O ministério na IECLB – sua teologia e práxis1
Preâmbulo
A igreja de Jesus Cristo vive da palavra de Deus. Ela não se produz a si mesma nem resulta de uma decisão constituinte de seus membros. É fruto do evangelho, dizia Martim Lutero. Sem este, ela sucumbe e nem chega a nascer. Por isto o evangelho deve ser anunciado, divulgado, proclamado. A fim de garantir que isto aconteça, Deus mesmo implantou na igreja o “ministério eclesiástico”. Diz o art. 5 da Confissão de Augsburgo (CA): “Para que alcancemos esta fé, foi instituído o ministério que ensina o evangelho e administra os sacramentos.” E prossegue: “Pois, mediante a palavra e pelos sacramentos, como por instrumentos, é dado o Espírito Santo, que opera a fé, onde e quando agrada a Deus, naqueles que ouvem o evangelho.” É o Espírito Santo que produz a fé nas pessoas, não o esforço humano. Mas isto através do anúncio do evangelho, do qual o ministério da igreja está encarregado. De acordo com o apóstolo Paulo, “a fé vem pela pregação e a pregação pela palavra de Cristo” (Rm 10.17).
Foi assim que surgiu a igreja. Os apóstolos pregavam e distribuíam os sacramentos (cf At 2; etc.). Prestavam assistência a pobres e enfermos (At 3.1s.), pois também a obra do amor pode ser uma forma de pregação. De acordo com a Bíblia, a palavra de Deus é sempre dinâmica, criadora, ativa. Inclui uma práxis. Consequentemente, a “palavra falada” não pode ser separada da “palavra praticada”, ou seja, da ação salvadora. Mediante tal testemunho dos apóstolos Deus fez crescer a semente do evangelho, convertendo gente à fé em Jesus Cristo. A palavra e os sacramentos são os meios privilegiados por Deus para despertar fé e criar comunidade. Cuidar de ambos é atribuição precípua do ministério eclesiástico. Logo, a igreja não pode abrir mão dele. Cumpre detalhar melhor este ministério e explicar sua natureza e função.
1. O sacerdócio geral dos crentes
Falar em ministério, à primeira vista, surpreende. Pois a tarefa de divulgar o evangelho é atribuição de todos os fiéis. Não há membro da comunidade que estivesse desincumbido do testemunho de Jesus Cristo e da promoção da missão cristã. A proclamação do evangelho, pois, é uma implicação do sacerdócio geral de todos os crentes. Este é um aspecto fortemente acentuado por Lutero. À base de 1Pe 2.9s. e outras passagens bíblicas (Ap 1.6; etc.), ele conclui que toda pessoa batizada é deveras espiritual, pertencente “à raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus”. Por Jesus Cristo, o sumo sacerdote (Hb 4.14s.), Deus reconciliou o mundo consigo mesmo (2Co 5.21s.), eliminando todas as demais instâncias mediadoras. Existe um só mediador entre Deus e os seres humanos, Jesus Cristo (1Tm 2.5). Quem crê nele pode dispensar o culto aos santos e sua intermediação. Pode dirigir-se confiante a Deus e invocá-lo como “Pai nosso”. Justificados por graça e fé, temos paz com Deus (Rm 5.1), voltamos a ser seus filhos e suas filhas e somos integrados em seu povo sacerdotal.
Na qualidade de sacerdote, a pessoa cristã tem acesso direto a Deus e o privilégio de singular dignidade. Ao mesmo tempo, está comprometida a desempenhar o legítimo ofício sacerdotal que consiste em ofertar sacrifícios. Mas já não se trata dos sacrifícios tradicionais. Os cristãos oferecem sacrifícios espirituais (1Pe 2.5) em forma de louvor e adoração (Hb 13.15). Oferecem-se a si mesmos “de corpo e alma”, entregando-se a Deus e à sua causa (cf. Rm 12.1s.). Cumpre-se assim o mandamento do serviço a Deus e ao próximo. É interessante observar que Lutero entende o sacerdócio dos cristãos como um sacerdócio mútuo. Somos sacerdotes uns dos outros. Enquanto o culto é devido a Deus, e somente a ele (Mt 4.10), a diaconia é devida às pessoas ao nosso lado. Dessa forma, Lutero não hesita em conclamar a que nos tornemos “um Cristo para os outros”. Pois assim como Cristo se tornou o nosso próximo, também compete a nós fazer com relação aos nossos semelhantes. Somos uma comunidade de irmãos e de irmãs. Devemos servir-nos uns aos outros com os nossos dons. É óbvio que nas atividades sacerdotais esteja incluído o mandato de anunciar e comunicar o evangelho.
Assim sendo, já não se justifica a distinção entre clérigos e leigos. A afirmação do sacerdócio geral de todos os crentes emancipa os fiéis da tutela da hierarquia. Na comunidade cristã, não há espaço para duas categorias de pessoas, umas mais próximas de Deus do que outras. Todas compartilham dos mesmos direitos e dos mesmos deveres, sendo o batismo a inauguração do sacerdócio dos crentes. Por ele foram chamados e autorizados a inclusive ministrar os sacramentos, caso a situação assim o exigir. Seja sublinhado que o sacerdócio dos crentes não é um ministério. Espera-se seja exercido espontaneamente como expressão da vivência cristã e do testemunho da fé. Ele não exige nem preparo profissional nem convite especial. No corpo de Cristo, cada membro é chamado a servir com os seus dons, sem que este serviço tenha natureza “ministerial”. O imperativo da vivência e da propagação do evangelho que inclui a prática do amor é inerente ao chamado à fé.
2. O ministério eclesiástico
Mesmo assim, existe o ministério “que ensina o evangelho e administra os sacramentos”. Como entender isto? Ora, trata-se de um ministério confiado em primeira instância não a indivíduos, e sim à igreja em seu todo. O art. 5 da CA tem em vista um “mandato eclesiástico”. Deus quer que sua igreja seja proclamadora do evangelho, portadora do mesmo até os confins da terra (At 1.8). Este mandato de modo algum é opcional. Pelo contrário, é uma obrigação inalienável. Nele se concentra, como num feixe de luz, a vocação da igreja. Os cristãos e as cristãs têm um compromisso de vida ou morte com o evangelho. Nele se resume o que a igreja tem de mais precioso a oferecer. Evangelho é sinônimo de salvação. Verdade é que o evangelho deve ser concretizado, traduzido para muitas realidades, contextualizado. Mas, no fundo, é um só. Ele fala das maravilhas de Deus, das promessas divinas, conta a história de Jesus, divulga as obras do Espírito Santo. Uma igreja que se envergonhe do evangelho e cale com respeito a ele cortou seu galho de sustentação e se privou a si mesma do poder de Deus que se manifesta nele (cf. Rm 1.16s.). A igreja recebeu o “ministério da proclamação do evangelho”.
Consequentemente, cabe à igreja zelar para que essa tarefa seja cumprida devidamente. Desleixo com relação ao anúncio da palavra e à celebração condigna dos sacramentos acarreta culpa diante de seu Senhor. Visto que não há outro modo de atender o compromisso senão o da convocação de servidores eclesiásticos, a igreja somente fará jus a seu mandato se encarregar pessoas idôneas deste serviço. Agora, sim, o ministério passa a ser uma incumbência pessoal. Para Lutero, a convocação de ministros era tão importante que via nela um sinal identificador de igreja verdadeira. O ministério é de Deus, não foi a comunidade que o criou, mas ele foi entregue a ela para que o administrasse e cuidasse de seu devido desempenho. Em meio ao sacerdócio de seus membros, pois, a igreja necessita de pessoas especialmente incumbidas de ensinar o evangelho e de administrar os sacramentos. Ela necessita de ministros e ministras.
