Em memória de meu pai
Carlos João Hoch
•24/03/1898 +28/10/1987
Talvez cause alguma surpresa o fato de se falar sobre acompanhamento de moribundos e enlutados num livro que se propõe a abordar a temática do sepultamento cristão. Por isso é necessário, desde logo, estabelecer uma relação entre a assistência pastoral prestada por ocasião de um enterro e o assessoramento oferecido antes e depois desse ato. Na verdade, para que o ato do sepultamento eclesiástico tenha um real sentido é fundamental que ele tenha um antes e um depois. O rito do enterro eclesiástico é uma modalidade pública e ritualizada da presença da igreja no momento da morte. Ela é importante mas não pode jamais ser a única forma de ela solidarizar-se com uma família numa situação tão crucial. Infelizmente, contudo, esse é o caso em muitos lugares.
Estou ciente de que, pelas circunstâncias que envolvem muitos casos de falecimento, é impossível oferecer um acompanhamento pastoral e comunitário a alguém antes da morte. Mas sempre que as circunstâncias o permitirem, é essencial que o moribundo e seus familiares experimentem a presença e o apoio da comunidade cristã. Lutero considerava a consolação mútua dos irmãos e irmãs em momentos de sofrimento e tristeza um dos ministérios mais importantes da igreja.
O ritual do sepultamento eclesiástico adquire mais sentido e atinge melhor o seu alvo quando for precedido de um contato poimênico com a pessoa falecida e/ou com os seus familiares. Da mesma forma, ele precisa ter uma continuidade nos momentos em que o luto e o sentimento de perda por parte dos familiares se tornar mais agudo. O ato de sepultamento dirigido pelo pastor com a presença da comunidade, além de ter um sentido importante como oportunidade de pregação da palavra de Deus, representa também um comprometimento público que se assume frente aos enlutados. O ritual apenas inaugura o apoio e a solidariedade que se deve estar disposto a prestar depois. Esse apoio posterior pode ser até mais importante do que tudo o que se vier a fazer no dia do enterro.
I — Acompanhamento a moribundos
1. Considerações sócio-culturais. Em gerações passadas, pelo menos em nossa sociedade ocidental, se tabuizava o nascimento enquanto se observava um relacionamento mais natural com a morte. Hoje está ocorrendo o inverso: fala-se com mais realismo sobre o nascimento e, de maneira crescente, se tabuíza a morte.
Ainda me recordo dos tempos de infância. Ninguém falava abertamente comigo sobre a forma como as crianças são concebidas e como elas nascem. Um véu de mistério, alimentado pela história da cegonha, encobria essa realidade. As crianças eram afastadas do convívio familiar quando um bebê estava por nascer. Em compensação quando alguém estava doente e viesse a falecer, as crianças acompanhavam de perto todas as etapas desse processo: enquanto doente visitavam-no livremente em seu quarto e, depois de falecido, participavam do velório que tinha lugar em casa, eram estimuladas a tocar no falecido, acompanhavam o cortejo fúnebre e os atos de encomendação e enterro.
Hoje fala-se com maior franqueza com as crianças sobre concepção, gravidez e parto. Há muito se encara, salvo exceções, as questões que dizem respeito à natalidade com relativa naturalidade. Por outro lado, a realidade da morte está, de forma crescente, sendo exorcizada da vivência cotidiana tanto de crianças como de adultos. Afora o formalismo dos ritos funerários, é cada vez menos evidente e sincera a percepção do que significa adoecer, envelhecer, agonizar e morrer. Perderam-se a dignidade, a significação e a força desses momentos decisivos, desses processos progressivos e irredutíveis, desses acontecimentos fortes, marcantes e necessários na evolução do ser humano para a eternidade, a plenitude e o absoluto. (D'Assumpção, p. 17.)
O tratamento hospitalar retira o paciente do convívio dos seus familiares e restringe o contato entre estes a um mínimo tolerável. Assim como o hospital se ocupa da pessoa enquanto doente, assim a funerária se encarrega dela depois de falecida. Morrer em casa no convívio da família, dos vizinhos e amigos e ali ser lavado, vestido e velado está se transformando numa rara exceção. O círculo mais achegado da pessoa falecida, especialmente entre as classes que dispõem de alguns recursos, prefere pagar para que outros assumam uma responsabilidade que, desde os tempos mais remotos, se considerou um direito e um dever sagrado seu. Está a crescer o número de pessoas que jamais viram alguém morrer. Enquanto isso o comércio com a morte prospera. No fundo, o comércio com a morte é o comércio com o medo da morte.
Aumenta o emprego de cosméticos para amenizar os traços que a morte imprime aos rostos de muitas pessoas falecidas. O objetivo é poupar os diretamente envolvidos de se confrontarem com a realidade da morte em toda sua extensão e nudez. O paradoxal é que quanto mais se tenta afastar a realidade da morte da vida cotidiana e expulsá-la para a periferia dos quartos de hospitais e dos necrotérios, tanto mais poder ela adquire sobre as pessoas. Quanto menos se encara a morte de maneira direta, tanto mais ela nos atormenta de forma indireta. Somente sabem realmente viver aquelas pessoas que aceitam naturalmente a morte. E somente saberão morrer aquelas pessoas que souberam viver. Vida e morte são duas faces de uma mesma moeda, que é a existência. Não se pode falar de uma, esquecendo-se da outra (D'Assumpção, p. 11).
2. A pessoa diante da morte. A nossa cultura ocidental, como vimos, tende a não encarar de frente a realidade da morte. Isso tem consequências sobre a maneira com as pessoas individualmente se relacionam com sua própria morte. Cresce o número de pessoas que fogem do confronto com a sua própria transitoriedade e com o seu próprio fim. Quando o pensamento na sua própria morte as assalta, enforçam-se para jogá-lo para bem longe e a distrair-se com outro pensamento ou com alguma atividade qualquer. Esse fato se refletirá sobre a maneira como o moribundo vive os estágios finais de sua vida, sobre os quais falarei mais adiante.
Apesar de toda a repressão social e individual da morte, surgem momentos em que o ocupar-se com a própria morte torna-se inevitável. Uma doença súbita, a necessidade de um exame médico mais aprofundado, uma cirurgia delicada, longas semanas de internamento num hospital são momentos que nos constrangem a encararmos a nossa própria morte como uma possibilidade real.
