Faculdades EST
Cerimônia de Doutorado Honoris Causa
Laudatio para ROSA MARGA ROTHE
São Leopoldo, 03/09/2010
Laudatio
Magnífico Reitor de Faculdades EST, Dr. Oneide Bobsin
Ilustríssimo Sr. Teólogo e Comunicador Hilmar Kannenberg, Presidente do Conselho de Administração da EST
Ilustríssimo Prof. Dr. José Ivo Follmann, representante da Unisinos, neste ato representando as Instituições de Ensino Superior da região
Reverendíssimo Dr. Walter Altmann, Pastor Presidente da IECLB, representando aqui a Pastora e Pastores Sinodais presentes
Ilustríssima Dra. Carla Adami da Silva, promotora de justiça do Ministério Público do RS
Excelentíssimo Sr. Prof. Ary Vanazzi, Prefeito Municipal de São Leopoldo
Senhores e senhoras, amigos e amigas de nossa homenageada
E de modo especial, querida amiga Rosa Marga Rothe:
Para nós que temos o privilégio de participar deste evento nesta noite, acredito que ficará gravada na memória a tranqüilidade, a leveza e a demonstração de fé e esperança que marcou e continua a ser uma característica da pastora Rosa Marga. Quem a conheceu há mais tempo, provavelmente irá concordar comigo. Quem a conhece agora, terá oportunidade de afiançar esta percepção nesta noite.
Rosa Marga viveu intensamente desde sua infância lá longe na pequena Mückenberg, Alemanha, onde nasceu em junho de 1940, filha de Paul Max e Rosa Maria. Marga nasceu em plena Segunda Guerra Mundial. Seus pais imigraram ao Brasil nos anos de 1920, sendo que o avô materno se estabeleceu na Colônia Francisco Sá, Teófilo Otoni, MG. Com a crise do café, pai e mãe retornaram à Alemanha em 1934, passando pela dura experiência da guerra. O pai foi soldado e depois prisioneiro de guerra por 5 anos na Rússia. Antes disso, em 1940 nasceu Rosa Marga que junto com o povo alemão e de outro povos da Europa viveu as privações da guerra, tomando mais tarde conhecimento das perseguições contra mulheres e meninas desamparadas no pós-guerra. Em setembro de 1949, ela, a mãe e duas irmãos embarcaram em Hamburgo rumo ao Brasil, estabelecendo-se na casa do avô materno em Teófilo Otoni. O pai só foi libertado um ano depois, vindo juntar-se então à família em Minas Gerais.
Consta que Rosa Marga trabalhou na roça de 1949 até 1956. Nos anos de 1952 e 1953 freqüentou a escola da comunidade luterana de Teófilo Otoni, morando no internato da igreja. Ali também fez o Ensino Confirmatório. Ela afirma que foi com a Confirmação que se tornou membro consciente e atuante da IECLB, igreja na qual veio a tornar-se pastora bem mais tarde e na qual milita até hoje. Teve várias profissões como vendedora, caixa, auxiliar de escritório, cabeleireira e esteticista. Em 1969 casou-se com Antonio das Neves, funcionário do antigo BNH. O casal passou a morar em Belém do Pará, onde Rosa Marga teve dois filhos, Max e Rui, e uma filha, Iva Rothe Neves que a está acompanhando neste evento. Com as crianças pequenas, ela retomou os estudos, completando o 1° e 2° graus num curso supletivo nos anos de 1974 e 1975. Em 1976 fez vestibular e entrou para o curso de Teologia da Universidade Federal do Pará, algo surpreendente do ponto de vista histórico, pois a teologia só viria a tornar-se curso reconhecido pelo MEC em 1999. Mas isto – talvez – pode ser explicado por acontecer em Belém ... do Pará! Rosa Marga recebeu seu título de Bacharelado e Licenciatura em Teologia no final de 1979, num momento em que ela já se tornara importante liderança leiga na incipiente comunidade evangélica luterana de Belém. No ano de 1997 decidiu naturalizar-se brasileira, algo que ela já vivia no coração e na vida pública.
