escolástico ou humanista? Um sábio solitário em seu gabinete ou um professor cercado de alunos?

Em busca de nosso objeto de investigação – a construção da idéia de escola pública no momento de sua gênese – não podemos ignorar a figura carismática de Martim Lutero à frente de outros partidários, a um só tempo, revolucionário e reformador, artífice de um programa de reformas sociais, cujos efeitos chegam a nossos dias. Na busca deste objeto encontramos um autor de grande envergadura intelectual, que não só profere um discurso religioso, mas também o faz ecoar imediatamente para dentro de todo o território alemão; um discurso de diversificados matizes, que não se furtou em tratar de temas muito difíceis num contexto de incertezas, como economia, política e educação.

Nestes escritos encontramos os fundamentos de sua ética política, presos a uma idéia central que faz questão de repetir o tempo todo: “o mundo não precisa apenas de pessoas aptas a pregarem o Evangelho, precisa igualmente de políticos, pessoas aptas a conduzirem os negócios do Estado”.

Lutero mostra-se adepto da concepção moderna de política, há pouco estabelecida por Maquiavel. Tinha consciência de que a vida pública está sob a responsabilidade do Estado, que resulta do embate entre interesses divergentes e, muitas vezes, abertamente conflitantes. Este é o reinado da política, definida por Lutero como o esforço racional permanente e paciente de estabelecer e preservar uma ordem social compatível com os valores do cristianismo. A política, para Lutero, tem como finalidade última a preservação e a proteção do mundo (de Deus) diante da ameaça do caos; o poder do mal.

O papel da ética política luterana é, desta forma, oferecer às pessoas perspectivas e orientações fundamentais para seu agir, ajudando-as a distinguirem entre o Bem e o Mal, despertando-as e instruindo-as para que perguntem sempre pelo que é correto e responsável, encorajando e fortalecendo-as para a prática do Bem, superando a resistência do comodismo.

Cabe aqui destacar uma expressão-chave da ética luterana, talvez aquela que mais a diferencie de todas as outras proposições éticas ocidentais. Trata-se do compromisso de ensinar as pessoas a “superarem a resistência do comodismo”. De resto, sua concepção ética apresenta os mesmos valores cristãos presentes na ética católica e os mesmos elementos já constitutivos das éticas gregas, orientadas pelas idéias do Bem e do Mal.

A ética política de Lutero está diretamente associada à sua concepção de história, cuja fundamentação é religiosa, mas sua aplicação prática o remete a uma concepção política moderna do Estado; pois entende que nenhuma instância social (humana) pode reclamar para si autoridade sobre-humana ou divina. Entende que o poder político tem limites, pois o Estado não tem poder sobre a consciência dos homens. Contra toda concepção teológica do poder, Lutero chega a afirmar que onde política e religião se misturarem, o resultado será a ruína social.

Os dois escritos fundamentais de Lutero sobre a ética política são O Magnificat, de 1521, e o Da Autoridade Secular, Até Que Ponto se lhe Deve Obediência, de 1523. No Magnificat, Lutero apresenta a principal parte de sua concepção de história, apontando para as responsabilidades divididas na condução da vida pública. Nesta gestão o mal maior será evitado com a preservação da distinção entre a confissão do direito e sua consecução. Diz Lutero, “sempre podemos reivindicar nossos direitos, jamais, porém, querer impô-los a qualquer custo. Especialmente os governantes devem ter isto em conta, quando querem ensangüentar o mundo em virtude de uma causa justa. Isto também vale para a política de proteção a seus súditos”.

Como Maquiavel, Lutero também reserva em sua obra um espaço muito maior à derrubada dos poderosos do que à exaltação dos humildes. Lutero, no entanto, se nega a dizer como deve ser o governo da autoridade secular, pois entende que isto é tarefa da razão. O poder político não pode ser deduzido do Evangelho e é diferente dele. Para Lutero dois regimentos governam os homens, o regimento de Deus (O Evangelho) e o regimento dos homens (A Espada). A liberdade cristã permite que o cristão se submeta livremente à determinação do Estado, desde que tais determinações não atinjam a consciência: o que evita o servilismo.

No Da Autoridade Secular, Lutero defende a idéia de que todas as pessoas, inclusive o clero, estão sujeitas à autoridade secular. A grande questão que persegue em sua ética política é justamente esta: até onde vai o poder da autoridade secular? Até onde o súdito lhe deve obediência? Segundo Lutero, existem dois regimentos ou maneiras de Deus governar: o espiritual e o temporal. Através do espiritual, Deus torna as pessoas justas; através do temporal, Deus mantém os maus sob controle e preserva a paz. “Caso o mundo for governado apenas com o Evangelho, teremos o caos. Caso o mundo for governado apenas com a espada, jamais teremos a verdadeira justiça”.