O que as pessoas temem quando são forçadas a encararem a possibilidade de morrerem em breve? Quem pretende acompanhar uma pessoa que efetivamente esteja morrendo ou que apenas receia que esteja à beira da morte precisa ter a sensibilidade de atentar para os mais diferentes sentimentos e se preparar para enfrentar todo tipo de reações. Eis algumas das atitudes mais frequentes:
—há pessoas que não temem a morte como tal mas as sensações de dor ou de angústia que julgam estarem presentes naquele momento;
—outras temem o desconhecido implícito na morte. Estas lembram que a morte é um portão pelo qual muitos entraram, mas pelo qual ninguém retornou para dizer o que existe do outro lado;
—muitas pessoas temem a morte pelo fato de ela impedir que se realizem determinados planos e sonhos que acalentaram ao longo de toda vida. É como se tivesse que morrer sem terem vivido;
—outros, ao morrer, sentem profundamente por terem que deixar para trás certas pessoas a quem se sentem especialmente ligados ou mesmo realizações pelas quais muito batalharam ao longo da sua vida;
—outros, por sua vez, temem serem enterrados vivos e a angústia de, num determinado momento, acordarem e de se sentirem sufocados. Trata-se geralmente de manifestações de claustrofobia;
—ainda outros, devido a um determinado conceito de Deus ou a um forte sentimento de culpa, temem o juízo final e o momento de terem de prestar contas diante de um Senhor severo e castigador.
A grosso modo dá para identificar e distinguir dois tipos de medo: o medo relacionado ao ato de morrer como tal e o medo do que possa eventualmente vir depois da morte. Esta distinção pode ajudar algumas pessoas a entenderem e a trabalharem melhor o seu medo, geralmente muito vago, da morte.
Por outro lado, é necessário lembrar que o medo não é a única atitude possível diante da morte. Há inúmeras pessoas que encaram a morte de uma forma positiva ou com bastante serenidade. Cito algumas dessas posturas:
—há moribundos que esperam a morte com ansiedade como um momento que lhes trará alívio e descanso de longos e difíceis tempos de sofrimento ou de velhice;
—outros enfrentam a morte com naturalidade, dentro da perspectiva de que tudo precisa um dia chegar ao fim;
—entre cristãos, há muitos que consideram a morte como lucro (Fp 1.21), pois é o momento de entrada para o gozo eterno, de chegar mais perto de Cristo ou de se reencontrar com familiares e amigos que os precederam na morte;
—entre espíritas a morte é considerada como o momento da desencarnação da alma. Como esta, a seu ver, não morre, a morte perde a característica de ser um ato derradeiro e se transforma num momento de expectativa no sentido de saber onde e em quem ela voltará a se encarnar para começar um novo ciclo de vida.
Quem lida poimenicamente com moribundos não pode saber de antemão o tipo de atitude diante da morte que irá enfrentar. É necessário que se predisponha interiormente a estar aberto para qualquer uma das atitudes aqui mencionadas e ainda outras não mencionadas.
É necessário lembrar igualmente algumas das possíveis atitudes de pessoas gravemente enfermas. Convém não perder de vista que também esses merecem a atenção do(a) pastor(a) e da comunidade cristã. Freqüentemente os familiares sofrem tanto ou até mais do que o próprio moribundo. As posturas vão desde um profundo choque e de um sentimento de perda irreparável, até uma atitude mal disfarçada de alívio; desde uma disposição para falar abertamente com o familiar que está à morte e de fazer todo o possível para lhe aliviar a dor e a solidão, até uma atitude de incapacidade total de lidar com a situação e de se solidarizar com ele. Quantas vezes se ouvem pessoas que acompanharam de perto o sofrimento de alguém gravemente enfermo exclamar: Eu não conseguia mais ver essa pessoa sofrer desse jeito!. Mais adiante retornarei a esse assunto.
3. O drama do paciente terminal. São inegáveis os progressos que a medicina moderna fez nos últimos anos no sentido de socorrer pessoas gravemente enfermas. Esses avanços se observam tanto na rapidez e na eficiência com que se é capaz de salvar uma vida humana, como também na capacidade de prolongar cada vez mais a vida de pacientes para os quais, pela natureza de sua enfermidade, não há mais esperanças de cura —os chamados pacientes terminais.
De um lado nos cabe sermos gratos a Deus pelos progressos da medicina e pelo empenho crescente que médicos, enfermeiros e outros especialistas da saúde estão fazendo para salvar vidas humanas. Por outro lado, os avanços técnicos e científicos na área da saúde trouxeram consigo o perigo duma crescente desumanização no atendimento às pessoas. A dificuldade já começa pelo fato de a pessoa doente ser removida do ambiente familiar e ser levada para um quarto estranho de hospital. A partir daí, dependendo da gravidade do caso, ela passa a perder totalmente o controle das ações. Dificilmente se concede a ela o direito de opinar. Outros agem e decidem por ela.
Estou consciente de que, em casos graves, não se pode esperar que o médico entre num longo diálogo com o paciente. É necessário, nesse caso, que ele aja com rapidez, cabendo ao paciente submeter-se à sua competência. Mas quantas vezes acontece que o paciente fica longas horas e intermináveis dias num leito de hospital, rodeado de toda sorte de aparelhos sob o comando duma equipe especializada em controlar a temperatura, a pressão, as batidas cardíacas, mas sem ninguém que dispense atenção às suas ansiedades interiores de natureza psicológica, emocional ou espiritual. Os agentes da saúde estão melhor treinados para manusear aparelhos do que para lidar com necessidades e sentimentos humanos. Tem-se em vista unilateralmente a cura física. Trata-se a doença e não o doente.
Imagino que muitas pessoas em seus últimos dias de vida trocariam com gosto uma parcela do atendimento científico e mecânico por um pouco mais de calor humano e pela oportunidade de externar certas dúvidas e certos anseios que se acumulam em seu interior. Falta à nossa medicina uma preocupação mais voltada ao conjunto das necessidades da pessoa.
Em se tratando de pacientes terminais, as necessidades que transcendem a dimensão física aumentam sensivelmente. E é nessas horas, justamente, quando os recursos que podem curar o corpo atingem o seu limite, que os profissionais da saúde, muitas vezes, se sentem mais limitados e despreparados.
Um psicólogo certa vez fez uma experiência intrigante numa unidade de terapia intensiva dum hospital norte-americano. Ele se propôs a cronometrar o tempo que decorria entre o momento do paciente chamar a enfermeira (assinalada pelo acender duma pequena luz vermelha sobre a porta do quarto) e o momento de esta atender ao chamado. Depois de alguns dias de observação, o psicólogo percebeu que as enfermeiras atendiam mais rapidamente o chamado dos pacientes em melhor estado de saúde e que levavam mais tempo para atender ao chamado dos pacientes que estavam mais próximos da morte. Trata-se duma reação inconsciente de evitar o contato com a morte. Tal reação não é peculiar apenas das enfermeiras, mas da maioria das pessoas.