De 1992 a 1994 fez curso de Especialização em Teoria Antropológica e, de 1994 a 1998, os estudos de mestrado, na UFPA, escrevendo uma dissertação que teve por tema: “Pentecostais, protestantes? Um estudo da Igreja do Evangelho Quadrangular em Belém”, sob a orientação do Dr. Raymundo Heraldo Maués e da Dra. Anaíza Vergolino e Silva, pesquisa financiada com bolsa da CAPES, e de cuja banca de defesa participou o conhecido sociólogo da religião Paul Freston. O interesse pelos pentecostais certamente está vinculado à sua trajetória pastoral e militância pelos direitos humanos, em que por vezes ela esteve lado a lado com irmãos e irmãs pentecostais.
Como educadora popular, Rosa Marga revelou-se incansável. Desde a década de 1970 ela assumiu o desafio da formação de lideranças populares e eclesiais, elaborando materiais pedagógicos, informativos, e também colaborando diretamente na alfabetização de adultos a partir do método Paulo Freire. Não é acaso, portanto, que Rosa Marga tenha colaborado na criação do Centro de Intercâmbio e Estudos Econômicos e Sociais, em Belém, instituição que anos depois deu origem ao Instituto Universidade Popular – UNIPOP, que assumiu a articulação e os estudos ecumênicos naquela cidade de 1987 até o presente. A UNIPOP desde o início contou com o apoio da IECLB e diversos pastores foram liberados para trabalhar em Belém e atuarem naquele importante projeto. Foi a partir dessa experiência e da criação do Conselho Amazônico de Igrejas Cristãs – CAIC – uma expressão local do CONIC, que se deu início no final dos anos de 1980 a um Curso Ecumênico de Teologia, possivelmente inédito no Brasil. Nesse curso pessoas de diferentes igrejas realizavam estudos em conjunto e somente na segunda parte faziam os estudos confessionais dirigidos por docentes das respectivas igrejas. Este curso veio a preceder a atual Associação Amazônica de Ciências Humanas e Religião – ACER, que conta atualmente com o apoio e credenciamento acadêmico da UMESP – Universidade Metodista de São Paulo. Em todas estas iniciativas, lá esteve presente Rosa Marga com seu entusiasmo e sua visão de futuro.
Em termos ecumênicos, vale registrar que ela foi sócio-fundadora de Koinonia – Presença Ecumênica e Serviço, com sede no Rio de Janeiro e, na IECLB, uma das principais lideranças femininas da PPL – Pastoral Popular Luterana, com a qual colabora até hoje.
Mas há um campo de atuação em que Rosa Marga sobressaiu por sua teimosia e coerência de princípios. Em 1979 ela concluíra o curso de Teologia. Incentivada e apoiada por seu pastor regional na época, Albérico Baeske, ela se colocou à disposição da IECLB para atuar na pequena comunidade luterana de Belém. Assim, ao mesmo tempo em que realizou estudos sobre confessionalidade luterana orientada por colegas já ordenados ao ministério, ela tornou-se pastora auxiliar em abril de 1981. Em carta pessoal dirigida a Lori Altmann, ela escreveu que um de seus primeiros testes como pastora foi realizar a bênção matrimonial do colega Pastor Emil Schubert com Arlete Pinheiro, uma liderança leiga da pastoral popular da Igreja Católica, ao lado de um padre colega de estudos e a presença de dois dos seus melhores professores. A atuação pastoral de Rosa Marga está pontuada por tais gestos de fé e de convivência ecumênica. Ela escreveu: “Com eles eu me sinto ligada afetiva e solidariamente na mesma caminhada”.