Lutero defende ainda a idéia de que a autoridade secular deve obedecer limites, para que não intervenha no reino de Cristo. Estes limites são dados pela matéria. Dessa forma, as leis temporais devem se restringir ao corpo e aos bens físicos, não podendo, de modo algum, atingir a alma. A fé, por sua vez, é uma questão de consciência e, como tal, não pode ser forçada. Assim, a autoridade secular não tem poder sobre as almas. De acordo com estes regimentos, a heresia é de competência dos bispos e só pode ser combatida pela Palavra de Deus; jamais pela espada. Com isto Lutero rompe com o direito eclesiástico-medieval e defende a liberdade de consciência.

Convencido da necessidade da secularização do Estado e da orientação racionalista da política, Lutero nos faz ver que ele se encontra definitivamente na posse de um pensamento moderno, bem afinado com as principais questões colocadas por seu tempo, e em perfeita interlocução com outros grandes pensadores renascentistas.

No entanto, para que possamos melhor compreender a ética política luterana, temos que penetrar na sua antropologia, que tem como base as cartas de São Paulo, que lhes permitem distinguir duas naturezas humanas: uma para o “homem-criatura” e outra para o “homem renovado em Cristo”. A primeira refere-se ao homem na matéria, a segunda ao homem no espírito. As duas naturezas realizam-se no mesmo homem, que existe como uma unidade. O corpo, os sentidos, os instintos, a vontade, a razão, a inteligência pertencem à natureza material do homem. O homem em espírito é o homem em estado de graça, é o homem redimido por Cristo. No seu estado material, o homem é completamente corrompido. O homem no espírito, na graça, “é senhor livre sobre todas as coisas, escravo de ninguém”. Mas o homem natural, na sua condição material, não tem salvação. Qualquer esforço que vier a fazer neste sentido será em vão. Não há obra, não há trabalho, não há boas ações que possam salvá-lo. Por isso, para Lutero, todas as doutrinas religiosas que dão aos homens esperança neste sentido, são falsas. Os mandamentos, diz ainda Lutero, existem apenas para que o homem veja neles sua incapacidade para o Bem e aprenda a ficar desesperado consigo mesmo.

No aspecto antropológico-religioso a literatura luterana é extremamente severa. A imagem do homem em sua obra é dualista, como era para muitos outros pensadores do final da Idade Média, mas apenas para Lutero este antagonismo é irreconciliável. Na sua concepção o homem interior não se desliga do exterior, nem do mundo, como no pensamento místico renascentista. O indivíduo exterior, como carne, como natureza, é moldado e transformado pelo ser humano que tem fé, que participa da graça em companhia de todos os crentes. No entanto, esta decisão de participar da graça de Deus cabe inteiramente ao indivíduo, e não a um poder eclesiástico exterior, como é para outras igrejas.

Com esta posição, Lutero inicia uma nova era na religião e se faz, mais uma vez, moderno. Lutero adentra os novos tempos, que se inaugura com o (re)nascimento do indivíduo.

Para Lutero, o nascer do indivíduo representa o nascimento de uma consciência, que só pode ser julgada em relação à revelação divina que se encontra no Evangelho, expressada pela Palavra. No entanto, é na vinculação da Palavra com a vontade de Deus e com a consciência do indivíduo que encontramos também a razão pela qual o dogma da fé não permaneceu como uma experiência individual, pois a Palavra requer uma interpretação, que nos remete à escola, que já é doutrina.

Lutero interpretará a Palavra, e nada mais que não seja a Palavra. Com isto elabora sua doutrina, funda uma nova Igreja e promove uma nova ordem social.

Da mesma forma com que promove o nascimento do indivíduo e o incentiva para sua renovação em Cristo, Lutero procura também reformar todas as condições exteriores da vida de acordo com sua imagem evangélica do homem. E é com o mesmo enfoque e mesmo propósito que Lutero vai elaborar seu amplo programa de reforma social, procurando reorganizar todas as instâncias e instituições que se destinam a organizar a vida em sociedade: a ciência, a cultura, o Estado, o governo, o matrimônio, a família, as profissões, a economia, enfim a escola e a educação. Tudo deve ser reorganizado em função de seu programa de reformas.