Isto apesar de as atribuições dos ministros não serem substancialmente diferentes das dos demais membros. Cabe-lhes pregar a palavra de Deus e proclamar o evangelho, assim como se o espera de toda pessoa cristã. Eles e elas não recebem nenhuma tarefa “especial”. Recebem-na, isto sim, de forma oficial. Pessoas investidas no ministério eclesiástico devem fazer oficialmente o que se espera que as demais façam espontaneamente. Para tanto há duas razões: A primeira é uma questão de ordem. Quem quiser pregar o evangelho deve ter o consentimento da comunidade. Caso contrário, vai irromper
o caos. Há pessoas que gostam de se projetar, causando conflitos. Deus, porém, não é um Deus da desordem, e sim da paz (1Co 14.33). Acresce a isto que o ministério serve para assegurar a qualidade da pregação, pois seu exercício exige preparo, competência, habilidade.
Bem mais importante, porém, é a segunda razão. Pois também “sacerdotes” precisam ouvir o evangelho. A comunidade não pode viver sem continuamente beber desta fonte. Ela necessita da constante motivação para a sua fé, seu amor e sua esperança. Seria impróprio substituir a pregação da palavra pela leitura da Bíblia. Isto porque o evangelho quer ser contextualizado, concretizado, dito com palavras atuais e exemplificado em sinais visíveis, sempre com os olhos dirigidos à realidade em que o povo se encontra. Por isto mesmo, deve ser transmitido de viva voz, oralmente, o que é outro aspecto destacado por Lutero. Subentende-se que a vivacidade da voz evangélica requer uma prática correspondente. A palavra de Deus não pode ficar no abstrato. É disso que o ministério da pregação deve cuidar. Deus o instituiu para ver garantida a presença da sua palavra na igreja, não admitindo que fique à mercê da boa vontade dos membros. O evangelho, a fim de ter garantida a primazia na comunidade, exige a convocação de ministros responsáveis por sua proclamação e divulgação.
Em princípio, pois, está preservada a igualdade de todos os membros. Na comunidade de Jesus Cristo, não existem pessoas mais ou menos valiosas. O que distingue os ministros dos assim chamados leigos é tão somente um encargo. Pode-se concluir, pois, que a existência de um ministério não conflita com o sacerdócio geral dos fiéis. O ministério não se sobrepõe à comunidade. Ele não quer governar. Senhor é Jesus Cristo, a quem todos devem submeter-se. O ministério tem natureza funcional. Quer servir ao avivamento e à vivência do sacerdócio. Quem abraçou o ministério não é outra coisa do que um “servidor eclesiástico”. Continua sendo um membro da comunidade, ainda que com atribuições específicas.
3. Ministros e leigos
Consequentemente, também a igreja luterana continua a falar em “leigos”. No entanto, o significado desse termo mudou. Já não designa uma classe, e sim uma função. Leiga é a pessoa não especialista, não profissional, não obreira. É um membro do povo sacerdotal de Deus sem encargo específico. Dela se distinguem as pessoas encarregadas de um ministério. Na igreja luterana, a hierarquia de clero e leigos foi substituída pelo lado a lado de leigos e ministros. Ambos são chamados a servir à causa de Deus no mundo. Aliás, todo trabalho na seara do Senhor deverá ser serviço (diaconia). Na esfera em
que Jesus reina, está excluída qualquer dominação de uns sobre os outros. É significativo que o Novo Testamento desconheça um termo equivalente ao que chamamos de ministério. Ele fala em serviços tão somente. Uma pessoa cristã é por excelência “serva” tanto de Deus quanto de seus próximos. O amor assim o exige. Entretanto, há diferenças a respeitar.
Pois, ao lado dos “serviços espontâneos”, existem os “serviços estruturados”. Os apóstolos, os presbíteros, os diáconos e os bispos, todos eles mencionados no Novo Testamento (Gl 1.1; At 11.30; Fp 1.1; etc.), exerciam indubitavelmente as funções de um ministério. Paulo confessa ter recebido de Deus o “serviço da reconciliação” (2Co 5.18). Mas este serviço tem nítidas características “ministeriais”. Por isto podemos definir assim: Também um ministério é um serviço. Mas é um serviço regulamentado, institucionalizado, com definição de direitos e deveres. Condiciona-se a três fatores: (a) a uma incumbência expressa, ou seja, a um convite formal, respectivamente a um chamado da parte da comunidade; (b) à comprovação de competência, razão pela qual os candidatos e as candidatas a um ministério são submetidos a exame; (c) à continuidade no exercício da função atribuída. Quem recebeu um ministério não pode fazer hoje isto e amanhã aquilo. Tem seu campo de atividade definido e passa a ser obreiro. Sintetizando, constatamos ser o ministério o que na igreja luterana distingue leigos e ministros, nada mais e nada menos.
Seja reiterado que o sacerdócio de todos os crentes não deve ser confundido com um suposto “ministério geral de todos os crentes”. Tal “ministério geral” não existe. O testemunho do evangelho em suas múltiplas variantes permanece sendo uma implicação do ser cristão e, como tal, não exige oficialidade. O membro sacerdote não é “ministro”. Isto é diferente no caso da convocação de pessoas para dedicar-se integralmente ao anúncio do evangelho e à administração dos sacramentos. Surge, então, o ministério na (!) comunidade, isto é, na (!) igreja. Os ministros e as ministras devem pregar a palavra de Deus e edificar a comunidade. Da mesma forma, o evangelho pode exortar, censurar, castigar. O ministério não é refém da comunidade, devendo enfrentá-la, se as circunstâncias assim o exigirem. Ademais, espera-se de pessoas encarregadas do ministério que sejam lideranças, sendo importante diferenciar entre liderança e dominação. A boa liderança não desresponsabiliza, não constrange nem oprime. Ela tem o dever, isto sim, de orientar, inspirar e conduzir.
Não obstante, há que se perguntar se o lado a lado do sacerdócio e do ministério não resulta de fato numa nova hierarquia. Lutero acabou com o clero na Igreja Católica. Porventura ele voltou a introduzi-la pela distinção entre leigos e ministros? O perigo existe. E é preciso munir-se contra ele. Houve quem se queixasse na IECLB do “pastorcentrismo”, ou seja, de uma predominância indevida do ministério pastoral. Inversamente, também houve tendências na direção contrária. Os pastores eram considerados empregados das paróquias, dependentes das resoluções das respectivas diretorias. Ora, nem isto nem aquilo corresponde à proposta luterana.
Ela se opõe tanto ao episcopalismo quanto ao congregacionalismo. O primeiro concentra o poder nas mãos dos bispos, marginalizando a comunidade. Todas as decisões importantes são tomadas sem a participação de leigos e leigas. É o modelo da Igreja Católica Romana. Os bispos, encabeçados pelo papa, monopolizam o poder e o exercem sem participação expressiva dos leigos. Também os concílios são compostos apenas por integrantes do clero. O outro modelo é o congregacional. Ele é em tudo o oposto do anterior. Neste caso, quem exerce o poder na igreja é a comunidade local, ou seja, a congregação. São os leigos que decidem sobre os rumos da igreja, de preferência sem a ingerência dos pastores. É este o modelo predominante nas igrejas batistas. A direção da igreja está na mão do membro leigo que se articula através da assembleia da comunidade, do presbitério e de outros órgãos representativos.
A igreja luterana procura evitar os inconvenientes do episcopalismo, de um lado, e do congregacionalismo, de outro. A igreja episcopal atrofia a voz dos leigos e os rebaixa a cristãos de segunda categoria. Enquanto isto, a igreja congregacional favorece a arbitrariedade das comunidades locais e seu independentismo. O luteranismo aposta no modelo sinodal. Este coloca a responsabilidade pelo bem da igreja sobre dois ombros, o dos ministros e o dos leigos. Pretende a cooperação entre a comunidade e o ministério sem absolutismos de parte a parte. Na assembleia da comunidade local, todos têm assento e voto. Já nos órgãos superiores, a participação se dá por delegação. Sempre deverão ser respeitados ambos os grupos, o dos leigos e o dos ministros, tanto no nível local quanto no regional e geral, sendo que a representatividade deverá obedecer a uma proporção previamente estabelecida em estatuto. O sinodalismo quer a participação ativa do membro leigo na liderança da igreja.
