1. Como chegar a discernimentos éticos responsáveis? Trata-se de pergunta crucial nesses tempos em que a capacidade de distinguir entre bem e mal, direito e dever está definhada. Em situações consideradas normais e corriqueiras, isso pode parecer um processo simples. Bastaria seguir o bom senso, aquilo que a maioria das pessoas entenderia como a decisão correta, como atitude “de bem”. De fato, embora haja peculiaridades culturais que apontam para uma diversidade de comportamentos aceitáveis, também há uma ampla coincidência em valores básicos de conduta, nas mais diferentes culturas.
2. Contudo, a vida não é tão simples assim. Há situações limítrofes que desafiam a nossa capacidade de realizar o bem, de preservar a vida e sua dignidade. Nos últimos dias, a sociedade brasileira ficou chocada com a notícia de uma criança que, violentada sexualmente por seu padrasto desde os seis anos de idade, teve, com apenas nove anos, uma gravidez de gêmeos, cujo prosseguimento colocaria sua vida em sério risco. Nas circunstâncias de estupro e risco de vida para a mãe a interrupção da gravidez é permitida pela lei brasileira. No caso em pauta, estavam dadas ambas as condições.
3. É conhecido que a teologia oficial católica apostólica romana não prevê nem admite exceção ao direito de que a vida em gestação se desenvolva. A interrupção da gravidez é entendida como equivalente a homicídio deliberado. Por conseguinte, a autoridade eclesiástica católica anunciou – e defendeu a decisão de público com veemência –, a excomunhão da mãe da criança grávida, que autorizara o aborto, e da equipe médica que o efetuou, pena prevista no direito canônico católico. O caso ganhou as manchetes da imprensa nacional e internacional.
4. A IECLB tem sido perguntada se compartilha a posição católica ou qual seria seu posicionamento. De fato, entre a cristandade, não há consenso em relação ao discernimento ético. Mas é importante clarear precisamente onde se encontram as diferenças. Dizer que uns são a favor do aborto e outros são contra seria uma simplificação grosseira. O quinto mandamento – Não matarás – tem validade para uns e outros. Devemos adiantar também que, no caso da IECLB, temos excelentes relações de diálogo e cooperação bilateral católico-luterana em muitas áreas. Não há por que não reconhecer que a Igreja Católica tem seguido, com coerência, sua convicção baseada no critério da defesa incondicional da vida, desde seu primórdio até seu fim natural.
5. Há, porém, como é óbvio, diferenças entre nossas igrejas, tanto de ordem teológica, quanto de organização eclesiástica, mas também em concepções relativas ao discernimento ético das pessoas cristãs.
6. Antes de mais nada, chamemos a atenção para algumas preliminares: não há no âmbito de igrejas evangélicas protestantes um magistério que tenha a prerrogativa de estabelecer normas éticas que deveriam ser seguidas por todos os fiéis. Nem poderia haver. Na tradição da Reforma protestante essas igrejas não (re)conhecem uma instância eclesiástica autoritativa, muito menos infalível, em questões morais, mas seus pastores e pastoras têm a responsabilidade de, baseados na Bíblia e seus valores evangélicos, orientar as pessoas implicadas ao discernimento ético, fortalecendo-as a tomarem, simultaneamente em liberdade e responsabilidade suas próprias decisões diante de Deus.
7. Assim, não é de surpreender que se encontre no âmbito das igrejas evangélicas protestantes uma grande variedade de posicionamentos, inclusive dentro delas próprias. Naturalmente, repetimos, a orientação é que os fiéis busquem o discernimento ético a partir de critérios teológicos baseados na Escritura. No entanto, em casos limítrofes, de grande complexidade, é compreensível que haja posições diferentes e, por vezes, aparentemente antagônicas. Assim, há no interior das igrejas evangélicas não poucas pessoas – teólogos, pastores e pessoas leigas – que defendem o mesmo posicionamento expresso pela igreja católica. Mas não poucas pessoas e instâncias eclesiais divergem, com base em argumentos teológicos de peso.
