Alguém uma vez disse que no casamento o difícil não é dormir junto, e sim acordar junto todo dia, viver o dia a dia e a rotina. Na maioria das vezes com a rotina o amor vai esfriando, por isso é importante sempre investir no relacionamento entre o casal. Nosso melhor amigo deve ser nosso cônjuge.
Os casamentos, atualmente, vêm passando por muitas crises, uma vez que atitudes que são fundamentais na boa convivência conjugal não estão se fazendo presentes: diálogo, amizade, confiança, demonstrações diárias de carinho e amor.
O apóstolo Paulo nos aconselha em sua carta aos Efésios 6.33: “Cada marido deve amar a sua esposa como ama a si mesmo, e cada esposa deve respeitar o seu marido”. Amor, respeito mútuo e a amizade são a receita fundamental para o êxito do relacionamento conjugal.
Na Paróquia de Palmitos temos um grupo de casais reencontristas que se reúne mensalmente para refletir sobre seu relacionamento conjugal e buscar ânimo para o seu casamento através da Palavra de Deus e da comunhão com os irmãos e irmãs na fé que estão na mesma condição. Num desses encontros estive encarregada de levar uma reflexão para o grupo, e pensando no tema “relacionamento conjugal x rotina” lembrei-me de um conto de Rubem Alves (psicanalista, educador, teólogo e escritor brasileiro), que faleceu, recentemente, aos 80 anos de idade. Na verdade este conto pertence ao escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez (1927-2014), porém Rubem Alves o reescreveu. Uma história fantástica que nos fez refletir sobre o relacionamento conjugal com suas crises e dificuldades. Eis o conto:
SOU ANTROPÓFAGO. DEVORO livros. Quem me ensinou foi Murilo Mendes: livros são feitos com a carne e o sangue dos que os escreveram. Os hábitos de antropófago determinam a maneira como escolho livros. Só leio livros escritos com sangue. Depois que os devoro deixam de pertencer ao autor. São meus porque circulam na minha carne e no meu sangue. É o caso do conto O afogado mais bonito do mundo, de Gabriel García Márquez. Ele escreveu. Eu li e devorei. Agora é meu. Eu o reconto. É sobre uma vila de pescadores perdida em um nenhum lugar, o enfado misturado com o ar, cada novo dia já nascendo velho, as mesmas palavras ocas, os mesmos gestos vazios, os mesmos corpos opacos, a excitação do amor sendo algo de que ninguém mais se lembrava...
Aconteceu que, num dia como todos os outros, um menino viu uma forma estranha flutuando longe no mar. E ele gritou. Todos correram. Num lugar como aquele até uma forma estranha é motivo de festa. E ali ficaram na praia, olhando, esperando. Até que o mar, sem pressa, trouxe a coisa e a colocou na areia, para o desapontamento de todos: era um homem morto.
Todos os homens mortos são parecidos porque há apenas uma coisa a se fazer com eles: enterrar. E naquela vila o costume era que as mulheres preparassem os mortos para o sepultamento. Assim, carregaram o cadáver para uma casa, as mulheres dentro, os homens fora. E o silêncio era grande enquanto o limpavam das algas e liquens, mortalhas verdes do mar.
Mas, repentinamente, uma voz quebrou o silêncio. Uma mulher balbuciou: Se ele tivesse vivido entre nós, ele teria de ter curvado a cabeça sempre ao entrar em nossas casas. Ele é muito alto....
Todas as mulheres, sérias e silenciosas, fizeram sim com a cabeça.
De novo o silêncio profundo, até que outra voz foi ouvida. Outra mulher... Fico pensando em como teria sido a sua voz... Como o sussurro da brisa? Como o trovão das ondas? Será que ele conhecia aquela palavra secreta que, quando pronunciada, faz com que uma mulher apanhe uma flor e a coloque no cabelo?
E elas sorriram e olharam umas para as outras. De novo o silêncio. E, de novo, a voz de outra mulher... Essas mãos... Como são grandes! Que será que fizeram? Brincaram com crianças? Navegaram mares? Travaram batalhas? Construíram casas? Essas mãos: será que elas sabiam deslizar sobre o rosto de uma mulher, será que elas sabiam abraçar e acariciar o seu corpo?
Aí todas elas riram que riram, suas faces vermelhas, e se surpreenderam ao perceber que o enterro estava se transformando numa ressurreição: um movimento nas suas carnes, sonhos esquecidos, que pensavam mortos, retornavam, cinzas virando fogo, desejos proibidos aparecendo na superfície de sua pele, os corpos vivos de novo e os rostos opacos brilhando com a luz da alegria.
Os maridos, de fora, observavam o que estava acontecendo e ficaram com ciúmes do afogado, ao perceberem que um morto tinha um poder que eles mesmos não tinham mais. E pensaram nos sonhos que nunca haviam tido, nos poemas que nunca haviam escrito, nos mares que nunca tinham navegado, nas mulheres que nunca haviam desejado.
A história termina dizendo que finalmente enterraram o morto. Mas a aldeia nunca mais foi a mesma...
Riqueza/SC – Paróquia de Palmitos