Também quanto ao mais o membro leigo carrega enormes responsabilidades. Assiste-lhe o direito de decidir sobre a convocação e instalação de ministros, sobre a abertura de campos de atividade, cabe-lhe vigiar sobre o cumprimento dos documentos normativos da IECLB bem como, em termos gerais, promover a missão de Deus em seu contexto específico. Lutero sonhou com a comunidade adulta, consciente do privilégio da fé e dos deveres daí decorrentes. Para tanto, importa colaborar com o ministério e seus titulares, buscando o consenso quanto às metas a perseguir e os métodos a empregar. É
este o desafio de uma estrutura sinodal de igreja, a saber, coordenar as responsabilidades de leigos e ministros e aprender a cooperar.
4. Ministérios com e sem ordenação
A transmissão de um cargo é um ato que necessita de base legal. Normalmente, será elaborado um contrato de trabalho e a pessoa encarregada será apresentada publicamente. Isto é o que vale também para os ministérios na igreja. Existem diversos ritos de investidura.
a. O ministério com ordenação
Entre estes ritos, se destaca a ordenação. Ela está reservada a pessoas que assumem a responsabilidade pelo “ensino público” do evangelho. São estes os termos do artigo 14 da Confissão de Augsburgo. “Da ordem eclesiástica ensinam que ninguém deve publicamente ensinar na igreja ou administrar os sacramentos a menos que seja legitimamente chamado.” Quem ensina isso são os grupos que apoiam a Reforma luterana. E eles dizem que ninguém está autorizado a ensinar, pregar e manifestar-se publicamente na igreja a não ser que tenha sido chamado oficialmente, em rito correspondente. O ensino público na igreja está condicionado à ordenação, ou seja, a um chamado oficial, documentado por um rito celebrado em culto e atestado por um certificado. Isto não invalida o testemunho do membro leigo. Permanece irrestritamente válido o que foi dito sobre o sacerdócio de todos os crentes. A diferença está na palavra “publicamente”. Que significa?
É claro que também o depoimento do membro leigo acerca da fé deve ser público. Não se permite restringi-lo à esfera privada. A pessoa cristã deve dar o seu testemunho em todas as circunstâncias da vida e frente a qualquer tipo de público. O artigo 14 da CA tem em vista outra coisa. Refere-se ao ensino pelo qual se assume responsabilidade pública. Enquanto o membro leigo fala na qualidade de particular, a pessoa chamada ao ministério deve estar em condições de falar em nome da igreja e de representá-la oficialmente. Ela deve prestação de contas de seu ensino, de sua prédica e atuação, podendo ser penalizada caso venha a espalhar heresias ou bobagens. O instrumento legal que permite tal penalização é o “Ordenamento jurídico-doutrinário” da IECLB. Portanto, a pessoa encarregada do ministério da pregação deve medir suas palavras e seus atos. Nesse afã, os ministros e as ministras necessitam de uma boa formação. A responsabilidade pela reta doutrina exige o domínio de critérios teológicos claros, capacidade de discernimento, percepção do que seja oportuno na mudança dos tempos e dos lugares.
Resulta daí que o ministério “com ordenação” (fala-se também em “ministério ordenado”) está a serviço da qualidade da proclamação do evangelho e da boa administração dos sacramentos. Ele não tem a licença de monopolizar o testemunho do evangelho e a missão da igreja. Pelo contrário, sua “meta consiste na capacitação para a vivência do sacerdócio geral de todos os crentes, na formação de lideranças, bem como na manifestação pública da palavra de Deus na sociedade”. São estes os termos do artigo 11 do “Estatuto do ministério com ordenação” (EMO). A igreja necessita de lideranças que orientem seu discurso e sua prática. No pluralismo religioso, característico da era pós-moderna, as pessoas querem conhecer a posição luterana frente aos desafios da atualidade. Perguntam não o que você pessoalmente diz e acha, e sim o que diz a sua igreja. O mundo está repleto de opiniões particulares. Mas o que interessa mesmo são posições oficiais, refletidas, defendidas por uma comunidade de fé. A ordenação quer assegurar que haja pessoas “legitimamente chamadas” que respondem “em termos luteranos” às angústias, aos anseios e às necessidades das pessoas.
b) Os ministérios sem ordenação
Ao lado do ministério com ordenação deve haver espaço para ministérios sem ordenação. Eles não são menos importantes. A igreja necessita de organistas, visitadores, assistentes sociais, secretárias, além de muitos outros colaboradores. Comunidades e instituições eclesiásticas criam ministérios para atender determinadas demandas, instalando a seguir os candidatos aprovados em seus respectivos campos de atividade. Também estes ministérios requerem alguma capacitação. No caso da música isto é óbvio. Mas também em outras funções não se pode abrir mão da competência. Seminários para os tesoureiros na paróquia, por exemplo, são de grande utilidade e o Guia para o presbitério2 ajuda a compreender a função. Portanto, a igreja faz bem em providenciar também para estes ministérios alguma forma de preparo. Cursos respectivos costumam ter boa aceitação e qualificam o desempenho missionário da comunidade.
E, no entanto, as exigências não são as mesmas como no caso dos ministérios com ordenação. Não se lhes aplica o art. 14 da Confissão de Augsburgo. Até mesmo pode haver diáconas e diáconos sem ordenação. O mesmo vale para colaboradores nos cultos na forma de leitores, para professores e professoras de ensino cristão, religioso e outros. A ordenação de modo algum é obrigatória para o desempenho de serviços vitais na igreja. Ela implica, isso sim, maior responsabilidade. E, no entanto, ela não é de modo algum condição para o trabalho na seara de Deus.
Merecem menção especial as funções diretivas, cabíveis ao e à presidente paroquial, aos membros das diretorias, dos conselhos e dos concílios. Sem elas a comunidade cristã iria sofrer prejuízo, respectivamente nem conseguiria funcionar. Logo é essencial haja pessoas dispostas a assumir tais cargos. Normalmente não são remuneradas. Trata-se de um ato de fé e de um serviço à causa do evangelho. O bem-estar de uma igreja depende fundamentalmente da cooperação de seus membros. O evangelho os convoca a disponibilizar seus carismas para a causa do evangelho e a desempenhar, se forem solicitados, atividades ministeriais. A igreja necessita de grande número de ministérios sem ordenação, atuantes no nível da comunidade local, do sínodo e mesmo da igreja em seu todo.
Os ministérios devem ser visíveis, o que será garantido mediante a apresentação das pessoas encarregadas. Às vezes, isto acontece sem grandes formalidades. Em outras oportunidades, entretanto, a investidura ganha peso. Também o recém-eleito presbitério ou então os delegados à Assembleia Sinodal, por exemplo, são apresentados em culto solene à comunidade reunida. Em se tratando de uma atividade oficial, ela precisa ser feita pública. Nem sempre os encargos são assumidos em caráter vitalício. Há ministérios confiados por tempo determinado e até mesmo com dedicação apenas parcial. Em razão da multiplicidade dos ministérios na igreja, podem variar também os modelos de investidura, desde a introdução, apresentação, posse, instalação, até a ordenação.
