Introdução
Na sua interpretação à quarta prece do Pai Nosso, Martim Lutero diz:
Deus dá o pão de cada dia, também sem o nosso pedido, a todas as pessoas, inclusive às pessoas más. Mas pedimos nesta oração que Ele nos faça reconhecer isso e receber com gratidão o pão nosso de cada dia (Catecismo Menor).
Com outras palavras: Deus deixa crescer alimento em abundância para que cada pessoa no mundo tenha o suficiente para comer a cada dia.
Quem seriam as pessoas más? Lutero quis dizer: Diante de Deus, ninguém é merecedor das suas ricas dádivas. Todos somos criaturas suas e Deus dá sem distinção, porque ama a sua criação. Se Jesus nos ensinou a pedir pelo pão diário, é porque importa lembrar-se de que toda a boa dádiva vem de Deus e, assim, aprendamos a recebê-la com gratidão.
Com amor para Jaini Bi
Cada dia, às 12 horas,
no calor do meio-dia,
Deus vem até mim
na forma de 200 gramas de mingau de aveia.
Sinto-O em cada grão,
saboreio-O em cada colherada.
Participo da Sua refeição quando engulo,
porque Ele me mantém com vida
com 200 gramas de mingau de aveia.
Espero até o próximo meio-dia,
e sei que Ele virá.
Assim posso contar com mais um dia de vida,
porque você fez com que Deus viesse até mim,
na forma de 200 gramas de mingau de aveia.
Agora sei que Deus me ama -
e isto devo só a você.
Agora eu entendo o que você quer dizer
quando fala que Deus ama tanto este mundo,
que dá seu amado Filho
cada dia por intermédio de VOCÊ.1
1. Deus dá, mas nem todos tem
1.1 A fome no mundo
Uma definição de fome e pobreza, conforme apresentação numa revista do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo:
Fome:
Têm fome aqueles cuja alimentação diária não aporta a energia requerida para a manutenção e funcionamento do organismo e para as atividades ordinárias do ser humano.
Pobreza:
São pobres aqueles que não têm assegurado o acesso a necessidades humanas elementares, como comida, abrigo, vestuário, educação, cuidados de saúde, etc.
Pobreza e fome são duas realidades contrárias à vontade de Deus.
Em 1974, durante a Conferência Mundial sobre Alimentação, as Nações Unidas estabeleceram que “todo homem, mulher, criança, tem o direito inalienável de ser livre da fome e da desnutrição [...]”. Portanto, a comunidade internacional deveria ter como maior objetivo a segurança alimentar, isto é, “o acesso, sempre, por parte de todos, a alimento suficiente para uma vida sadia e ativa”.
A estatística da fome no mundo, segundo dados da FAO (Food and Agriculture Organization), 2002:
- 814,6 milhões de famintos nos países em desenvolvimento (como China, Bolívia, Angola...)
- 28,3 milhões de famintos em países de transição (como Rússia, Croácia, Ucrânia...)
- 15,6 milhões de famintos no Brasil
- 9 milhões de famintos nos países industrializados (como Alemanha, Estados Unidos, Austrália).
Conforme o relator destes números (subdiretor da FAO, Hartwig de Haen, em 2004), houve avanços contra a fome em mais de 30 países, nos últimos dez anos, entre eles, China, Brasil, Nigéria, Cuba, Tailândia. Sabe-se, no entanto, que, em outros países, a situação piorou.
Segundo dados recentes, a cada seis segundos, uma criança morre de fome, ou em virtude das consequências da fome, o que equivale a mais de 16.000 crianças a cada dia. Isto, considerando apenas as crianças entre zero a cinco anos de idade
.
A triste realidade é que mais de 1 bilhão de pessoas, no mundo, sofre de fome crônica. Isto significa que uma pessoa, a cada sete, padece de fome. Outro dado alarmante é que 1,3 bilhão de pessoas não dispõem de água potável. Há quem fale em “silencioso homicídio em massa”.
O que está se fazendo para mudar a situação?
No ano de 2000, as Nações Unidas colocaram como meta a ser alcançada, até o ano 2015: reduzir a pobreza e a fome no mundo pela metade. Constata-se, porém, que o número de famintos ainda cresceu desde então.
Qual seria o motivo deste fracasso?
Existem algumas opiniões que não conferem com a verdade, como, por exemplo:
1. O mundo não pode produzir alimentos suficientes;
2. A fome é devido ao fato de que somos 'demais';
3. No mundo, há poucas terras cultiváveis.
Os verdadeiros motivos estão ligados às diferenças de oportunidade e ao poder de uns sobre os outros.