A reação inconsciente das enfermeiras acima descrita é apenas uma das formas de demonstrar que o moribundo, junto com as agruras da morte, ainda está exposto à nossa incapacidade de nos relacionar naturalmente com ele. Na verdade, o moribundo tende a se sentir profundamente só. Não estaria aí uma das funções primordiais da poimênica junto a moribundos: ser um veículo da presença solidária de Deus que cria comunhão e conforto em meio à angústia e à solidão?
Por uma questão de justiça é necessário compreender que não é fácil para os profissionais da saúde, principalmente aos médicos e às enfermeiras, aceitarem o cessar da vida de pessoas entregues aos seus cuidados. Cada pessoa que morre os lembra das suas limitações e da sua incapacidade de vencerem a batalha contra a morte. Convém lembrar também que a sociedade e até mesmo a própria igreja atribuem cada vez mais a eles a tarefa de lidar com a morte, não raro, devido a sua própria incapacidade de lidar com ela. Muitos desses agentes da saúde são deixados a sós com o peso dessa responsabilidade.
É necessário lembrar igualmente que a maneira como se assiste a um moribundo em nossa sociedade e, não raro também na igreja, tem algo a ver com a situação econômica em que este se encontra, respectivamente com a classe social a que ele pertence. A estrutura classista da sociedade provoca, por consequência, a estrutura classista da medicina e dos recursos da saúde, que defende de uma maneira muito mais eficaz a vida dos possuidores do que a vida dos trabalhadores e suas famílias (D'Assumpção, p. 61). A poimênica precisa ter em mente esse fato e, sem esquecer os melhor situados, cuidar para não privilegiar mais uma vez na morte os que já foram privilegiados em vida.
4. As fases psicológicas do processo de morrer. Elisabeth Kübler-Ross, uma médica e psicóloga suíça que atua nos U.S.A., juntamente com uma equipe de pastores e estudantes de teologia, teve a ideia de dialogar com pacientes em fase terminal e registrar o seu comportamento diante da morte. Ela o fez mediante a autorização dos próprios doentes. O seu livro Sobre a morte e o morrer alcançou reconhecimento internacional em pouco tempo. As suas observações ajudam a entender pacientes que passam por uma fase mais ou menos longa de sofrimento antes de morrerem e que têm conhecimento da gravidade da sua doença. Elas não se aplicam a moribundos que não sabem que têm pouco tempo de vida e, como é lógico, também não se aplica a pessoas que morrem subitamente.
a) Fase da negação: Quando uma pessoa recebe a notícia de que está acometida de uma doença grave, ela freqüentemente reage dizendo: Não, não pode ser verdade. Eu não! A negação da possibilidade da morte é a atitude inicial mais comum. Essa negação pode chegar ao ponto de a pessoa achar que se trata de um engano no diagnóstico e, não raro, ela troca de médico para se certificar de que sua doença é realmente grave. Klüber-Ross acrescenta, contudo, que essa reação inicial não significa que o mesmo paciente não queria ou não se sinta feliz e aliviado em poder sentar-se mais tarde e conversar com alguém sobre a sua morte próxima (p. 50). Trata-se duma necessidade de, por assim dizer, rejeitar inicialmente uma realidade para, depois, ir digerindo-a aos poucos, na medida em que for se fortalecendo interiormente para aceitá-la.
b) Fase da revolta: Quando não mais for possível negar os fatos, explodem os sentimentos de inconformidade, de angústia, de tristeza e de raiva. Por que justamente eu? As vezes a revolta se dirige ao próprio Deus. Por que Deus, que dizem ser bom e misericordioso, permite que isso aconteça comigo? Nessa fase não convém que a pessoa que acompanha o moribundo seja afoito em fazer apologias de Deus ou procure achar explicações plausíveis. O que o paciente precisa é de alguém que o ouça e o aceite em sua inconformidade e em seu sentimento de revolta. Não lhe dar oportunidade para externar esses sentimentos só aumentará sua revolta e sua solidão.
c) Fase da barganha: A barganha é uma atitude do paciente de pretender negociar com Deus e de procurar fazer um acordo com ele. Trata-se duma tentativa de estabelecer um comprometimento mútuo: Se tu, ó Deus, restabeleceres minha saúde, eu me comprometo a levar uma vida mais consagrada a ti e ao próximo. É essa a postura que leva milhares de pessoas doentes a fazerem promessas a Deus que posteriormente procuram cumprir em dias de romarias a determinados santuários. No fundo, trata-se uma tentativa de manter acesa a esperança de cura.
d) Fase da depressão: Quando a pessoa percebe que a doença avança e que não há mais como negá-la, passa a predominar um profundo sentimento de perda. Em se tratando de pessoas mais jovens, — mas não só elas — passam a se preocupar com o futuro dos filhos, com a continuidade do trabalho que vinham desenvolvendo e com demais questões pendentes. A possibilidade de que tudo possa chegar em breve a um fim é, agora, muito mais real. Pode se instalar tristeza e depressão. Nessa fase o paciente tende a ser mais aberto para o diálogo e para externar sentimentos. Aqui é importante que se ofereça proximidade física e espiritual bem como a certeza de que ele não está só.
e) Fase da aceitação: O moribundo percorreu um penoso caminho de altos e baixos, de luta e resistência, de negação e de revolta, de negociação e de preparação para o pior. Agora se instala uma fase de entrega. Não há mais forças nem se vê mais grande sentido em continuar lutando. O corpo já está frágil, o espírito cansado. O moribundo dorme bastante. Já não lhe interessam mais tanto os acontecimentos à sua volta. A comunicação com ele se dá, muitas vezes, mais num nível não-verbal do que com muitas palavras. Aqui gestos falam mais alto do que palavras.
Os estágios acima descritos não precisam ocorrer sempre, nem se sucedem necessariamente na ordem exposta. Às vezes predomina um estado de espírito, às vezes outro, outras vezes os estágios se confundem. Também a duração de cada estágio ou fase é variável de pessoa para pessoa.
Segundo Kübler-Ross, a única coisa que persiste em todos os estágios com maior ou menor intensidade é a esperança. É literalmente verdade que a esperança é a última que morre.
O diálogo poimênico não deve alimentar em demasia essa esperança do moribundo, nem tampouco questioná-la. A esperança é fundamental para que o moribundo consiga carregar a sua cruz. Além do mais, não é o nosso Deus um Deus de esperanças? Não é ele o fundamento de toda esperança? A poimênica cristã se alimenta da esperança que crê contra a esperança (Rm 4.18) e vive da certeza do salmista que diz: Entrega o teu caminho ao Senhor, confia nele e o mais ele fará. (Salmo 137.)