5. O ministério compartilhado
A IECLB houve por bem ordenar não somente pastoras e pastores, como também catequistas, diáconos, diáconas, diaconisas e missionários. São quatro os ministérios com ordenação, com o que a IECLB se distingue de outras igrejas luteranas no mundo. Existem paralelos para a ordenação de diáconos na história da igreja. O próprio Lutero, em 1525, ordenou alguém ao diaconato. Também a ordenação de missionários, enquanto pastores, não é propriamente uma novidade. Enquanto isso, não há precedentes para a ordenação de catequistas. Mesmo assim, a IECLB está convicta de não abandonar as bases da confessionalidade luterana. Pelo contrário, lança um desafio às suas igrejas irmãs, encorajando-as a flexibilizar as estruturas do ministério. Pois a intenção da proposta é a diversificação do ministério e o engajamento de um número maior de pessoas no mesmo.
A concepção do ministério compartilhado parte da premissa de que o “ministério eclesiástico” a que se refere o art. 5 da CA não é idêntico ao ministério pastoral ou episcopal. Nisto há relativo consenso no mundo luterano. Embora no passado prevalecesse a tendência a identificar o ministério que ensina o evangelho e administra os sacramentos com o pastorado, hoje se admite majoritariamente tratar-se do serviço abrangente da divulgação do evangelho. E este serviço pode acontecer em muitas modalidades. Sob tal ótica, a proclamação do evangelho não fica restrita a um processo verbal ou acústico. Como vemos em Jesus, ela inclui o gesto. Jesus também evangelizava por sua prática diaconal. Curava, socorria, alimentava famintos (Mc 2.1s.; 4.35s.; 6.30s.). Além de pastor e diácono (Mc 10.45), era mestre, professor, catequista (Mt 8.19; etc.). Ensinava como quem tem autoridade (Mt 7.28; etc.) e tinha discípulos, ou seja, alunos. Como visto, a própria Confissão de Augsburgo emprega a palavra “ensinar” como sinônimo de “pregar”. Por todos estes motivos, não há como limitar o ministério eclesiástico às funções tradicionalmente pastorais. Ele inclui as diaconais, catequéticas, missionárias. O ministério eclesiástico se apresenta multifacetado.
Verdade é que a extensão da ordenação a esses ministérios modifica o exercício dos mesmos. Os e as catequistas, diáconos/diaconisas e missionários ordenados estão sob a mesma exigência do art. 14 da CA. Assim como os pastores, eles e elas devem oficialmente assumir responsabilidade por seu discurso e sua prática, para o que necessitam de uma formação teológica qualificada. Em concordância com isto se lhes concede o direito de oficiar cultos e de ministrar os sacramentos. Há compromissos comuns inerentes aos ministérios com ordenação. O ministério eclesiástico é um só. Inversamente, a proposta se nega a nivelar as atribuições. Os ministérios deverão ter preservadas suas características próprias. O único ministério eclesiástico se desdobra em vários ministérios. A ordenação não transforma todos os ministros em pastores e pastoras. Por isto mesmo, o bom exercício do ministério compartilhado depende do acerto de competências entre os ministros. O grande avanço está nas novas chances de cooperação que este modelo oferece. O pastorado deixa de ser o parâmetro normativo do ministério eclesiástico. Abre espaço para outras especialidades. Os pastores e as pastoras não podem ser competentes em tudo. Doravante, inserem-se numa equipe de ministros e ministras com atribuições específicas.
A concepção do ministério compartilhado, porém, aplica-se não somente aos ministérios com ordenação. É relevante também para os ministérios sem ordenação, constituídos normalmente em nível regional ou local da igreja. Como visto, é importante que sejam engajadas pessoas na educação cristã, na assistência social, na visitação, na música e em outras áreas mediante incumbência explícita. A comunidade de Jesus Cristo não deveria deixar atividades relevantes para o seu crescimento ao acaso nem deixar de dar-lhes o devido reconhecimento. Os ministérios nem sempre exigem remuneração. Mas precisam ser valorizados e dessa forma estimulados.
6. O ministério episcopal
Existem igrejas luteranas encabeçadas por bispos e outras por presidentes. A IECLB pertence àquelas que optaram pelo “modelo presidencial”. Que pensar a esse respeito? Seria a figura do bispo algo, no fundo, supérfluo? Ou estaria a IECLB se desviando da tradição luterana ao recusar o título “bispo” para suas lideranças? Ora, Lutero jamais se opôs à estrutura episcopal da igreja. “Bispo” é um conceito com boa base bíblica (Fp 1.1; 1Tm 3.2). Ele tem em Jesus Cristo o protótipo (1Pe 2.15). Ademais, apoia-se na força de uma longa tradição. Na igreja antiga, a estrutura episcopal se impôs com enorme rapidez, muito embora haja indícios de que houve igrejas organizadas em forma presbiteral. Ainda hoje este é o caso. As funções de presbíteros e bispos se fundem. Os presbíteros de que fala a passagem de At 22.17 são chamados bispos logo a seguir (v. 28). São autoridades teológicas, líderes da igreja. De qualquer maneira, o título bispo deita profundas raízes na igreja de Cristo.
Também Lutero o sabia. Entretanto, queria que os bispos de seu tempo redescobrissem seu papel pastoral. Foi enfático em identificar pastores e bispos. Também a CA fala em “bispos ou pastores” (art. 28), mostrando tratar-se do mesmo ministério. Para a igreja luterana, bispos são pastores e vice-versa. Antes de governar, têm o dever de pastorear o rebanho, disseminando a palavra de Deus. Mesmo assim, Lutero insistiu na necessidade de um episcopado supraparoquial. Deve haver pastores de pastores que supervisionem a igreja, cuidem da ordem e desempenhem liderança. Cabe a tal ministério da “episcopé” (= supervisão) a tarefa da visitação, a da admoestação fraternal, a manutenção da disciplina, entre outras. Diga-se à parte que a criação de estruturas macroeclesiásticas sempre exige uma autoridade superior à da comunidade local. Não vai surgir igreja sem a constituição de um corpo maior no qual deve ser previsto algo como um “ofício do bispo”.
Visto que nos episcopados do século XVI os poderes seculares e espirituais se fundiam, a Reforma luterana enfrentou sérias dificuldades em criar estruturas macroeclesiásticas. Ela não tinha poder político para congregar comunidades em bispados evangélicos. O próprio reformador Lutero, em 1542, ordenou Nicolau von Amsdorf bispo de Naumburg. O exemplo mostra que o ministério do bispo tem réplica na igreja luterana. Não é de modo algum particularidade católica. Ainda assim, a implantação de uma estrutura episcopal emperrou. Os empecilhos fizeram com que o lugar dos bispos fosse assumido pela autoridade secular, isto é, pelos senhores territoriais que tinham aderido ao movimento luterano. Como contrapeso, foram instituídos “superintendentes” com funções administrativas e pastorais em nível supracomunitário. Hoje, a situação é diferente. Ainda existem igrejas territoriais na Alemanha, mas já não estão sujeitas à autoridade secular. A maioria delas adotou o título “bispo” para seus “pastores presidentes”. O mesmo se verifica em igrejas luteranas da África e da Ásia, onde o título “bispo” se tornou comum. A oposição à introdução do mesmo na IECLB não se deve a motivos teológicos. Teme-se a recaída em um autoritarismo eclesiástico a que o título poderia dar oportunidade. Mas também a IECLB necessita organizar-se em entidades maiores. E é isto o que aconteceu. Seus sínodos são comparáveis a dioceses e os pastores sinodais, a bispos.
No arcabouço do ministério compartilhado, pois, deve ser lembrada também a tarefa da “episcopé”. Ela é própria do ministério pastoral, ou seja, pertence às particularidades deste ministério específico. Considerando ser o episcopado luterano idêntico ao pastorado, a “episcopé” é tarefa inerente aos deveres de todos os pastores, inclusive os paroquiais. Simultaneamente, porém, ela deve transcender este nível e concretizar-se em uma liderança sinodal ou geral. O pastor presidente desempenha a função de um “bispo-primaz”. Sua atribuição é a de ser o pastor do conjunto das comunidades que formam a IECLB. Nessa função cabem-lhe certas prerrogativas, a exemplo da ordenação de pessoas ao ministério.