Paradoxalmente, com esta antropologia Lutero se aproxima do eixo copernicano do Renascimento, que ao libertar o homem do medo da predestinação, o liberta também do medo das forças ocultas que minavam todos os seus esforços, fazendo com que se reencontre na ciência experimental e no individualismo de sua sensibilidade. A obra literária de Lutero não foge a esses propósitos, pois o que a caracteriza e lhe dá vitalidade para atravessar séculos, adentrando fronteiras lingüísticas, são justamente uma nova imagem do homem e sua doutrina social.

A força do discurso luterano encontra-se no seu caráter teológico-político, na combinação de dois elementos que durante todo o período medieval permaneceram praticamente fundidos, como se fosse um só, mas que no transcorrer da Renascença vão se estranhando. À primeira vista, na composição do discurso luterano, a presença dos dois elementos o enfraquece. Isto porque o elemento teológico restringiria o domínio da política, enquanto atividade laica, dirigida à necessidade de se estabelecer e preservar uma ordem no mundo; e o elemento político invadiria o campo teológico, impondo ao domínio da religião limites conjunturais, oferecidos por uma realidade social não reconhecida pela autoridade do Evangelho. No entanto, quando examinamos os processos desencadeados pelo impacto deste discurso teológico-político, ficamos convencidos de que seu enrijecimento, sua solidez, sua força para impor-se a uma nação debilitada, sob o jugo do Sacro Império Germânico-Romano e da Igreja, vem justamente desta combinação de elementos, desta liga rija alcançada com a junção do teológico com o político.

A penetração do discurso luterano deve-se às interlocuções que estabeleceu, ao domínio erudito da cultura clássica, da cultura medieval e da cultura humanista, ao conhecimento construído no contato direto com seus conterrâneos, ao compromisso mantido de difundir a “verdadeira fé” e contribuir para o estabelecimento de uma nova ordem social, à sua sensibilidade e à sabedoria para bem avaliar sua própria força e a força do outro.

O clima intelectual da época e as culturas ímpias que se avizinham justificam o seu pensamento e favorecem à disseminação de suas idéias num conturbado século XVI e numa Alemanha miserável, quase abandonada, distante geograficamente do centro do poder político e religioso, mas não fora do seu alcance. O cenário é de muita disputa e perseguição. A cultura carrega estigmas de toda ordem, as disputas políticas suscitam apenas medo à maioria da população, as autoridades eclesiásticas lutam para sustentar um dogma débil e corroído no seu próprio interior, a esperança do homem humilde acende e apaga, as possibilidades de mudança ora apontam para um retorno ao passado ora para um avanço desmedido para o futuro. A efervescência intelectual não encontra correspondência no plano ético-político; as ações sociais continuam cativas das condições econômicas, mas a inquietação do homem à procura de si mesmo mantém vivo o sentimento religioso. Deste sentimento o discurso luterano irá se nutrir, acumulando energia para buscar o elemento político, que o fortalecerá ainda mais.

Para a abordagem e exame do discurso luterano, a análise do discurso propriamente dita, selecionamos os dois principais escritos dirigidos ao enfrentamento dos problemas educacionais na Alemanha. A primeira dessas obras foi escrita e publicada em 1524, e tem como título, Aos Conselhos de Todas as Cidades da Alemanha, para que criem e mantenham Escolas. A segunda obra, mais ampla, é de 1530 e se denomina, Uma Prédica para que se Mandem os Filhos às Escolas.

Na carta, Aos Conselhos de Todas as Cidades da Alemanha, para que criem e mantenham Escolas, Lutero demonstra uma aguda habilidade política, pois usa de uma certa ambigüidade, que antes de prejudicá-lo, o favorece na reforma que começa a empreender. Embora reafirme em determinadas passagens valores medievais (místicos), o discurso luterano apresenta novos referenciais à Nação Alemã, que levarão à secularização da política. Seu discurso à Nação em favor da escola pública atende aos pressupostos básicos da nova ética religiosa que defende, e que, naquele momento, já se encontra enraizada numa sociedade saturada pela miséria social e econômica, aguardando pelos frutos da ruptura política e religiosa com a Igreja. A nova ética religiosa, a Ética Protestante, começa aqui a propor, de forma mais consistente, uma leitura própria sobre a questão educacional.

Como peça retórica, e política, esta Carta é um documento de inestimável valor para a educação alemã, inicialmente, e para a educação pública como um todo, posteriormente. Isto porque consegue que seus argumentos penetrem no “espírito” das autoridades, rompendo com posições consolidadas, como a da falta de recursos financeiros e humanos, que sempre justificaram o abandono da escola e o caráter elitista da educação.