5. Considerações complementares. Uma atitude poimênica importante é a disposição de partilhar do sofrimento da pessoa que está à beira da morte e, se possível, dos seus familiares. Não falo primordialmente do sofrimento físico, mas do sofrimento que resulta das perguntas cruciais de natureza emocional e espiritual que a morte impõe. Muitas pessoas morrem não só da doença de que estão acometidas mas também do abandono a que estão sujeiras como moribundos, ou seja, como pessoas de quem poucos ousam se aproximar.
Convém informar-se de antemão com o médico ou a enfermeira responsável sobre o estado de saúde do paciente. Uma vez em contato com este, é importante prestar atenção especial ao grau de consciência que ele tem da gravidade da sua doença. Há moribundos que não estão inteirados (ou não querem inteirar-se) do seu real estado de saúde. Outros mostram-se muito inseguros a esse respeito e, vez por outra, lançam urna pergunta ou um olhar inquiridor para a pastora, tentando decifrar o que esta sabe ou pensa a respeito.
A simples visita da pastora, em muitos casos, por si só já é motivo de grande ansiedade por parte do doente. Pois para muitos deles, especialmente em comunidade onde a pastora não costuma visitar os membros com frequência, a sua presença é um presságio de que se está prestes a morrer. Alguns vêem na pastora e no pastor uma ave de mau agouro. Tanto mais se ela ou ele vem com a intenção de celebrar a Santa Ceia com o doente.
Sempre que possível convém incluir os familiares no processo de acompanhamento de um moribundo. Estes, muitas vezes, precisam de ajuda para encontrarem uma forma de se sentirem úteis e solidários e, desta forma, diminuírem a sua própria ansiedade. Podem, no entanto, surgir ocasiões em que um contato a sós com o moribundo seja indicado, especialmente quando ele mesmo faz alguma indicação de desejá-lo.
Como vimos acima, o moribundo pode passar por diferentes estágios no seu processo de morrer. Antes de visitá-lo não se saberá em que estágio ou estado de espírito se encontra. Por isso convém não ir ao seu encontro com muitas ideias ou propósitos estabelecidos de antemão. Planos prévios podem dar maior segurança ao que realiza a visita. Mas podem impedir que este consiga ouvir a real necessidade do paciente. É possível que à pastora caberá a tarefa de ouvir o seu desabafo inconformado ou a sua lamentação sobre o estado de saúde que não dá sinais de melhora. É possível que a situação seja propícia à leitura de um texto bíblico ou à oração. Pode ser que a simples presença silenciosa e solidária seja a atitude mais indicada.
Certa vez um paciente me disse: Sabe, pastor, quando se está no hospital, se passam coisas na cabeça da gente que nunca se pensou antes. Se isso vale para doentes comuns, tanto mais para moribundos. A meu ver, cabe à pastora ser uma parceira, a quem o doente possa confidenciar essas coisas que lhe vêm à cabeça e sobre as quais ele não tenha com quem falar. Assim, por exemplo, ele poderá estar se perguntando o que tem feito ao longo de sua vida. O tempo disponível longe do corre-corre da vida quotidiana e a possibilidade de vir a morrer favorecem um tal balanço de vida. Outro moribundo, na tentativa desesperada de entender o que está se passando, estabelecerá uma relação entre a doença que está sofrendo e os erros que cometeu ao longo da sua vida. É frequente que se considere a doença e a morte como salário de pecados. Nesse caso, convém estar atento a possíveis sentimentos de culpa implícitos.
O mais importante em tudo isso é ter a sensibilidade de ouvir e de permitir que o doente consiga dizer o que pretende, sem ser atropelado pela necessidade prematura da pastora em lhe trazer consolo. Ouvi atentamente as minhas razões e isso já me será a vossa consolação, afirma Jó, alguém indiscutivelmente experimentado no sofrimento (Jó 212).
II — Considerações sobre a verdade junto ao leito de morte
O acompanhamento a moribundos pode nos colocar diante duma situação ética difícil, qual seja a de decidir se é ou não recomendável falar com a pessoa sobre a gravidade da sua doença, mais precisamente, dizer-lhe ou não a verdade sobre sua real situação de saúde.
Estamos aqui diante duma das questões mais delicadas de todo o ministério pastoral. Ser confrontado com a notícia da própria morte, próxima ou iminente, significa tocar no ponto mais vulnerável da alma humana. Se o ato de ser mensageiro de uma má notícia a outrem, seja ele um familiar ou conhecido nosso, já é uma tarefa espinhosa, quanto mais a de dialogar sobre a possibilidade de morte de interlocutor diretamente atingido que está diante de nós. Um diálogo dessa natureza suscita uma avalanche de sentimentos e emoções imprevisíveis no paciente e, não raro, também naquele que se dispõe a acompanhá-lo.
É necessário ter consciência de que o ato de encarar de frente a realidade da morte é, cada vez, uma situação única que coloca frente a frente duas pessoas igualmente únicas na sua maneira de ser, de pensar e de sentir. Torna-se por isso impossível fazer recomendações universais e aplicáveis em qualquer circunstância. Tudo o que vou dizer a seguir não passa de uma tentativa de aproximação a um assunto que não tolera respostas fáceis nem soluções padronizadas.
Falar com alguém sobre a proximidade da sua morte pressupõe um profundo respeito à pessoa humana e à maneira como essa pessoa encara a vida e a morte. É um erro pensar que a morte seja um momento que está além do limiar dessa vida. É bem verdade que o morrer é a última cena no palco da vida. Nem por isso deixa de ser um momento que se vive. Por isso considero o acompanhamento pastoral a moribundos como uma atitude de sustentação à vida, como presença solidária num momento decisivo da vida.
A pergunta pela verdade junto ao leito de morte é uma questão que divide as opiniões das pessoas. Há, de um lado, aquelas que entendem que, sob hipótese alguma, cabe ao pastor comunicar a uma pessoa que ela está morrendo. Elas entendem que essa tarefa cabe ao médico e a ninguém mais pois somente esse tem condições de atestar um tal quadro clínico. Por outro lado, há os que julgam ser responsabilidade inalienável do pastor, como guia espiritual, em qualquer circunstância dizer franca e abertamente à pessoa o que se passa com ela.
Pessoalmente entendo que o paciente tem o direito de saber a verdade sobre o seu estado de saúde. Ele teve, ou deveria ter tido, esse direito em qualquer questão que lhe dizia respeito, ao longo de toda sua vida. Por que não haveria de tê-lo também na hora da morte. Por outro lado, o paciente tem igualmente o direito de não querer saber a verdade sobre o seu real estado de saúde. Tem também o direito de escolher a pessoa com a qual deseja, se é que deseja, falar a respeito desse assunto. Cabe ao pastor respeitar o paciente em qualquer circunstância. Considero o paciente como o critério último para qualquer decisão que o pastor venha a tomar.