7. Vocação interna e externa
Na vocação que é o pressuposto de um ministério na igreja distinguimos entre a interna e a externa. Ninguém deve ser incumbido de uma atividade oficial contra a sua vontade. É fundamental que a pessoa se sinta chamada e disposta a assumir as respectivas tarefas. A igreja espera que haja pessoas motivadas a integrar o seu quadro de ministros e a colocar seus dons a serviço do evangelho. Falamos de “vocação interna” nestes casos. Trata-se da disposição pessoal de abraçar um dos ministérios como resposta a um chamado especial de Deus. Rogamos a Deus que abra os corações de pessoas para que percebam a vocação a trabalhar em sua seara (Mt 9.38). O recrutamento de ministros na igreja requer a ação do Espírito Santo através da “propaganda” da fé.
Mas a boa vontade, por si só, é insuficiente para cumprir as exigências do ministério. Ao entusiasmo pessoal deve associar-se a competência. Além disto, os sentimentos podem enganar. Podem camuflar interesses egoístas, desejos de projeção e sonhos de autopromoção. É difícil e mesmo impossível constatar a autenticidade da vocação interna. Será mais do que fachada? Ademais, é flagrante ser ela altamente volátil. A motivação interna pode murchar e ceder espaço à resignação. Não podemos fazer-nos dependentes do alto ou baixoastral no exercício do ministério. A vocação interna é importante, sim. E, se ela definhar, deve ser trabalhada. Mas ela não se presta a ser o fundamento do ministério da proclamação do evangelho.
Por isto se faz imprescindível o ato da ordenação. Por ela, a igreja convoca alguém para o ministério e o incumbe das tarefas a ele inerentes. A pessoa é autorizada e encarregada de ensinar o evangelho publicamente e de ministrar os sacramentos de acordo com os termos do art. 14 da CA. A igreja, naturalmente, não o fará sem antes ter examinada a idoneidade dos candidatos e das candidatas. Esta pressupõe, entre outros, convicção cristã; um nível satisfatório de formação teológica; o compromisso com a confissão luterana; o respeito aos documentos normativos da IECLB; uma conduta em conformidade com os princípios evangélicos. A ordenação é vocação externa. O chamado provém não do interior da pessoa, e sim de uma instância alheia. Quem convoca é certamente a comunidade, ou seja, a comunhão das comunidades que é a IECLB. Mas ela é apenas um meio, não autora do chamado. Quem chama de fato é Deus. A comunidade nada mais é do que um instrumento que age em obediência a seu Senhor. Pela ordenação, Deus mesmo incumbe à pessoa o ministério em sua igreja.
Por tratar-se de vocação externa em nome de Deus, o âmbito do serviço outorgado não pode ficar restrito à área da atuação da IECLB. Pois a lavoura de Deus (1Co 3.9) não coincide com a extensão de nenhuma das muitas igrejas existentes. O evangelho deve ser proclamado em todo o mundo e a toda criatura. Eis por que a ordenação insere no ministério universal de Jesus Cristo. Ainda assim, ela sempre se destina ao ministério de uma determinada igreja, no nosso caso a IECLB. É para este ministério que a igreja ordena e para o qual ela envia. Enquanto a proclamação do evangelho desconhece limites geográficos e mesmo denominacionais, a atuação profissional de seus agentes deve obedecer ao respectivo direito eclesiástico e orientar-se pela demanda. A IECLB não tem o direito de ordenar pessoas se não puder oferecer campo de atividade para elas. Da mesma forma, está impedida de ordenar pessoas para a Igreja Católica, por exemplo, ou mesmo para igrejas luteranas em outros países. Ela ordena para os ministérios da própria igreja, prometendo perspectiva de trabalho e atuação.
Considerando que na IECLB os ministérios com ordenação atuam no nível geral da igreja, exclui-se também a possibilidade de uma comunidade local, por iniciativa própria, proceder à ordenação de pessoas. Nenhuma comunidade tem a autorização para tanto. A ordenação sempre necessita do aval da direção da igreja e, na verdade, é assunto de sua competência. Isto não significa que a comunidade local deva estar ausente no ato da ordenação. Pelo contrário, espera-se dela uma participação ativa, visto que a direção da igreja age também em seu nome ao chamar pessoas para o ministério. O lugar da ordenação é a comunidade.
8. Raízes bíblicas da ordenação
A ordenação como investidura num ministério tem longa história. Analogias remotas encontram-se já no Antigo Testamento. Entre elas se destaca o ato da instituição de Josué como sucessor de Moisés (Nm 27.28s.; Dt 34.9), ato este que seria modelo para o rabinismo posterior. A transmissão do cargo aconteceu em num ritual solene perante toda a congregação, com autorização expressa e imposição das mãos. Esse gesto, aliás, era comum em muitas oportunidades. Atribuía-se a ele forças terapêuticas, e era usado para abençoar (Gn 48.13s.). As mãos são portadoras de energia. Assim o vemos também em Jesus. Ele cura pelas suas mãos e por elas concede bênção (Mc 6.5; 10.16; etc.). Sua imposição transmite o carisma necessário a quem assume liderança. Na tradição cristã, o gesto passou a ser parte integrante da liturgia da ordenação. Ao lado dele encontra-se a unção como distintivo de um “ministério”. Reis, sacerdotes e profetas são os três “ministérios com unção” no Antigo Testamento (2Sm 2.4; 1Rs 19.16; Lv 21.10; etc.). A designação de alguém como “ungido” (Messias) de Deus significava ser ele portador de um encargo especial. Na tradição sacramental de muitas igrejas cristãs, este simbolismo continua em uso. Apesar de tais paralelos, porém, o Antigo Testamento ainda não exibe um procedimento uniforme na investidura de pessoas em cargos especiais.
No tempo de Jesus, os rabinos costumavam ordenar seus discípulos impondo-lhes as mãos. Embora os comprovantes sejam tardios, com data da segunda metade do século I, é certo que a praxe era anterior. A igreja cristã seguiu o exemplo judaico, adaptando-o à sua confissão. Enquanto as cartas do apóstolo Paulo silenciam com respeito ao assunto, temos claros testemunhos no livro dos Atos e nas cartas a Timóteo e Tito, escritas por um discípulo de Paulo. Em At 6.1s., a instituição dos diáconos, eleitos pela comunidade, acontece num ritual constituído de oração e imposição das mãos por parte dos apóstolos, portanto em forma de uma ordenação. De acordo com 1Tm 4.14, foram os presbíteros que, mediante o mesmo gesto, ordenaram Timóteo. Ele é admoestado a reavivar o dom que na oportunidade lhe foi conferido (2Tm 1.6). Ao que tudo indica, temos o fragmento de um formulário de ordenação em 1Tm 6.11-16, mostrando que já muito cedo era comum essa prática. A partir de tais passagens, a ordenação como rito de ingresso no ministério se tornou praxe em toda a igreja antiga, sendo a imposição das mãos de modo algum opcional. Por ela, Deus transmite o dom com que equipa seus servos. Juntamente com a vocação, o encargo, a intercessão da comunidade e a bênção, ela faz parte dos elementos constitutivos desse ato.