De início, Lutero faz um breve diagnóstico da situação econômica e dos custos de se manter um Estado beligerante, lamentando a situação de penúria educacional que se encontra a Alemanha. Em seguida, defende fervorosamente os investimentos públicos em educação, mostrando que a verdadeira riqueza da Nação tem que se fazer brotar da formação moral e intelectual de sua gente. Finalmente, conclama todos os governantes alemães a reverterem um quadro sombrio, abrindo novas escolas. Com um discurso bem estruturado e abrangente, que poderíamos identificar de moderno, Lutero se dirige tanto às autoridades políticas como aos pais de família para que, além de prepararem os jovens para a guerra e para o trabalho nos empreendimentos familiares, os mandem também à escola, preparando-os para o aprimoramento da sociedade e para o Reino de Deus.

À primeira vista, o programa apresentado por Lutero não tem a pretensão de quebrar a estrutura social alemã e, muito menos, o caráter elitista da educação, pois de acordo com os seus propósitos, o ensino pretendido continuará reservando aos filhos das camadas dirigentes a formação necessária para o provimento dos cargos de direção da sociedade - eclesiásticos, funcionários, médicos, advogados -, reservando para as camadas populares o ensino elementar; mas quando este discurso é analisado no âmbito do conjunto de sua obra, junto a seu plano de reforma ética da sociedade alemã, tendemos a entender que seu propósito é sim romper com uma estrutura social que, além de não atender minimamente aos ensinamentos do Evangelho, faz o homem simples, humilhado pelas injustiças e enfraquecido pela ignorância, se afastar ainda mais do Criador.

No entanto, é no outro documento, de 1530, denominado Uma Prédica para que se Mandem os Filhos às Escolas, que Lutero se dirigirá à toda sociedade alemã, iniciando uma verdadeira cruzada educacional em favor da escola pública (oficial). Aqui, mais confortável e seguro no púlpito da nova igreja, Lutero praticamente impõe à Nação um compromisso com a escola e com a freqüência obrigatória. Chega a solicitar que os governantes usem de sua autoridade para obrigar que todos os pais cumpram tal determinação, fazendo com que, ao mesmo tempo, essas mesmas autoridades mantenham o compromisso de assegurarem escola pública e gratuita para todas as crianças alemãs.

Em defesa desse seu compromisso com a educação e do entendimento de que o Estado é o responsável pela sua implantação e manutenção, Lutero mais uma vez mostra-se muito hábil na articulação dos argumentos. Lembra a todos que as autoridades e as leis obrigam os cidadãos a uma série de disponibilidades para com o Estado, inclusive enviando seus filhos para a guerra; portanto, não seria exagerado obrigar que nos tempos de paz enviassem seus filhos à escola. Ainda não totalmente convencido do poder de persuasão deste argumento, Lutero recorre mais uma vez à imagem religiosa da luta entre o Bem e o Mal, afirmando que é na escola que se enfrenta o mais terrível dos demônios, a ignorância.

Aparentemente simples e sem maiores conseqüências, essa associação que Lutero faz entre o Mal e a ignorância, ou entre as coisas de Deus e o conhecimento é, na verdade, um outro paradigma que se abre dentro da instituição religiosa. Para muitos, este é o verdadeiro protesto. Aqui o novo se diferencia do velho, mostrando-se moderno.

Mesmo que movido por fortes convicções religiosas, Lutero teve o mérito, dividido com seus continuadores no plano educacional, de ter difundido a escola pública de caráter sistemático. É no plano da Reforma Religiosa Luterana que a Alemanha encontra a motivação e o estímulo necessários para enfrentar e reverter uma realidade educacional marcada pelo atraso, pelo descaso, pelo abandono e pelo privilégio.

Resgatando (lembrando) Max Weber, numa das ressalvas que faz em sua obra, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, é preciso que fique claro que não temos a pretensão de fazer qualquer juízo de valor, sócio-político ou religioso, sobre o conteúdo da Reforma Luterana. A nossa intenção é apenas iluminar um pouco mais o impacto que os motivos religiosos tiveram no processo de desenvolvimento da escola pública, enquanto elemento importante dentro da modernidade surgida de inúmeros fatores históricos. “Ao mesmo tempo, devemos evidentemente libertar-nos da idéia de que é possível interpretar a Reforma (apenas) como conseqüência histórica necessária de certas mudanças econômicas”.

Queremos destacar ainda que de forma alguma sustentamos neste estudo a tese de que a escola pública de caráter sistemático teria surgido somente como conseqüência de determinadas realizações da Reforma Luterana. Nosso desejo é apenas o de verificar se, e em que medida, participou o discurso teológico-político luterano da moldagem qualitativa e da expressão quantitativa deste movimento em favor da escola pública.

Sebastião Haroldo de Freitas Corrêa Porto
Professor da Fundação Santo André - SP

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