Ela exerceu o pastorado de 1981 a 1994, mas a ordenação oficial só aconteceu em fevereiro de 1988, depois de muitos embates teológicos, de um colóquio com a direção da IECLB e pressão das bases da igreja. Só então Rosa Marga tornou-se oficialmente pároca da recém criada Paróquia Evangélica de Confissão Luterana de Belém (1985), da qual foi a primeira pastora residente. Em sua atuação pastoral, a ênfase se deu na contextualização do evangelho numa comunidade já então integrada majoritariamente por pessoas do Pará e da periferia de Belém, pela abertura ecumênica e pelo acompanhamento a projetos de educação popular como o da comunidade da Vila da Barca, em plena favela nas palafitas do rio que banha Belém, como vimos no Video a pouco.
Foi a partir dessa concepção de testemunho evangélico e exercício do ministério pastoral que Rosa Marga assumiu a luta pelos direitos humanos com todas as implicações que esta decisão acarretou naqueles tempos obscuros da Ditadura Militar, não sem sofrer com incompreensões de pessoas que lhe queriam bem, mas que não entendiam suas escolhas e projetos. Rosa Marga precisou lutar muito para defender o povo sofrido, perseguido, preso e condenado, principalmente em sua articulação com os movimentos populares, de camponeses e agricultores pobres. Mesmo em setores da IECLB ela colheu oposição e aberta resistência à sua participação explícita e corajosa na contestação às arbitrariedades dos órgãos de repressão do regime militar. É importante registrar aqui – a bem da verdade – que a partir do final de 1980, já então separada do marido, ela não deixou de engajar-se, apesar de ser mãe de três crianças e tendo que assumir o duplo papel de mãe e pai.
Nesse contexto, Rosa Marga – levada por uma fé inquebrantável na força do evangelho de Jesus, evangelho da paz, da justiça e do amor solidário – não teve dúvidas em juntar-se a setores da sociedade civil que organizaram a partir de 1977 a Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos - SPDDH, uma ONG que existe até hoje e cujos serviços à causa dos direitos humanos, da cidadania e da defesa de um país mais democrático e justo foram reconhecidos por toda a sociedade paraense e até nacional. Rosa Marga tem em seu currículo passagens inesquecíveis como a defesa da justiça aos 13 posseiros e dois padres presos em 1981 por suposta subversão e crimes contra a segurança nacional, luta que deu origem ao MLPA – Movimento pela Libertação dos Presos do Araguaia, que por mais de 4 anos manteve na imprensa e na sociedade a luta pela libertação e por um tratamento digno daquelas pessoas. Uma passagem memorável foi o jejum de 48 horas realizado em outubro de 1981, de cuja experiência Marga registrou o seguinte, logo após o encerramento daquela vigília na Comunidade do Padre Savino, periferia de Belém, que acolheu afetuosamente o grupo: “Nesta assembléia foi feita uma avaliação deste jejum que para todos foi a primeira experiência e, apesar da maioria ser jovem, todos se declara(ram) muito animados com esta nova descoberta de forças desconhecidas”. É digno de nota que no grupo participaram tanto cristãos como pessoas sem vínculo de fé, mas que se uniram de corpo e alma nesta luta solidária pelos perseguidos políticos. Num outro documento, Marga informa que dois anos depois, o grupo do MLPA continuava a visitar os presos e lhes entregar cartas das esposas, que lutavam por seus maridos desde fora da prisão. A leitura dessas cartas por vezes levava lágrimas aos olhos dos presos que se sentiam fortalecidos e animados para suportar tanta injustiça, as agruras da prisão e maus tratos até alcançarem a sonhada liberdade.