Na verdade, a ordenação tem muitos paralelos formais. Isto não só no mundo religioso, como também secular. A investidura em cargos de responsabilidade é um assunto por demais importante para deixá-la passar em brancas nuvens. A pessoa recebe uma “veste” que lhe distingue a função, ou seja, ela é “investida”. Esse ato dá amparo legal e documenta publicamente os compromissos assumidos de parte a parte. No caso do ministério eclesiástico, importa evidenciar ser Deus mesmo o autor da incumbência. É ele quem envia seus servos. Isto fica indiscutivelmente claro nas “vocações diretas” de profetas e apóstolos. Eles deduzem seu ministério de uma vocação divina “imediata”, a exemplo de Isaías (Is 6.1s.), ou do apóstolo Paulo (Gl 1.1). Todos os apóstolos foram chamados por Jesus Cristo mesmo. Mas também a “vocação mediada”, ou “indireta”, através da igreja, provém de Deus e deve servir à mesma causa profética e apostólica. A ordenação, por sua forma e por seus conteúdos, deve ser eloquente testemunho disto.
9. A ordenação – um sacramento?
A incumbência recebida na ordenação tem caráter vitalício. A pessoa certamente pode desprezar o compromisso assumido. Mesmo assim, ele permanece válido. Da mesma forma, não se nega a uma pessoa ordenada o “direito” à pregação pública do evangelho e à administração dos sacramentos, mesmo que se tenha mostrado indigna do ministério. A vocação de Deus não caduca nem pode ser anulada por infidelidade humana. Por isto mesmo, as igrejas luteranas costumam não repetir a ordenação. Caso uma pessoa ordenada, depois de afastada temporariamente, voltar a exercer o ministério, ela não necessitará de nova ordenação. Na compreensão luterana, não existe “reordenação”. A ordenação recebida em tempos passados é simplesmente “reativada”. Sua legitimidade e validade não sofrem contestação.
Tal prática poderia dar a entender que a ordenação seja um sacramento à semelhança do batismo, cujos efeitos também não se perdem. Mas não é este o caso. O luteranismo não atribui natureza sacramental à ordenação. Distingue-se nisto da Igreja Católica Romana, bem como da Ortodoxa e da Anglicana. As conceituações variam. Os católicos falam do “sacramento da ordem”, que é um sinônimo de ordenação, subdividindo-a em diaconal, sacerdotal e episcopal. Entre estas, a diaconal ocupa a posição inferior na hierarquia, enquanto na episcopal se manifestaria a plenitude desse sacramento. Somente um sacerdote ou um bispo pode presidir a celebração eucarística. A validade desta, pois, depende da ordenação sacerdotal, entendida como consagração. Por ela, a pessoa recebe um novo status juntamente com o poder de ofertar o sacrifício eucarístico e de absolver dos pecados. Pela ordenação, a pessoa deixa de ser leiga e passa a integrar o clero. A ordenação é uma prerrogativa “episcopal”, ou seja, somente um bispo tem o direito de oficiá-la. Em se tratando da ordenação de um bispo, é imprescindível a anuência do papa. Desse modo, pretende-se assegurar a sucessão apostólica no ministério.
Lutero se opôs energicamente a tal concepção. Não pôde admitir que a ordenação fosse um sacramento. Isto porque falta uma instituição semelhante à do batismo e da santa ceia no Novo Testamento. Em parte alguma a Escritura fornece o comprovante de um ato respectivo de Jesus Cristo. Além disto, o sacramento da ordem fere a igualdade de todos os crentes perante Deus. Pelo batismo, todas as pessoas são sacerdotes e compartilham o mesmo estado espiritual. Não pode haver, pois, pessoas a que se atribui qualidade espiritual superior à de outras. Essa, porém, seria a consequência caso a ordenação devesse ser entendida como sacramento. Ao consagrar pessoas e revesti-las de poderes especiais, a igreja inevitavelmente cria duas classes entre os fiéis. De fato, o batismo e a eucaristia evidenciam haver uma diferença entre cristãos e não cristãos, mas jamais entre cristãos e cristãos. Enquanto isso, a ordenação sacramental introduz uma hierarquia no povo de Deus.
Para os luteranos, a ordenação não é nem sacramento nem consagração sacerdotal. Ela é, em sentido rigoroso, vocação para o ministério da proclamação do evangelho. É disso que Lutero sentiu falta na igreja de seu tempo. Naturalmente, na ordenação evangélica a comunidade intercede pela pessoa ordinanda, pedindo que o Espírito Santo a ilumine, oriente e fortaleça. A comunidade lhe impõe as mãos e lhe concede a bênção divina. Mas tais gestos não permitem uma interpretação sacramental. A pessoa ordenada em nada se distingue do membro leigo a não ser pela vocação ao ministério. Ordenação é transmissão de um encargo. A validade dos sacramentos não se prende a um status especial do oficiante, e sim a Jesus Cristo que por eles atua. Desse modo, o ministério tem resguardada sua índole de serviço, muito de acordo com o Senhor da igreja que não veio para ser servido, e sim para servir (Mc 10.45).
10. Habilitação – ordenação – instalação
Entre os condicionantes da ordenação na IECLB está a obtenção da habilitação junto ao Conselho da Igreja. Ninguém poderá ser ordenado obreiro ou obreira da IECLB sem ter cumprido essa exigência. Assim o estabelece o “Estatuto do ministério com ordenação” (cf. art. 5º, § 4º). A determinação é justa por impedir a confusão de ordenação e licença de trabalho. Trata-se de coisas distintas.
Isto porque a ordenação tem duas dimensões. Por um lado, ela insere “no ministério da igreja de Jesus Cristo em todo o mundo”, algo bem lembrado pelo referido Estatuto. Como dizíamos acima, o ministério da proclamação do evangelho desconhece limites de qualquer espécie. Ele tem natureza universal. Simultaneamente, porém, a ordenação “estabelece um vínculo confessional e ministerial com a IECLB e sua missão”. São termos igualmente constantes do Estatuto. E, com efeito, a IECLB só pode ordenar ministros luteranos. Ela convoca pessoas para os seus (!) ministérios, não para os de outras igrejas, nem mesmo luteranas. Todas as igrejas fazem o mesmo. O ministério da proclamação do evangelho, embora seja universal, sempre se concretiza em determinadas igrejas, isto é, em instituições eclesiásticas. O ministro ordenado na IECLB não tem o direito ao exercício do ministério em outras igrejas luteranas, seja do próprio país, seja do exterior, muito menos no de outras denominações. Cabe a cada igreja o direito de decidir sobre o emprego ou não de ministros ordenados.
Assim sendo, tanto a ordenação quanto a habilitação têm suas características claramente definidas. Pela ordenação é conferida a autorização para a pregação pública do evangelho e a administração dos sacramentos em termos do art. 14 da CA, cujas palavras “legitimamente chamado” se referem incontestavelmente a este rito. O ensino público, pois, é direito e dever da pessoa ordenada. Enquanto isso, a habilitação atesta a aptidão para a designação a um campo de atividade na igreja. Ela é o reconhecimento formal da capacidade da pessoa para exercer o ministério tanto em termos de formação quanto de qualidades pessoais. Nesse sentido, ela é de fato o pressuposto da ordenação. Pois a igreja iria falhar se ordenasse pessoas das quais sabe de antemão serem incompetentes para o exercício do ministério. Ela vai manter a ordenação e a habilitação tão próximas quanto possível. Mas não pode identificá-las. Esta é uma determinação do direito eclesiástico; aquela, um ato teológico. Por isto mesmo, a habilitação pode ser suspensa, cassada ou revogada. Pode haver circunstâncias que sugiram a interrupção da relação de serviço com o obreiro ou até mesmo desrecomendem o prosseguimento da mesma. A pessoa ordenada continua sendo ministro, mas em “inatividade”. Já a ordenação, pelos motivos acima expostos, não poderá ser revogada.
O ingresso no ministério da IECLB culmina com a instalação do obreiro na comunidade, ou em outro setor de atividade. Pode haver casos em que a ordenação e a instalação coincidem. Isto quando a pessoa ordinanda passa a exercer o ministério pela primeira vez. É claro que a instalação se repete sempre que um ministro e uma ministra troquem de campo de atividade e sejam introduzidos em outro, novo.