À luz do que foi dito, entendo que seja perigoso manter posições rígidas e inflexíveis, formadas de antemão, a respeito desse assunto. Essas podem impedir que se examine com criteriosidade as circunstânicas especiais de cada caso.
Faço depender minha decisão pessoal de algumas premissas ou considerações norteadores, as quais pretendo compartilhar a seguir:
a) Avaliar onde o paciente se encontra no processo de tomada de consciência do seu estado de saúde. Pesquisadores como Kübler-Ross mostraram que confrontar-se com a própria morte é um processo que percorre certas fases, como vimos acima. Há pacientes que precisam de um certo tempo para conseguirem se predispor interiormente para ouvirem a verdade. Seria desumano e um gesto de desamor forçar alguém a se confrontar com uma mensagem, para a qual ele dá sinais de não, ou ainda não, estar em condições de ouvir. Dizer a verdade a um paciente terminal exige muita sensibilidade para descobrir o momento oportuno de fazê-lo. É igualmente importante tentar avaliar corretamente se a pessoa tem, no momento, a estrutura pessoal necessária para ser confrontada com a verdade.
b) Caso o pastor tenha chegado à conclusão de que é desejo do paciente falar com ele a respeito desse assunto (respeitados os pontos c) e d) abaixo mencionados), cabe-lhe descobrir a forma adequada de fazê-lo. Ele precisará sentir e decidir, se é conveniente dizer-lhe toda a verdade no decorrer dum mesmo diálogo, ou se é indicado servi-la em doses menores, em encontros sucessivos. Nesse último caso, convém não demonstrar que ele sabe mais do que está dizendo nesse momento. O pastor poderá dizer que de fato, confirmando a suspeita do paciente, o seu estado de saúde inspira cuidados. Pode sentir com o paciente se este deseja que ele colha mais informações junto ao médico. No encontro seguinte e nos sucessivos vai desvendando paulatinamente toda a verdade. Há pacientes, contudo, que já estão há tanto tempo sendo corroídos interiormente pela suspeita e pela dúvida que desejam saber tudo de vez. Já estão interiormente preparados para o pior e preferem a verdade sem rodeios.
c) O médico é uma pessoa-chave que precisa estar envolvida nesse processo. O pastor não é médico. A ele não cabe fazer diagnósticos sobre o estado de saúde do paciente, nem se aventurar em áreas onde não tem competência. Se o pastor entende que o paciente deseja falar com ele sobre o seu real estado de saúde, deve antes dialogar com o médico para se informar sobre o estado global de saúde do paciente e para se assegurar com ele da conveniência de tocar nesse assunto. É possível que o próprio médico deseje dialogar sobre essa questão com o paciente. Nesse caso, o pastor poderá entrar em conta to com o paciente posteriormente. Pode acontecer que o médico prefira que o pastor seja o mensageiro da má notícia (há médicos que têm a liberdade de admitir sua dificuldade de lidar com a morte e de dialogar sobre ela com seus pacientes). Também é possível que o médico e pastor, juntos, dialoguem com o paciente sobre o seu estado de saúde. Em todo caso, qualquer atitude do pastor deve estar afinada com a do médico. Assim se evitará que o médico e pastor entrem em conflito ou acabem dando informações desencontradas ao paciente. O bom relacionamento entre médico e pastor é essencial para o trato da questão em pauta.
d) Outro elo de relação importante é a família do paciente. Geralmente a família é a primeira a ser informada do estado de saúde do paciente. Esta não raro tem dificuldade de lidar com tal notícia e passa a não saber como se relacionar com o moribundo. Isso tende a aumentar a solidão deste. O pastor tem um papel importante a desempenhar junto aos familiares, seja consolando-os, seja procurando junto com eles uma forma de se relacionarem adequadamente com o paciente. Recentemente falei com uma senhora que, com grande tristeza, me contou que perdeu seu marido há quase 20 anos e que, mesmo tendo-o acompanhado por longos e sofridos meses, jamais deu chance para que seu esposo pudesse tocar no tema morte com ela. Ela se esforçou o tempo todo em transmitir-lhe a impressão de que tudo estava bem com ele. Hoje, ela lamenta o fato: Lhe fui companheira fiel ao longo de toda a vida, mas deixei de sê-lo no momento derradeiro. Por outro lado, sei duma família, cuja mãe estava com câncer e onde o pai e os filhos decidiram, juntos, dialogar com ela sobre a doença e a morte iminente. Esse gesto aproximou muito toda a família, possibilitou que se consolasse mutuamente e que deixassem de sofrer cada um isoladamente. Esse gesto permitiu que as decisões que precisavam ser tomadas, no que diz respeito ao futuro do marido e dos filhos e dos bens materiais, pudessem ser tomadas em conjunto. No seu todo esse fato contribuiu para que o processo de luto, após o falecimento da mãe, pudesse transcorrer de forma mais natural e sadia, sem os frequentes sentimentos de culpa. O aconselhamento pastoral pode contribuir para que o diálogo entre o moribundo e os familiares não seja interrompido, mas intensificado justamente num momento em que a comunicação é mais importante do que nunca.
e) Um problema que freqüentemente assola os familiares e amigos ou mesmo os funcionários do hospital é a dúvida se o paciente sabe ou não sabe a verdade sobre o seu estado de saúde. Essa incerteza faz com que ninguém saiba ao certo como se relacionar com ele. Muitas pessoas passam a ter um cuidado exagerado de não cometer o descuido de revelar algo. Muitos pacientes passam a notar que o tratamento que os outros lhe dispensam não é natural e, a partir disso, passam a desconfiar de que lhe estão ocultando algo. Há pacientes que, para pôr os outros mais à vontade, passam a fazer de conta que de nada sabem. Esse jogo de esconde-esconde recíproco não faz bem a ninguém. Segundo Kübler-Ross, a maioria dos pacientes acaba descobrindo, de um modo ou de outro, o que se passa com eles e, geralmente, dão graças a Deus quando finalmente encontram alguém com quem possam falar a respeito. Isso dispensa o uso de máscaras e abre a possibilidade a que se rompa o círculo da angústia e da solidão. Às vezes, o próprio paciente, geralmente para alívio de uns e de desespero de outros, toma a iniciativa de tocar no assunto. Observa-se então que poucos estão em condições de lidar com tal situação. Os menos preparados passam a contradizer o paciente, dizendo que ele está absolutamente enganado. Há pacientes que optam, por isso, em falar com o seu pastor a respeito. Esperam que este esteja em condições de encarar o fato. Mas, não raro, também este é incapaz de suportar a verdade sem subterfúgios e escapismos. Na medida, porém, em que os pastores se propuseram a encarar as suas próprias dificuldades e temores em relação à morte com honestidade e franqueza, eles também estarão em condições de ajudar outros em tais momentos.