Hartwig de Haen argumenta que é “incompreensível a escassez de esforços da comunidade internacional”, considerando que, “além do sofrimento humano, que é um escândalo, a fome tem como consequência também importantes perdas econômicas”. Diz ele: “É uma ironia que os recursos necessários para enfrentar o problema da fome sejam poucos em comparação com os benefícios que traria a sua erradicação. Cada dólar investido na luta contra a fome poderia se multiplicar por cinco e até por mais de vinte vezes em benefícios. A erradicação da fome teria um custo inicial de 30 bilhões de dólares. Mas este valor nem chega a 10% do orçamento militar anual dos Estados Unidos”.
1.2 A fome no Brasil
A fome diminui
Dados estatísticos que mostram uma redução da fome em nosso país, até o ano 2002:
Período Número de pessoas famintas
1990-1992 18,5 milhões
1995-1997 16,5 milhões
2000-2002 5,6 milhões
De acordo com um documento publicado, pela ONG antipobreza, “Action Aid”, no dia 15 de outubro de 2009, o Brasil é líder no combate à fome entre os países emergentes. O documento elogia os esforços do governo brasileiro em adotar programas sociais para lidar com o problema da fome no país, e destaca os programas Bolsa Família e Fome Zero.
O Programa Bolsa Família (PBF) é um programa de transferência direta de renda com condicionalidades que beneficiam famílias em situação de pobreza (com renda mensal por pessoa de R$70 a R$140) e extrema pobreza (com renda mensal por pessoa de até R$70). Ela integra o programa Fome Zero e pretende não apenas transferir dinheiro, mas também dar um reforço ao exercício de direitos sociais básicos nas áreas da Saúde e Educação, além de oferecer programas complementares como a
geração de trabalho e renda, alfabetização de adultos, fornecimento de registro civil.
Mas a desigualdade social é enorme
O Brasil não tem de que se gloriar se considerarmos que a desigualdade de renda na sociedade brasileira é uma das mais elevadas do mundo. Em 1995, o Brasil era o país de maior desigualdade social entre os países conhecidos. De 1997 a 2007, houve leve tendência de redução (conforme dados do IBGE, baseados no cálculo da renda média dos 10% mais ricos e a dos 40% mais pobres).
Num texto para discussão do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, Rio de Janeiro, 2001), lemos:
- O Brasil não é mais um país pobre, mas um país extremamente injusto e desigual, com muitos pobres.
- A desigualdade encontra-se na origem da pobreza e combatê-la torna-se um imperativo.
- A desigualdade, em particular a desigualdade de renda, é tão parte da história brasileira que adquire fórum de coisa natural.
- A luta contra a fome é, em primeiro lugar, uma luta contra a fome pela justiça social.
2. O que podemos fazer? Reflexão a partir de dois textos bíblicos
2.1 Cinco pães e dois peixes – o que é isto para tanta gente? (João 6.1-15)
O texto de João 6 conta como uma multidão de pessoas ficou saciada a partir de apenas cinco pães e dois peixinhos. Foi o milagre da multiplicação do pão que Jesus operou. Em outra ocasião, Jesus havia se negado a transformar pedras em pão (Mateus 4.3+4). Qual é a diferença?
A diferença consiste na intenção de Jesus. Ele não é o milagreiro que, com um toque de mágica, “produz” pão, e, quem sabe, todo tipo de bens materiais. A produção de pão exige esforço humano, como lemos em Gênesis 3.19. Quando algumas pessoas, após terem visto o sinal da multiplicação, queriam proclamar Jesus o seu rei, Este se retirou. Ele quis saciar os famintos, mas se opôs ao sensacionalismo.
A busca por sensações é sempre muito grande. Mas uma sensação não dura, pois desaparece tão logo surge uma nova sensação. Diferente é com o milagre que Deus opera. Este é sempre um sinal da onipotência e bondade de Deus. Pode ser algo muito corriqueiro, como, por exemplo, o brotar de um raminho verde de um tronco seco de árvore. Quando eu parar diante deste broto, admirando a força da vida que ali se manifesta, estou diante de um milagre da criação de Deus. Sinto alegria e gratidão. A próxima pessoa que passar ali pode experimentar a mesma coisa. E, assim, formamos uma comunidade que louva a Deus.
Jesus não quis ser rei e, sim, pão. Pois, como pão, é o sinal do inesgotável amor de Deus que se importa com suas criaturas. E quando este é repartido, todos ficam satisfeitos.
O verdadeiro milagre da multiplicação do pão é a generosidade. Jesus esteve totalmente livre para dar. Na verdade, Sua vida toda foi doação. E quando, na noite em que foi traído, partiu o pão, o gesto já apontava para a total doação de Sua pessoa na cruz. Ele disse: Quando vocês partirem o pão e tomarem do mesmo cálice, lembrem-se de Mim e do Meu amor por vocês.
Quando nos lembrarmos com gratidão da generosidade de Deus, abrirmos nossos corações e nossas mãos para repartir o que nos foi dado. É muito pouco o que temos para oferecer, pensando nas multidões de famintos? Deus pode multiplicar o que lhe oferecermos de coração.