Neste ponto cabe-me fazer referência à participação de Rosa Marga no Sistema de Segurança Pública do estado do Pará. Como disse, ela fora uma das co-fundadoras da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos. Foi conselheira consultiva, Vice-Presidenta e, de 1987 a 1991, Presidenta da Sociedade. Foi baseada nessa caminhada que diversos setores da sociedade civil a indicaram para a 1ª Ouvidoria do Sistema de Segurança Pública do Pará, cargo que Rosa Marga assumiu nomeada pela então governador Almir Gabriel, tornando-se a Primeira Ouvidora Pública naquele estado e a segunda no Brasil. A primeira foi instituída em São Paulo pelo ex-governador Mario Covas. Ela exerceu este cargo por quatro mandatos, de 1997 a 2004. Se bem entendi, enfrentando toda sorte de dificuldades e oposições por parte de setores da Segurança Pública, Rosa Marga conseguiu instituir este serviço no Pará com muita habilidade e conhecimento de causa. Ela participou ex oficio do Conselho Estadual de Segurança Pública e nessa qualidade sempre que encaminhou denúncias ao órgão, o fez com muito critério e fundamentada em fatos documentados. Gerenciou programas, trabalhou na formação das polícias através de cursos, palestras e materiais informativos, instituiu o Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas de Violência – PROVITA, além do Núcleo de Atendimento a Vítimas de Violência – NAVE, que oferece atendimento jurídico, social e psicológico gratuitos, além de outros programas para a garantia dos direitos humanos. Sua atuação sóbria, firme e sempre respeitosa no campo minado que é o da segurança pública lhe valeu muitos desafetos, mas também amplo reconhecimento, como se pode constatar na declaração de um dos comandantes da Polícia Militar do Pará. Este oficial afirmou pessoalmente a ela: “A senhora nos fez gostar daquilo que odiávamos” (isto é, a Ouvidoria).
Atualmente, a sociedade civil do Pará já se deu conta de que está em processo uma mudança cultural no estado que passa pela ação civil organizada e pela confiança no diálogo como forma de dirimir conflitos. Em toda a sociedade paraense, é público e notório o serviço prestado pela Pastora e Antropóloga Rosa Marga Rothe, reconhecida por sua teimosia esperançosa na luta pela dignidade humana, seja de quem for, pela coragem civil e pela fé inabalável na paz e na justiça. Não por acaso, executivos e responsáveis pela Segurança Pública no Pará passaram a citá-la como a “nossa Ouvidora”, como sinal inequívoco dos seus esforços pela democracia, respeito aos direitos humanos e transparência no serviço público. E isto, diga-se, com um mínimo de aparato e poucos recursos. Também a imprensa do Pará não deixou de reconhecer e registrar esta trajetória em reportagens e entrevistas.
Como resultado de uma pesquisa realizada por um grupo de docentes, técnicos e estudantes de duas universidades locais, foi realizado um detalhadado levantamento sobre mortes e feridos por arma de fogo, envolvendo policiais civis e militares, no período de 1998 a 2001, trabalho recentemente publicado e que só foi possível com a determinação característica de Rosa Marga. O fato de que a atual Ouvidora Pública do Pará é também a Pastora e colega Cibele Kuss, pároca da Paróquia Evangélica de Confissão Luterana de Belém não deixa de ser uma conseqüência da atuação de Rosa Marga e um gesto de confiança na garra e na coerência dessas duas mulheres pastoras da IECLB.
Estes e tantos outros motivos levaram a que ela recebesse em dezembro de 2004 o Prêmio de Direitos Humanos, conferido pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos, do gabinete da Presidência da República, na capital federal. Em dezembro de 2008, ela recebeu igualmente o Prêmio José Carlos Castro, concedido pela Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, Seccional do Pará, honraria conferida a pessoas que se destacaram na defesa dos Direitos Humanos.
Nesta noite, Faculdades EST por decisão de seu Conselho de Administração, vem somar-se a esses gestos de merecido reconhecimento para outorgar à Pastora Rosa Marga Rothe o título de Doutora Honoris Causa. Nós o fazemos com muita honra e enorme alegria entendendo que este é um pequeno gesto pelo tanto que ela fez em prol de uma humanidade mais íntegra, respeitosa para com quem sofre e carregada de esperança em nosso sofrido, mas também auspicioso país.
Agradeço por sua presença e paciência.
Dr. Roberto E. Zwetsch
03 de setembro de 2010