f) Uma premissa importante para um acompanhamento eficaz de uma pessoa à beira da morte é a existência de um relacionamento entre ela e a pessoa do pastor. Falar a alguém sobre a iminência de sua morte requer que haja esse relacionamento anterior ou, pelo menos, a firme disposição de acompanhá-la daí em diante com muito carinho. Constitui-se numa enorme falta de sensibilidade pastoral dizer a uma pessoa que ela está prestes a morrer e depois deixá-la sozinha com essa verdade. Digo isso, porque sei do perigo do pastor em se sentir motivado ou mesmo impelido por familiares a tocar nesse assunto com o moribundo e, posteriormente, por excesso de trabalho ou por resistência interna, deixar de visitá-lo. Quem não é capaz de dar os passos posteriores no acompanhamento a um moribundo é preferível que não dê o primeiro. Há também aqueles pastores que sentem a necessidade de dizer ao paciente que ele está à beira da morte para, em última hora, ainda levá-lo à conversão. Pessoalmente tenho dificuldade com uma tal postura, pois me parece que se pretende tirar proveito da situação angustiosa de alguém para satisfação duma necessidade pessoal do pastor.
Quero concluir dizendo que também o dizer a verdade tem o seu critério definido pelo amor, mais precisamente pelo amor de Jesus Cristo. Como está escrito: Mas, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é o cabeça, Cristo. (Ef 4.15.) E onde nós fracassarmos com o nosso consolo, saibamos que como alguém a quem sua mãe consola, assim o Senhor mesmo os consolará (Is 66.13).
III — Acompanhamento a enlutados
1. Orientação geral: O fato de os membros, mesmo os mais afastados, continuarem procurando o pastor para que este celebre um rito fúnebre não isenta a igreja da responsabilidade de ir além desta forma ritualizada de se fazer presente nesta hora. O ritual do sepultamento é apenas um breve momento. Ele tem uma função importante porém limitada no processo global do luto e do sofrimento que a morte desencadeia. Os subsídios seguintes pretendem servir de ajuda para um assessoramento mais profundo e fraterno a pessoas enlutadas.
Iniciei falando do ritual fúnebre porque, mesmo sendo um momento breve, é uma peça importante no processo de luto e da superação do sofrimento causado pela morte de um ente querido. Além de se constituir numa boa oportunidade de pregação, ele canaliza a emoção do luto para uma forma socialmente reconhecida (Josuttis, p. 203). A celebração ritual dá oportunidade a que o sofrimento e o luto sejam manifestados mais livremente do que em outras ocasiões. Ora, tendo uma função catártica, terá também uma função poimênica.
Uma visita do pastor à família enlutada, horas antes do enterro, tem uma função poimênica importante. Uma vez porque ajuda ao pastor a preparar melhor a sua alocução de enterro, dando-lhe subsídios importantes para dirigir a palavra de maneira adequada à situação específica em que se encontra a família enlutada. Por outra, esta visita pode se transformar numa primeira e valiosa oportunidade para o desabafo de um ou outro membro da família. É necessário que o pastor esteja preparado para essa hipótese e reserve tempo suficiente para isso. Ao falar sobre os dados bibliográficos, sobre a doença do(a) falecido(a) e sobre textos bíblicos ou hinos a serem usados no enterro, a família pode se envolver emocionalmente e sentir o desejo de ter no pastor alguém que a ouça, a entenda e se solidarize com ela na dor. O pastor, no entanto, levado pela pressa e pela preocupação central de recolher subsídios para a sua alocução fúnebre, corre o risco de dar um trato por demais técnicos aos fatos e, assim, desperdiçar uma oportunidade valiosa dum relacionamento poimênico significativo.
. À pastora mais atenta não passarão desapercebidos certos detalhes que se evidenciam na visita e no ritual fúnebre. Refiro-me, por exemplo, à maneira de os familiares se relacionarem uns com os outros, aos eventuais conflitos, aos sentimentos de culpa, às dificuldades financeiras, às preocupações em relação ao futuro do(a) viúvo(a) (especialmente em se tratando de pessoa idosa). Merecem atenção especial as circunstâncias que envolveram a morte. Esta pode ter sido causada por negligência humana ou por fatores estruturais como, por exemplo, insalubridade no emprego, falta de segurança no trabalho, violência policial, etc. É evidente que todas essas questões não poderão ser abordadas adequadamente naquelas poucas horas que antecedem o ritual fúnebre. Muitas vezes esse nem é o momento propício para fazê-lo. A convivência com a família enlutada, mesmo que breve, oferecera pistas e indicações sobre questões que poderão ser retomadas posteriormente. É nesse sentido que destaquei inicialmente o fato de o ritual fúnebre apenas inaugurar o assessoramento pastoral propriamente dito que deverá se seguir depois, em momento mais oportuno.
2. Fases do luto: Assim como estudos especializados mostraram que um moribundo tende a atravessar certas fases no seu processo de morrer, assim também se conseguiu detectar certas fases pelas quais passa uma pessoa enlutada. Fala-se por isso de um processo de luto, ou seja, pode-se distinguir manifestações diferentes de luto em momentos diferentes duma caminhada, respeitadas as características individuais de uma pessoa. As minhas considerações sobre o assunto se baseiam fundamentalmente nos estudos de Y. Spiegel e de R. Lindner.
a) Fase de choque: Muitas vezes a morte colhe as pessoas de surpresa. E mesmo já sendo esperada, quando chega, continua tendo um forte impacto. O choque resulta do confronto direto com a realidade nua e crua da morte. Essa primeira reação de choque pode se manifestar em forma de um grito desesperado ou em forma de uma sensação gélida que passa por todo o corpo (alguns chegam efetivamente a sentir frio). Outras pessoas contam que sentiram a notícia da morte de alguém querido como se tivesse levado uma paulada na cabeça e como se estivessem sendo anestesiados e fossem incapazes de manifestar algum tipo de sentimento. Finalmente outros têm a sensação de que o que estão vendo ou ouvindo não pode ser verdade. Numa reação espontânea, quando confrontados com o corpo do falecido, sentem um forte impulso de querer trazê-lo de volta à vida.
