Em que situação o ser humano fica mais criativo, no ócio ou no trabalho? No prazer ou no sofrimento? No trabalho a gente se distrai e no prazer a gente relaxa. As maiores possibilidades criadoras estão no ócio, na esperança, no sofrimento e no medo1. Pessoas muito criativas buscam na calma, na paz interior, na tranquilidade e na concentração as inspirações para as suas invenções e criações. Por outro lado, é comum perceber que é no aperto que a gente se vira2.
Apesar de sabermos que grandes mestres da arte produziram obras primas sob a pressão da encomenda3, continua verdade que a interrupção da corrente das tarefas que se sucedem mecanicamente representa a formação de espaços de liberdade para o afloramento da criatividade.
O mais intrigante neste contexto é que também o medo e o sofrimento humano são molas propulsoras da criação. De Leonardo Da Vinci vem a frase “toda nossa cognição principia de sentimentos”4. Quase tudo que usamos em nossa vida foi inventado para evitar ou minimizar o sofrimento: a cadeira, o casaco, o chuveiro quente, o automóvel, a geladeira, tudo foi criado para evitar ou diminuir o sofrimento. O filme Óleo de Lourenzo mostra um pai e uma mãe em meio a grande sofrimento, medo e tristeza, por causa da doença incurável de um filho, criando, como que do nada, a possibilidade de cura.
Leonardo Boff5 diz que “tudo explode e se expande. A explosão significa a irrupção da desordem. A expansão, porém, significa a constituição da ordem. O Universo, cada ser, cada coisa, contém dentro de si os dois movimentos, o caos (desordem) e o cosmos (ordem). O caos não é simplesmente “caótico”. Ele se mostra generativo e autocriativo. Abre espaço para a organização e para a constituição de ordens cada vez mais elegantes (cosmética) e portadoras de sentido”.
Evidentemente não cantamos hinos de louvor ao sofrimento. Ele sempre foi, é e continuará sendo o lugar mais próximo ao fim. O sofrimento é a possibilidade mais concreta do término de todos os projetos de vida. As perdas dos bens materiais, da honra e da vida de pessoas próximas constituem o resumo que concentra a maior causa de sofrimento entre os humanos. As perdas têm o poder de instituir o caos, de transformar luz em treva, de descaracterizar a humanidade.
Käthe Kolwitz nasceu no dia 8 de julho de 1867 em Königsberg, na Alemanha. Seu filho, Peter, de 20 anos, morreu como voluntário de guerra em 23 de outubro de 1914. O marido, Dr. Karl Kollwitz, faleceu em 1940 e dois anos mais tarde, em 1942, ela perdeu o neto Peter, na Rússia. Seus últimos trabalhos grafológicos são desse ano e surgiram sob o tema Sementes para canteiro não podem ser moídas. Ela nos deixou, através de sua arte, “a imagem de seu sofrimento e de como isto configurou o seu olhar para sempre. Ela passou a ver tudo pelo olhar de uma mãe que espera o seu filho, que protege seu filho, que perde seu filho, que se organiza pelos filhos, que sofre por eles, que luta por eles. Toda a sua arte expressa isso”.
Não devemos hierarquizar os sofrimentos. Não existem sofrimentos mais importantes ou menos importantes, apesar de existirem sofrimentos mais e menos comuns. Juízos valorativos sobre os acontecimentos que trouxeram o sofrimento não ajudam, não são ações cosméticas sobre o caos, não ajudam a reconstituir o cosmos. Em qualquer ação na direção da pessoa que sofre, importa salvar a pessoa de seu fim próximo. Pessoas em sofrimento são como barcos na correnteza do rio acima da cachoeira. O movimento necessário é o não-movimento. Conseguir parar. Isto é graça.
Pessoas cristãs em sofrimento contam com a graça de Deus. Isto significa que, como qualquer pessoa sofredora, elas estão de frente para o abismo, mas a graça de Deus lhes proporciona a tranquilidade de não dar um passo adiante.
Existem mil filosofias a apregoar que o sofrimento purifica, como se ele representasse possibilidades, como se fosse possível construir algo a partir do sofrimento. Não. Deus nos livre de querermos usar o sofrimento como um instrumental, como uma ferramenta para construir algo!
A lógica do sofrimento é a destruição. Destrói projetos, destrói valores, destrói pessoas. A graça de Deus inverte esta lógica. A comunidade dos irmãos e das irmãs pode ajudar, criando um ambiente de graça, colocando-se ao lado de quem está de frente para o abismo, não cedendo ao ímpeto de pressionar a mobilização de quem sofre. A mobilidade retornará a seu tempo, se Deus quiser. A graça de Deus é passar pelo risco da contemplação do abismo.
1 DE MASI, Domenico. Criatividade de Grupos Criativos. Rio de Janeiro. Sextante. 2003. p. 192ss
2 A pessoa criativa possui uma capacidade extraordinária de acessar alguns processos mentais frequentemente verificáveis no doente mental (DE MASI, 469)
3 Obras da música clássica foram compostas a pedido de senhores que empregavam compositores.
4 DE MAIS. Domenico. Op.cit. p. 184
5 BOFF, Leonardo. Saber Cuidar, a ética do humano - compaixão pela terra. Petrópolis, Vozes,1999.
Atividade
Material : Papel pardo, tinta guache (ou têmpera), pincéis.
O que fazer
Sobre um pedaço de papel pardo retrate uma situação de sofrimento pessoal, social ou comunitário e como ele foi vivido e/ou superado. Depois, o grupo pode conversar a respeito com base neste texto. Se desejar, pode compartilhar as aprendizagens no culto comunitário.
Leonídio Gaede, pastor
Dia Nacional da Diaconia - 10 de abril de 2005