8. O ponto crucial de divergência consiste em que a teologia protestante, pelo menos aquela que poderíamos chamar de tradicional ou histórica, toma estritamente a sério que há, em nossa vida e suas relações, uma tensão inevitável entre a vontade original e última de Deus para com sua criação e todas as suas criaturas e a presença efetiva do mal nas relações humanas e sua história. Não há como se colocar fora ou acima dessa tensão.
9. Sendo assim, nunca se darão situações “totalmente puras”; sempre haverá a ambigüidade da condição humana e da realidade histórica. Todo ser humano é criatura de Deus e a ele destinada; mas todo ser humano também vive distante de Deus na condição de ser pecador. Pela graça de Deus o ser humano pode ser justificado – e o é exclusivamente por essa graça –, acolhe esse pronunciamento misericordioso de Deus em fé. Desta forma e em consequência é também chamado a uma nova vida, de amor a Deus e ao próximo. Mesmo assim, enquanto viver, não escapa à sua condição de pecador e será sempre de novo carente do perdão divino.
10. Partilhando inevitavelmente dessa condição, o ser humano com frequência se vê confrontado com situações em que o discernimento ético não terá a seu dispor a opção perfeita, sequer uma opção boa. Inclusive, teologicamente, não há nessas situações opção sem pecado. A escolha deverá recair então naquela alternativa que, a melhor juízo, preserve os valores da dignidade humana e sirva à vida, em plena consciência de que também esta opção poderá estar infringindo esses valores em certa medida. A responsabilidade ética cristã não é uma grandeza que possa ser assumida de forma romântica e automática. Antes, é uma decisão extraordinariamente difícil que deverá ser pesada e tomada diante de Deus, em oração e sempre confiando em sua graça.
11. Sim, é convicção dessa teologia que Deus, em sua graça, pode até mesmo acolher, em situações limítrofes, opções carregadas de mal – pois o aborto certamente não é um bem –, como expressão de um servir responsável ao próximo em necessidade.
12. Essa teologia concorda que a legislação brasileira contemple a possibilidade de interrupção da gravidez em casos de estupro ou risco de vida para a mãe. Essa teologia, contudo, não define esse desfecho como norma moral geral, pois estaria igualmente desrespeitando o critério de que a decisão deva ser tomada pelas pessoas implicadas, em responsabilidade própria.
13. No caso específico, houve, na origem, atos criminosos de violência sexual contra uma criança, de parte de seu padrasto, que obviamente deve ser submetido aos rigores da lei penal brasileira. No entanto, o seu julgamento deve considerar um contexto maior de violência que existe na sociedade em geral e provocar não apenas a ira e a vontade de vingança, mas suscitar um debate maior sobre a realidade que hoje experimentamos. Ademais, enquanto criatura de Deus, ele está também sob o juízo desse mesmo Deus que, em seus desígnios misericordiosos, pode transformar também sua vida.
14. Atenção preponderante é devida à criança que é, indubitavelmente, vítima dessa violência, carecerá por longo tempo de todo apoio médico, psicológico e espiritual que lhe possa ser prestado, para se desenvolver livre de culpas. Nunca é demais enfatizar a importância do Estatuto da Criança e do Adolescente em todas as suas implicações.
15. Também a equipe médica, que, atenta aos riscos inerentes à gravidez da criança e devidamente autorizada, efetuou o procedimento, é merecedora não de juízos morais que sobrecarreguem suas consciências, mas de conforto espiritual em sua própria angústia, um conforto que por muito mais razões deve ser estendido irrestritamente à mãe da criança que autorizou a interrupção da gravidez em sua filha. Mãe e filha experimentaram, cada qual a seu modo, uma tragédia. Contudo, também em meio à tragédia, e especialmente ali, há a necessidade da solidariedade humana e a possibilidade da graça divina.
Porto Alegre, 11 de março de 2009.
Walter Altmann
Pastor Presidente