2.2 O que fazer com a abundância? (Lucas 12.13-21)
Neste texto, Jesus censura a avareza e o apego aos bens materiais. Um homem quer que Jesus interfira no conflito que tem com seu irmão referente à herança. Jesus se nega a fazer isto, mas chama a atenção para o que de fato importa na vida. Para isso, conta a parábola do homem que fez uma boa colheita e se pergunta o que fazer com o excedente da colheita.
Podemos supor que o homem que veio falar com Jesus conhecia as leis referentes aos dízimos. Estas deixavam claro que Deus se alegra quando seus filhos vão bem, mas que também não quer que alguém passe necessidade. Pois, assim, lemos em Deuteronômio 26,11 e 12, por exemplo:
Alegrar-te-ás por todo o bem que o Senhor teu Deus te tem dado a ti e a tua casa, tu e o levita, e o estrangeiro que está no meio de ti. Quando acabares de separar todos os dízimos da tua colheita no ano terceiro, que é dos dízimos, então os darás ao levita, ao estrangeiro, ao órfão e à viúva, para que comam dentro das tuas cidades, e se fartem.
Jesus não criticou a atitude do homem de construir celeiros maiores para abrigar sua colheita. O que Ele critica é a opinião de que os celeiros maiores lhe dariam a certeza de ter segurança e felicidade para sempre. Estava esquecendo que o acúmulo de bens não faz feliz e que a vida inclui imprevistos e pode haver um fim súbito.
Podemos nos alegrar com boas “colheitas”, sejam elas em forma de alimentos, dinheiro, ou outros bens. Mas é preciso reconhecer que são dádivas de Deus. E se as recebermos com gratidão das suas mãos, também estaremos livres para dar a quem tem menos do que nós.
A raiz da avareza está em cada coração e também pode crescer no coração daqueles que não têm grandes posses. Jesus recomenda investir no banco celeste, exercitando a generosidade.
As prescrições do Antigo Testamento referente aos dízimos parecem estar longe de nossa realidade atual. Mas ofertar a décima parte da renda a Deus, para aproveitamento de quem necessita, continua fazendo muito sentido.
Escreve Luiz A.P. Carneiro na revista “Veja” do dia 23.12.2009:
Se todos os seres humanos tivessem um padrão de consumo semelhante ao dos países desenvolvidos, os alimentos produzidos hoje não seriam suficientes para todos. Os níveis de poluição seriam insustentáveis.
Isto certamente é verdade. Por isso, repartir o pão com os famintos significa, para os bem situados: adotar um estilo de vida mais simples. A superação da fome no mundo só será possível se os povos ricos frearem sua vontade de desenvolver e consumir cada vez mais. Também, em termos de mundo, vale repartir, para que todos tenham.
Dinâmica:
Poder-se-ia encenar uma entrevista com uma pessoa que ganhou na loteria. O homem (também pode ser uma mulher) não quer ser reconhecido, por isso usa um capuz. Ele justifica porque não quer ser reconhecido: o medo de que todos queiram um pedaço da sua fortuna. Diz que vai se mudar para um lugar onde ninguém o conheça. Diz que é feliz por não precisar mais trabalhar, nem se preocupar com o seu
sustento.
O entrevistador pergunta se já comemorou com os amigos. Ele diz que não, porque os convidados iriam notar que ele tem muito dinheiro. Na continuação do diálogo, o entrevistado revela que já teve desavenças com a esposa e os filhos porque têm outras ideias sobre como gastar o dinheiro. Ele mesmo quer decidir sobre isto. A esposa quer, pelo menos, a metade da fortuna, mas ele não vai permitir isto. O relacionamento com ela tornou-se difícil.
Ele diz que não se importa se vai haver uma separação, porque tem mulheres suficientes que vão gostar de ter um marido rico. O entrevistador ainda pergunta se já pensou em fazer uma doação para a Igreja ou pessoas pobres. Ele diz que os pobres são mesmo culpados de sua desgraça. Por enquanto, ele mesmo quer usufruir daquilo que o céu lhe deu.
Perguntas para reflexão:
1) A que conclusões chegamos a partir dos dois textos bíblicos?
2) É suficiente o que o governo brasileiro faz para diminuir a fome e a
desigualdade social?
3) O que cabe aos cristãos fazerem?
4) O que é mais fácil (ou mais difícil): dar ou receber?
5) Já nos sentimos, alguma vez, felizes depois que presenteamos
pessoas que precisavam de nossa solidariedade?
1Poema da Índia: [In: Sybille Tritsch, Bärbel v. Warttemberg-Potter (Hrsg.) Gebete und Poesie von Frauen aus aller Welt; GTB Siebenstern, Gütersloh 1986] Observação: o texto a seguir foi escrito por uma moradora de Chitapur, região extremamente pobre da Índia, e publicado por “Brot für die Welt”.
Diaconisa Ruthild Brakemeier
Mestre em Teologia - História da Igreja pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdades EST em São Leopoldo/RS