11. Autorização especial para leigos?
Na falta de ministros ordenados, comunidades têm insistido com frequência na autorização de leigos para a celebração dos sacramentos, ofícios e cultos. A missão não deveria ser obstaculizada por este motivo. Leigos deveriam entrar na brecha e preencher a lacuna. Será admissível isto? O assunto é polêmico. Ele se coloca, por exemplo, quando estudantes de Teologia, ainda sem ordenação, são convidados para trabalho de substituição em paróquias. Mas também outras pessoas poderiam ser consideradas aptas a exercer o ministério em situações emergenciais e convidadas para assumir serviços pastorais. Porventura elas terão o direito de usar veste litúrgica? Cabe-lhes a subsistência integral? Estaria o exercício do ministério de fato atrelado à ordenação?
Ora, a concepção do ministério compartilhado ampliou consideravelmente o número de pessoas em condições de administrar os sacramentos, de coordenar a celebração do culto e de assumir ofícios. É esta uma das grandes vantagens dessa proposta. Serão mais raras as situações de emergência por falta de ministros ordenados. Mesmo assim, poderão ocorrer. Também não está resolvida a questão do trabalho de estagiários e outros servidores não ordenados. A tradição luterana sempre esteve atenta a tais casos especiais. Admitiu que leigos ministrassem o sacramento quando não havia outra possibilidade. Da mesma forma, porém, sublinhava a excepcionalidade de tais soluções. Importa cuidar da ordem. E esta prescreve que a celebração dos sacramentos e o ensino público do evangelho estejam condicionados à ordenação. Ninguém deve fazer-se ministro na igreja de Cristo por iniciativa própria. O ministério é um dom por demais precioso para ser entregue ao arbítrio e manejo de pessoas não habilitadas.
Por essa razão, recomenda-se insistir na ordenação como credencial para o devido exercício do ministério. Isto não impede que alguém seja incumbido de “funções pastorais” por tempo determinado e para determinado lugar, desde que haja alguém responsável pelo bom cumprimento da tarefa. Exige-se autorização expressa da instância superior em tais casos, bem como responsabilização por parte do respectivo mentor. O desleixo neste tocante pode favorecer a invasão de elementos estranhos nas comunidades da IECLB e o consequente risco de cisões. A correta administração dos sacramentos e o ensino público do evangelho não se reduzem a uma questão meramente prática. Implicam o cuidado com a teologia luterana.
12. Dissensos ecumênicos
O esforço por estreitar os laços entre as igrejas cristãs tem na questão do ministério um dos seus maiores entraves. A Igreja Católica não aceita o ministério das igrejas protestantes como equivalente. Ele estaria onerado com grave defeito. Por não reconhecerem a dignidade sacramental da consagração sacerdotal e por não se encontrarem em autêntica sucessão apostólica, as comunhões protestantes não poderiam ser consideradas igrejas “em sentido próprio”. Assim o papa Bento XVI voltou a enfatizá-lo em manifestação recente. Portanto, nega-se a natureza eclesial também à igreja luterana. O ecumenismo certamente não foi em vão. Ele conduziu, entre outros, ao reconhecimento mútuo do batismo. Toda pessoa batizada em nome do trino Deus é e deve ser considerada cristã. Somos irmãos e irmãs em Cristo. Mas as instituições eclesiásticas continuam excludentes. O motivo principal é o dissenso na conceituação do ministério.
Faltaria à igreja luterana o “episcopado histórico”, isto é, a conexão ininterrupta dos bispos com as origens. Os apóstolos teriam instituído sucessores, que, por sua vez, cuidaram de passar adiante o ministério. Quem não estaria nesta sequência episcopal, ordenado e consagrado, não teria autoridade para celebrar a missa e desempenhar as funções de um ministro eclesiástico. Vale destacar que o “episcopado histórico”, tal como a Igreja Católica o entende, inclui o reconhecimento do primado do papa. É por isso que ela também não reconhece o ministério da Igreja Anglicana nem o das igrejas luteranas da Escandinávia, que se orgulham de ter mantido o “episcopado histórico”. Seus bispos sempre foram ordenados dentro da mais autêntica sucessão apostólica. Mas já que não se sujeitam à autoridade do pontífice de Roma, têm sua eclesialidade igualmente negada.
Como visto acima, o luteranismo não pode concordar com tal concepção. Entende a sucessão apostólica não em sentido formal. Ela é uma questão de conteúdos, de reta doutrina e de práxis. O que importa mesmo é a fidelidade ao evangelho. O resto é secundário. De fato, o episcopado histórico e uma estrutura hierárquica são insuficientes para manter a igreja na rota da verdade. Foi esta a experiência na época da Reforma. Por isto, o art. 7 da CA define a igreja como a “congregação dos santos na qual o evangelho é pregado de maneira pura e os sacramentos são administrados corretamente”. É o evangelho que faz a igreja, não o bispo nem a sucessão episcopal. Também a igreja luterana se entende como igreja plantada no fundamento dos apóstolos (Ef 2.10). Sabe da necessidade do ministério eclesiástico. Mas não se prende a determinada forma do mesmo. Deve haver liberdade na “formatação” do mesmo e flexibilidade em sua execução. O luteranismo considera tradições humanas algo relativo, variável, sujeito a mudanças (cf. CA, art. 7). Ademais, pode recorrer a Ef 4.4-6. Entre as condições da unidade da igreja, essa passagem menciona um só batismo, uma só fé e um só Senhor e Deus Pai, mas silencia com respeito a “um só ministério”. No início da igreja houve uma variedade de ministérios do que o Novo Testamento é eloquente testemunha. Então, não há como falar de um defeito do ministério protestante. Ele é tão apostólico, ou mais, quanto o da Igreja Católica.
A unidade da igreja de Cristo está prejudicada enquanto os cristãos continuam separados na mesa do Senhor. A concelebração da ceia, porém, exige o reconhecimento mútuo do ministério e a aceitação recíproca da eclesialidade. Unidade não é sinônimo de uniformidade. O que queremos é a “comunhão dos santos” capaz de abrigar legítima diversidade alicerçada num consenso básico. Portanto, o termo “unidade” deve ser interpretado a partir do conceito da “comunhão”. Podemos discordar uns dos outros sem romper os laços que nos unem. Assim sendo, deveria ser possível falar em igrejas irmãs ao professarmos a mesma fé e praticarmos o mesmo batismo. Certamente o ministério é uma questão crucial do ecumenismo. No entanto, o diálogo ecumênico mostrou que também esta barreira não é invencível. Sentimos falta de passos mais corajosos em direção a um reconhecimento mútuo do ministério mesmo que seja exercido em modalidades diferentes. Não estaria também o ministério, respectivamente o episcopado luterano dentro da sucessão histórica? E seria esta condição imprescindível para a identidade da igreja de Cristo? Importante é a vontade de manter a fidelidade ao evangelho, de caminhar juntos nessa busca e de unir as forças diante dos imensos desafios de um mundo em crise de fé.
13. A ordenação de mulheres
Será legítimo admitir mulheres ao ministério ordenado? Eis outra questão litigiosa no mundo ecumênico. A Igreja Católica e a Ortodoxa se pronunciam radicalmente contrárias, reservando o privilégio da ordenação ao gênero masculino. Os anglicanos e metodistas são favoráveis, havendo nessas igrejas até mesmo “bispas”. O mesmo vale para as igrejas luteranas, que, em sua maioria, optaram pela ordenação de mulheres. A Federação Luterana Mundial endossou fortemente a igualdade de homens e mulheres também nesse tocante. Ainda assim, o assunto continua polêmico até mesmo no luteranismo. Há igrejas e grupos relutantes em conceder às mulheres a plena participação no ministério. Na IECLB o assunto está decidido há várias décadas. Apesar da persistência de oposição esporádica, as mulheres são admitidas à ordenação em igualdade de direitos com os homens. É esta a orientação oficial da igreja.