b) Fase controlada: Depois da fase do choque inicial, segue-se uma fase mais controlada, uma espécie de fase intermediária. A pessoa enlutada é desviada e distraída por diversos acontecimentos e fatos que sucedem ao seu redor. Ela tem que pensar numa série de questões que dizem respeito ao enterro. Precisa tomar outras decisões. Há pessoas a sua volta. A cerimônia do enterro tem lugar. É, pois, uma fase de agitação. Os sentimentos são confusos, embora predominante o sentimento de tristeza e de perda. Mas os outros estão aí e o enlutado não chega a se dar conta exatamente do que a morte da pessoa significa para ela. Esta fase termina quando o ritual fúnebre se encerra e quando as pessoas se dispersam.
c) Fase do vazio existencial: Esta é a fase mais importante, mais prolongada e dramática do processo de luto. Ela inicia quando cessa a agitação, os familiares e amigos se foram e quando retorna a rotina do dia-a-dia. Só que o dia-a-dia agora não é mais o mesmo. O sentimento de perda se instala de forma tão forte que parece impossível pensar em outra coisa. Onde quer que se vá e não importa o que se faça, a pessoa falecida está presente. Só agora parece que o enlutado se dá conta do que aconteceu de fato. É a fase na qual ele adquire a consciência real da perda e se apercebe do que o(a) falecido(a) significava para ele. Noites de solidão e de lágrimas se sucedem. Uma frequente idealização da pessoa falecida faz com que a sensação de perda se torne ainda maior. Nesta fase muitos enlutados sentem um grande vazio existencial, sendo possível que lhes sobrevenha o sentimento de perda do sentido da vida. São frequentes os sentimentos de depressão, especialmente entre aqueles que têm uma tendência para isso.
Entre pessoas de fé, não raro se manifesta a sensação de terem sido esquecidas e abandonadas por Deus. Palavras bíblicas que outrora lhes traziam consolo, agora parecem vazias e destituídas de sentido. Alguns cristãos sentem a necessidade de manifestar seu inconformismo e seu protesto contra Deus que permitiu essa desgraça.
Esta é a fase em que o enlutado mais precisa de apoio de familiares, amigos, vizinhos e da solidariedade e do consolo de irmãos e irmãs na fé. Ele precisa sentir que tem pessoas que estão ao seu lado. Nem tanto para lhe darem conselhos, mas para ter com quem compartilhar a sua tristeza ou mesmo o seu protesto. Ele precisa recapitular certas coisas da vida que teve em comum com a pessoa falecida e contar repetidamente certos episódios que para ele estão carregados de emoção. Outros enlutados preferem se recolher em si mesmos e curtir sozinhos a sua tristeza e desolação. Eles dão a impressão de não quererem visitas. Não se deve confundir, todavia, o desejo de não falar com o desejo de não receber visitas. Às vezes o enlutado prefere não falar, mas no fundo ele se alegra ao notar que outros o procuram, nem que seja para silenciar com ele.
d) Fase de readaptação: Esta fase vai surgindo aos poucos, na medida em que o enlutado consegue reorganizara sua vida, reencontrar alegria no trabalho e tomar iniciativas no sentido de ir ao encontro de pessoas e mesmo tomar decisões (p. ex. presentear outros com
as roupas do(a) falecido(a), promover mudanças profissionais ou investir em algo novo, modificar certas coisas na sua própria casa, etc.). Nota-se que o enlutado iniciou um processo de ordenamento do caos interior e que optou pela vida. Só agora que o enlutado se libertou mais interiormente do falecido, ele consegue deixá-lo repousar em paz e ver com mais objetividade o relacionamento que houve entre eles, tanto as facetas positivas como as negativas. Aos poucos o enlutado vai adquirindo a liberdade para, em as circunstâncias o permitindo, entrar em novas ligações afetivas ou de transferir sua afetividade para outros objetos. Trata-se, enfim, de uma readaptação à vida assim como ela é, sem a existência da pessoa falecida.
O falar em fases do luto não deve ser entendido como a pretensão de querer estabelecer um curso padrão que o processo de luto precise percorrer. Cada situação de luto é especial e única. Há muitos fatores que determinam a forma do luto, desde aspectos culturais, até características da personalidade e, não por último, o tipo de relacionamento que houve entre a pessoa falecida e o enlutado. Portanto, quando se fala em quatro fases do luto não se pretende dizer que toda pessoa enlutada precise necessariamente passar por esse processo na forma e na ordem acima descritas. Algumas pessoas podem experimentar quase simultaneamente os sentimentos mencionados. Outras podem num determinado dia ter a sensação de estarem superando a fase aguda do luto e, pouco depois, recai num momento de grande tristeza e angústia.
Mesmo assim, o falar em fases do processo de luto se constitui numa ajuda para quem lida com pessoas enlutadas, pois, conhecendo-se melhor as formas que o prantear pode assumir, é possível relacionar-se com essa pessoa de forma mais adequada e de modo a que ela se sinta melhor compreendida. Conhecendo-se as fases, poder-se-á evitar que se diga ou faça certas coisas num momento inoportuno.
Há um momento certo para todas as coisas debaixo do céu: um tempo de chorar com os que choram, um tempo de silenciar e um tempo de falar, um tempo de abraçar e um tempo de afastar-se do abraço (Eclesiastes 3.1 ss).
3. Questões complementares: O acompanhamento a pessoas enlutadas requer que se tenha presente ainda algumas ou trás questões que abordamos a seguir.
Para que o processo de luto possa ter um desenvolvimento sadio é fundamental que não seja bloqueado, atrapalhado ou reprimido. O pranto precisa ter o espaço necessário para se expressar. O luto que encontra um ambiente de compreensão suficiente para se externar, liberta e desintoxica o interior da pessoa e possibilita um novo começo. Luto reprimido pode ser causa de doenças e de transtornos psíquicos futuros.
Infelizmente a nossa sociedade ocidental, tecnizada e racional, é marcada por uma grande incapacidade de prantear (Mitscherlich). O problema ainda se torna mais agudo em contextos onde o prantear é sinônimo de fraqueza e de infantilidade. Quanto mais as pessoas ascendem na escala social, tanto mais discreta e sofisticada parece tornar-se a forma de manifestar o luto, por exemplo, por ocasião de um ato fúnebre.Óculos escuros e maquilagem abundantes servem para manter a postura e encobrir os verdadeiro sentimentos. Entre as classes populares e rurais a manifestação do luto geralmente é mais espontânea e por isso mais salutar.