A negação da ordenação às mulheres costuma apoiar-se em principalmente três argumentos. (a) Estaria aí o testemunho bíblico de acordo com o qual a mulher deve manter-se calada na igreja (cf. 1Co 14.33b-36; cf. 1Tm 2.1s.). A Sagrada Escritura, pois, estaria vetando o ministério à mulher. (b) Jesus convocou apenas homens para serem apóstolos. Em razão disto, também seus sucessores deveriam ser homens, sendo difícil imaginar mulheres nesse papel. (c) Jesus Cristo foi um homem e, como tal, poderia fazer-se representar somente por alguém do próprio sexo. Os ministros ordenados devem falar em nome de Cristo. Logo, as mulheres não seriam aptas a exercer o ministério. Ademais, invoca-se a força da tradição, na qual a mulher estava excluída do ministério. A igreja de Cristo, assim se sustenta, sempre foi regida por homens. Somente em tempos recentes essa praxe vem sendo questionada.
E há bons motivos para tanto. Pois os argumentos acima arrolados não resistem a uma investigação rigorosa. Quanto ao testemunho bíblico, há que se concordar que, ao lado da proibição da fala de mulheres na igreja, existem numerosas evidências de mulheres em posições de liderança. Paulo se refere a profetisas, ou seja, pregadoras nos cultos da comunidade de Corinto (1Co 11.4). Os doze apóstolos, sem dúvida, foram homens. Mas houve apóstolos além deles, a exemplo de Paulo. Importa lembrar também Maria Madalena, primeira testemunha da ressurreição de Jesus, conforme o Evangelho de João (Jo 20.1s.). Não seria ela também apóstola? É impensável a história da expansão do cristianismo sem o protagonismo das mulheres.
O testemunho bíblico, portanto, não é uniforme. O que mais pesa, porém, e o que favorece a ordenação de mulheres, é que o evangelho preconiza a absoluta igualdade de homens e mulheres no plano de salvação de Deus. Este é o argumento realmente teológico, enquanto o recurso aos costumes antigos não tem força realmente persuasiva. Em Cristo não há homem e mulher (Gl 2.28), sendo que ele mesmo, Jesus Cristo, não fez discriminação nenhuma. Dizer que somente um homem pode representar Jesus Cristo é sinal de leitura “sexista” do evangelho. Jesus é salvador de todos, e todos são chamados a serem proclamadores da boa nova, homens e mulheres. Aliás, igualdade não significa identidade. O evangelho não apaga individualidades. Significa, isto sim, parceria que permite tanto ao homem quanto à mulher o seu jeito de ser e agir. O mesmo deve acontecer no exercício do ministério.
A título de complementação, seja observado que também Lutero, em conformidade com a opinião predominante na época, achava que mulheres não deveriam ser chamadas ao ministério. Isto apesar de ter afirmado que, se homens não pregassem, as mulheres deveriam fazê-lo. Atestou a elas que podem ser tão boas na pregação quanto eles e admitiu que, em situação excepcional, mulheres deveriam substituir os homens. Mesmo assim, Lutero se pronunciou contrário à convocação de mulheres ao ministério da pregação, alegando que ela fere a ordem de Deus. Mas qual seria esta ordem? Lutero fica devendo real prova de sua posição. O argumento de que a mulher deve subordinar-se ao homem é inadmissível. Pois o exercício do ministério deve ser visto antes como serviço, e não como dominação. O ministério não confere nenhuma posição de superioridade. Ninguém insistiu nisso tanto como o próprio Lutero, o que invalida suas ressalvas. Dada a ênfase que o reformador dava à pregação do evangelho, ousamos concluir que a ordenação de mulheres corresponde ao espírito autenticamente luterano. Sempre que a igreja exclui a parcela feminina de seus membros do ministério, ela sofre prejuízo irreparável e se torna culpada de um grave defeito em sua estrutura ministerial.
14. Vocação como profissão
Quem abraça o ministério eclesiástico faz da vocação a sua profissão. Nisto reside a beleza e também a dificuldade desse serviço. Pela ordenação, Deus requisita a pessoa para ser sua mensageira, encarregando-a de fazer profissionalmente o que, no fundo, é atribuição de todos os membros da comunidade. Cabe à igreja enviar e acompanhar os seus ministros e suas ministras. Quem foi ordenado é “pessoa cristã por profissão”. Sua área de competência é a fé. Ela deve examinar os credos vigentes na sociedade e tentar identificar e selecionar o refugo. Ao mesmo tempo, deve semear a fé autêntica que tem a promessa da salvação. Assim fizeram os profetas, assim fizeram os apóstolos, assim devem fazer pastores, catequistas, diáconos/diaconisas e missionários hoje. Juntamente com a fé, devem espalhar o amor e a esperança. Pois em termos cristãos não há como separar entre estes “três”. Trata-se de necessidades básicas do ser humano, cujo atendimento é literalmente vital. O ministério eclesiástico não deve ser exercido por “amadores”. Já que se trata de um mandato “oficial”, ele exige alto grau de profissionalismo.
Isto significa, em primeiro lugar, que a igreja não pode ser negligente na qualificação teológica dos candidatos e das candidatas ao ministério. Deve oferecer-lhes possibilidades de formação adequada e cobrar de seus ministros a atualização teológica contínua. Deficiência teológica é uma das grandes causas de frustração no ministério. Esperam-se das pessoas ordenadas a avaliação crítica das ofertas do mercado religioso, o juízo teológico fundamentado e o zelo para com a confessionalidade da igreja. Não menos importante é a competência missionária. As pessoas ordenadas são propagandistas de Jesus Cristo. Para tanto, necessitam de facilidade na comunicação, no diálogo e na representação. Quem tem medo do público e prefere ficar em casa, em vez de procurar as pessoas, tem o seu ministério prejudicado. Seja mencionada ainda a competência administrativa. Esta não se refere apenas ao trabalho de secretaria, que também na igreja não pode faltar. Mais importante é saber administrar a diversidade, conduzir a comunidade, trabalhar conflitos. Comunidade é sempre um fenômeno plural, cuja administração exige sabedoria.
O mais perfeito profissionalismo, porém, não basta para assegurar o bom exercício do ministério. A ordenação é chamado, envio e bênção, não garantia de sucesso. Tal garantia não existe. O bom êxito do empenho dos ministros sempre depende do beneplácito de Deus, devendo, por essa razão, ser conteúdo de prece. No entanto, ele se inviabiliza de antemão sem a fé dos próprios ministros. Quem não acredita mais no que prega perdeu de vez as credenciais de sua profissão. Já não pode corresponder à vocação de Deus. Mais do que outras profissões, o ministério eclesiástico tem por pressuposto a fé de quem o exerce. Espera-se de pessoas ordenadas convicção no que fazem. É claro que não se trata de produzir a fé por própria razão ou força. A fé é um dom de Deus a ser recebido com gratidão. Entretanto, é preciso trabalhar por ela e preparar as condições de sua acolhida (cf. Fp 2.12s.). O Espírito Santo repudia a preguiça. Importa reaprender constantemente a afirmação da fé diante das ameaças a que ela vive exposta. A própria integridade espiritual o exige. Do mesmo modo o exige a responsabilidade de que a ordenação incumbe. Os ministros de Deus devem prestação de contas da fé à comunidade que os convocou. Ser um “profissional da fé”, eis a dificuldade do ministério. Nisto reside, simultaneamente, seu incomparável fascínio. Pois não pode haver coisa mais importante.
Notas
1 Este texto foi elaborado por Gottfried Brakemeier.
2 GUIA para o presbitério: manual de estudos. Org. Emílio Voigt. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: IECLB, 2010. (Série Educação cristã contínua).