Mas também na igreja a livre expressão do luto sofre restrições. Em alguns círculos o pranto e lamentação são considerados expressão de pouca fé. A fé nesse caso funciona como um fator inibidor do luto, mesmo que a Escritura fale abundantemente de pessoas tementes a Deus que expressam livremente diante dele as suas lamentações e até mesmo o seu próprio protesto. Às vezes a própria incapacidade pessoal do pastor em expressar seus sentimentos pode se constituir num fator que o impede de se aproximar de pessoas enlutadas, pois receia perder a postura pastoral e não conter suas emoções.
A intensidade e a forma de expressar o luto também depende da natureza do relacionamento que existia entre a pessoa falecida e os enlutados. Em se tratando de uma pessoa idosa ou de alguém que vinha sofrendo a longo tempo, geralmente já houve a oportunidade de se prantear antecipadamente a possível perda. O luto posterior à morte, nesse caso, costuma ser mais ameno.
Por outro lado, mortes súbitas ou a morte de pessoas que viviam numa relação conflituada com seus familiares geralmente tornam o processo de luto mais difícil. Elas se constituem em terreno fértil para o desenvolvimento de sentimento de culpa ou de desavenças familiares, até porque muitas questões ficaram pendentes. Pode acontecer então que o enlutado se auto-acuse exageradamente por eventuais palavras ofensivas que tenha pronunciado ou pensado, ou se culpe por não ter feito tudo o que estava ao seu alcance para evitar a morte.
Nesse caso o luto poderá se caracterizar por atos de penitencia, tais como, gastar somas exorbitantes com o esquife, com flores e com o túmulo ou fazer visitas quase diárias ao cemitério. São tentativas de satisfazer pós-mortem certos desejos do falecido para compensar eventuais omissões anteriores à sua morte. Psicologicamente, ao lado da necessidade de auto-expiação de culpa, manifesta-se nessa forma de prantear uma espécie de medo de que o falecido pudesse se vingar do enlutado. Esse se empenha ao máximo para lhe agradar e, assim, o pacificar. É inegável que a morte de uma pessoa potência a sua presença entre os enlutados. Em certos casos, a morte faz com que alguém passe a estar mais presente entre os familiares do que estava enquanto vivia!
Os exemplos mencionados indicam que é importante que a pessoa que se propõe a assessorar enlutados seja capaz de distinguir formas sadias de formas doentias de expressão de luto. Merecem atenção especial os casos de pessoas totalmente incapazes de expressar qualquer forma de luto; manifestações histéricas ou por demais demoradas de luto; isolamento total e prolongado do enlutado (indício de depressão); tentativas de suicídio; abandono do trabalho e do contato com amigos.
Há, por outro lado, circunstâncias que favorecem um processo de luto particularmente doloroso como, por exemplo, a perda de diversos familiares simultaneamente ou num curto espaço de tempo, morte por suicídio, morte de criança, uma relação de extrema dependência da pessoa falecida. Esses casos merecem uma atenção especial por parte da pastora e da comunidade. Dependendo da gravidade do quadro, é recomendável que se intermedeie o auxílio de pessoas especializadas no assunto (psicoterapia).
Resta-me fazer três observações conclusivas:
a) A poimênica tem na fé cristã, na Bíblia e na oração uma fonte inestimável e inesgotável de recursos para ajudar pessoas enlutadas. Quem abre a Bíblia com o auxílio duma chave bíblica, se surpreendera com o elevado número de passagens que tematizam conceitos como sofrimento, lágrimas, pranto, lamentação, etc. É importante que a pastora ou outra pessoa que, em nome da comunidade cristã, se acerca de um enlutado, seja capaz de transmitir o conforto que esses textos bíblicos oferecem, não de uma forma mecânica, mas efetivamente imbuída do espírito que está contido nessas palavras.
A fé cristã e a poimênica vivem da esperança de que, em Cristo, cruz e sofrimento não terão a última palavra. O cristão que sofre o faz com o olhar fito naquele que, sofrendo, superou o sofrimento e com isso mudou o significado do luto e do pranto humanos. Tudo está na perspectiva da esperança na promessa daquele que diz: Eu enxugarei dos olhos toda lágrima, e a morte já não existirá, já não haverá luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras cousas passaram. (Apocalipse 21.4)
b) Quando a morte é consequência da idade avançada, de doença incurável, enfim, de circunstâncias inerentes às limitações da natureza humana, cabe à poimênica junto a enlutados uma postura de consolo. Há casos, contudo, em que a morte tem causas estruturais ou resulta de situações de flagrante injustiça sofrida pela vítima. Penso, por exemplo, na falta de atendimento médico adequado por parte de órgãos públicos (INAMPS) ou particulares, nas condições desumanas de trabalho e segurança, nas mortes que resultam de violência sofrida. Nesse casos a poimênica precisa ir além do mero consolo aos enlutados, — ainda que esse continue sendo importante. Ela precisa assumir também a forma de denuncia da maneira e no momento adequados. Só assim se evitará o risco de conferir à poimênica uma função estabilizadora de estruturas injustas. A poimênica seria desvirtuada, se ela se limitasse a contribuir para que os enlutados se conformassem com o seu destino ou se os firmasse na convicção de que a morte injusta é vontade de Deus. A poimênica pode contribuir para que o sofrimento dos enlutados se transforme numa semente salutar de inconformismo que une o povo de Deus na luta pela superação de situações que garam a morte e o luto.
c) A pastora não precisa e não deve pretender assumir sozinha o ministério da visitação e do acompanhamento aos enlutados. Além de sobrecarregá-la, essa atitude representaria um desprezo do potencial terapêutico da própria comunidade cristã. Pessoas que pessoalmente passaram pela experiência de luto aprendem a compreender e a acompanhar outras pessoas enlutadas. Muitas vezes elas estão dispostas a isso, desde que se lhes dê uma verdadeira oportunidade de fazê-lo. Cabe à pastora ficar atenta aos dons e à disposição dos membros em desenvolver uma pastoral de enlutados dentro da comunidade.
Uma das formas de despertar a participação da comunidade é a organização de encontros para treinamento de visitadores(as). Paralelamente a isso pode-se organizar uma escala de visitação a famílias enlutadas. Outra forma de implementar uma pastoral de enlutados é a organização de grupos regulares ou de retiros de pessoas enlutadas na comunidade, onde elas possam compartilhar e se amparar mutuamente na dor. O fundamental é que tudo o que se faz nessa direção não seja entendido como uma ajuda que a comunidade oferece à pastora. O ministério é de toda a comunidade. Por isso, o que ela faz não é ajudar à pastora. Antes, pelo contrário, é a pastora que ajuda à comunidade a desempenhar fielmente o seu ministério.
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Proclamar Libertação – Suplemento 2
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia