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ID: 2681

A Igreja no Espaço Público: Igrejas Luteranas assumindo responsabilidade pelo mundo hoje

16/10/2019

 

A Igreja no Espaço Pùblico: Igrejas Luteranas assumindo responsabilidade pelo mundo hoje

Arcebispa Antje Jackelén

[ Veja vídeo na Midiateca logo abaixo.]

Minha apresentação hoje tem como título “a igreja no espaço público: igrejas luteranas assumindo responsabilidade pelo mundo hoje” e gostaria de estruturar minhas reflexões sobre este tema ao redor de cinco ideias-chave: educação; liberdade; medo; compreensão e esperança.

1. Educação

Há alguns anos, fui convidada para pregar na cidade romena de Braşov. Foi o culto de domingo na histórica Igreja Negra, a qual, de acordo com algumas fontes, é o maior local de culto entre a catedral de São Estévão em Viena e a Hagia Sofia em Istanbul. A comunidade local, cuja igreja pertence à Confissão de Augsburgo, é orgulhosa de sua herança protestante. Os membros da comunidade compartilham a tradição de viver na beira entre os mundos ocidental e oriental, onde o Oeste e o Leste se encontram.

A igreja em Braşov não contém navios votivos pendurados em gratidão por bem-sucedidas viagens de comércio; em vez disso, tapetes de oração orientais decoram suas paredes internas: um símbolo de diálogo inter-religioso antes mesmo deste termo ter sido cunhado. Porém, talvez não seja tanto um símbolo de responsabilidade ativa pelo mundo mas, antes, uma resposta pragmática aos caminhos do mundo.

Entretanto, encontrei evidência de responsabilidade ativa pelo mundo na parede externa ao sul do templo – na forma de um monumento ao reformador local. Ali ele está numa pose que aparenta Lutero, completo, com boina e Bíblia. O que é especial em relação à estátua é que o reformador claramente aponta para uma direção específica: não para dentro da igreja, mas para longe dela, em direção a um prédio adornado com a palavra “escola”.

Responsabilidade pelo mundo, fundamentada na tradição luterana, está intrinsicamente ligada à educação e responsabilidade pela educação. Afinal, a Reforma começou em um lugar de aprendizagem, numa universidade – e não em qualquer universidade velha, mas num refúgio de novas ideias. O primeiro reitor da Universidade de Wittenberg, Martin Pollich, tinha sido forçado a deixar a universidade de Leipzig porque considerava a sífilis uma doença que deveria ser tratada por meios médicos e não, como entendiam seus colegas, como castigo de Deus. No campo da astronomia, a universidade de Wittenberg foi uma instituição de ponta. Georg Joachim Rheticus (1514–1574) foi um aluno de Copérnico e tornou sua cosmologia disponível para o público numa obra publicada em 1540. É, portanto, bem possível que o ambiente naquela jovem universidade, fundada apenas em 1502, tenha influenciado a Reforma. Aqueles que querem preservar a herança da Reforma fazem bem em ter medo nem de conhecimento, nem da ciência. Conhecimento e fé, ciência e teologia precisam uma da outra.

Num tempo em que o populismo joga a elite contra as pessoas comuns, importa notar que o compromisso da Reforma com a educação estava firmemente dirigido a todas as pessoas e – em expressões um tanto anacrônicas – também à sua democratização e emancipação. Os catecismos foram instrumentos educacionais de significado excepcional. Conhecer algo “de cor” significa que  ninguém pode tomá-lo de você; e se é “bom” conhecimento, falará tanto à sua mente quanto a seus sentimentos, lhe dará liberdade e coragem de erguer-se como cidadão e assumir responsabilidade em sua comunidade. Junto com a nova tecnologia de imprensa, não foi mais impossível imaginar uma trajetória de educação de proporções gigantes. Aqueles que sabem ler e escrever têm novas oportunidades para contribuir para com o bem comum.

Tão tarde quanto o início do século XX, diferenças substanciais ainda podiam ser observadas entre países protestantes e católicos na Europa quando o assunto é a habilidade de ler e escrever. Portanto, o desejo de educar suscitado pela Reforma certamente tinha um impacto. E é algo de que podemos nos alegrar hoje, todas e todos, no espírito da amizade ecumênica. Na comemoração da Reforma conjunta católico-luterana realizada em Lund, na Suécia, em 31 de outubro de 2016, o papa Francisco, por exemplo, sublinhou quão importante a Reforma, e colocar a Bíblia na mão do povo, tem sido também para a igreja católica.

O legado educacional luterano é uma obrigação que ainda sentimos hoje. Ao menos no começo do século XXI, estudantes com raízes luteranas estavam super-representados em instituições de ensino superior nos Estados Unidos quando comparados com a população como um todo.

É claro que se poderia levantar também objeções. A obediência luterana às autoridades criou seus próprios problemas. Durante muito tempo, pastores na Suécia executaram o que ficou conhecido como interrogações de domicílio: em sua capacidade de representantes das autoridades, entrariam nos lares das pessoas e examinariam o conhecimento do catecismo de cada membro do domicílio. Assim, a percepção popular do catecismo como um instrumento de coerção e opressão permanece. Ao longo dos séculos, estruturas autoritárias têm extinto muitos traços da liberdade evangélica.

2. Liberdade

Se a educação é uma consequência contínua e mandatória da teologia e tradição luteranas, seu conteúdo central é a liberdade. Aquele que é justificado por meio da graça e apreende aquela realidade por meio da fé é livre. Onde os grilhões que nos mantém prisioneiros são quebrados, não somos apenas libertados de algo, mas somos livres para fazer algo, e isto nos leva diretamente para aqueles enunciados centrais, aparentemente contraditórios, no grande tratado de Lutero sobre a liberdade, de 1520. “O cristão é um senhor libérrimo sobre tudo, a ninguém sujeito. O cristão é um servo oficiosíssimo de tudo, a todos sujeito.”1

Precisamente porque a liberdade chega por meio da fé, cristãos e cristãs estão livres para colocar-se à serviço de outras pessoas. Se não estou mais preocupado com minha própria salvação – ou meu próprio bem-estar – estou livre para dedicar-me às necessidades de outros. Se tenho assimilado a palavra libertadora do Evangelho, posso responder ao chamado de outras pessoas e assumir responsabilidade – responsabilidade pelo mundo. Justificação e justiça se pertencem. Se acredito na justificação, também quero que o mundo seja tão justo quanto possível.

Se tudo isto soa para vocês um tanto demasiadamente como igreja e política, certamente gostariam de citar a distinção entre os dois reinos – o espiritual e o secular. Vocês poderiam interpretar isto como significando que pessoas cristãs deveriam concentrar-se unicamente no espiritual, enquanto o secular ou mundano poderia ser deixado mais ou menos para seus próprios alicerces. E isto é exatamente o que aconteceu mais de uma vez. Utilizando a doutrina dos dois reinos, pessoas cristãs têm evitado sua responsabilidade, foram instruídas a ficar quietas sobre assuntos seculares – alegando que fé e política nada teriam a ver uma com a outra. A falha das igrejas em resistir mais na Alemanha nazista é um caso que demonstra isto. No entanto, teologia luterana distingue entre fé e política, mas não separa uma da outra; de fato, as duas pertencem juntas. Os dois reinos ou regimentos são, de fato, estratégias, antes de reinos ou âmbitos.2

Permitam-me lembrar-nos brevemente do ensino do meu caro e saudoso colega, P. Prof. Vítor Westhelle. Ele via a doutrina dos dois reinos não como doutrina.3 Antes, a via como princípio epistêmico que ensina os fiéis que conhecer o Cristo é conhecer a justiça (iustitia est cognitio Christi). E, por outro lado, onde a justiça está gritando, ali encontramos o Cristo. Westhelle conclui que “conhecimento do Cristo pode emergir apenas quando entendemos que é nas fissuras e rupturas na ordem das coisas que uma nova justiça pode ser formada”. O regime de Deus funciona como fator antitético no meio dos regimes erguidos por nossa razão e nosso trabalho.4 Portanto, a noção dos dois reinos não apresenta “uma justiça cristã particular, uma alternativa cristã ao mundo, mas a alternativa do Cristo no meio do mundo”.5

De fato, é uma característica da teologia luterana que se apresenta “em pares”, isto é, em duplas de conceitos – por exemplo, dois reinos ou regimentos, lei e evangelho, seres humanos como simultaneamente justos e pecadores (simul iustus et peccator), a obra alheia de Deus e a obra própria de Deus (opus alienum and opus proprium), Deus velado e revelado (deus absconditus and deus revelatus), uma pessoa diante de Deus e uma pessoa diante dos seres humanos (coram deo and coram hominibus), a teologia da glória e a teologia da cruz (theologia gloriae and theologia crucis) ou, como já vimos, liberdade e serviço. É sempre sobre uma relação entre dois polos. Às vezes é sobre ser duas coisas simultaneamente, como com o simul iustus e peccator; às vezes é uma relação de ou isso ou aquilo, como na teologia da glória e a teologia da cruz. É sinal de bons teólogos e boas teólogas que sabem lidar com tais diferenças e relações de forma correta.

Vocês podem colocá-lo da seguinte forma: verdadeiras pessoas luteranas estão imersas em dialética. Alguém disse certa vez que foram precisos físico luteranos para formular a teoria quântica: afinal das coisas, o entendimento que algo pode ser simultaneamente uma partícula e uma onda pressupõe uma compreensão de dialética – em outras palavras, a habilidade de ver que afirmações que ostensivamente se contradizem podem, na verdade, revelar mais verdade do que afirmações que são livre de ambiguidades e livre de contradições. Ora, ressaltar o significado da teologia luterana para a teoria quântica pode ser, talvez, exagerado, mas não se deveria subestimar o valor de ter que,  constantemente, lidar com estruturas dialéticas – especialmente no dia presente, quando o populismo se recusa a aceitar complexidade e busca estabilidade por meio de polarização, protecionismo e pósverdade, numa simbiose funesta com o patriarcado.

3. Medo

Há muito tempo o mundo político não era impulsionando tanto por tais medos e ansiedades como estes que estamos experimentando agora. A crise climática, a migração global, a digitalização acelerada, a falta de lideranças responsáveis em muitas áreas. Porém, liberdade cristã envolve resistir ao medo.

“Se inúmeros demônios vêm, Querendo exterminar-nos, sem medo estamos, pois não têm poder de superar-nos [...]

Se a morte eu sofrer, se os bens eu perder: Que tudo se vá! Jesus conosco está. Seu Reino é nossa herança!”6

Estas linhas, próximas a aterrorizantes, do Castelo forte de Lutero representam a luta contra o medo, uma luta que precisa ser travada com assustadora regularidade. Temos conhecido o medo do terror no mais tardar desde o 11 de setembro de 2001. Também temos medos em relação a nossa segurança (física e social), emprego, previdência, o futuro dos nossos países, justiça global e paz mundial. E sobre estas coisas paira a sinistra nuvem de medo gerada pela mudança climática. Ainda que a mídia esteja distraída com outros tópicos de notícias, o gelo do mundo está derretendo a um passo alarmante. Nisto não se trata apenas da nossa conveniência pessoal e riqueza, mas se ecossistemas inteiros, vilarejos e cidades irão sobreviver. É sobre o medo que não conseguiremos a tempo criar um sistema global que seja sustentável, ecologicamente, economicamente, socialmente e espiritualmente.

Porém, medo e ansiedade restringem. Assaltam nossa liberdade causando estresse ou paralisia, desencadeando um ativismo frenético ou conduzindo-nos para a passividade. A liberdade cristã nos aponta uma direção diferente. Nos fala de “não temer”: estar destemido nesta vida, pois apenas Deus vale ser temido. O temor a Deus pode liberar-nos dos nossos muitos medos mundanos porque Deus, quem merece nossa veneração, é nosso pai amoroso; porque Deus diz: “Assim como uma mãe consola o seu filho, também eu vos consolarei.” (Isaías 66.13). Liberdade é possível face ao medo porque, com Deus, o amor ultimamente espanta o medo. Quando Lutero escreve em seu Catecismo Menor que “devemos temer e amar a Deus e confiar nele acima de tudo”, ele teve sucesso, ao menos no tempo dele, em encontrar um denominador comum para temor e amor. Se Deus que tem o poder de aniquilar tudo, em vez disto nos concede graça, de que deveríamos ter medo então?

À luz da teologia luterana não há uma escala de medo na linha de: contenha seu medo humano com medo ainda maior, especialmente temor de Deus. Em outras palavras, a ideia não é de espantar grande medo por medo ainda maior. A ideia é tão somente estar em veneração a Deus, o Pai amoroso, a Mãe que dá consolo – uma veneração que pode espantar o medo humano e transformá-lo numa responsabilidade positiva pelo mundo.

Hoje em dia, estamos constantemente sendo interpelados a estarmos destemidos. Acontece após cada ataque terrorista; ouvimos isto até mesmo após derrotas eleitorais devastadoras. Políticos falam assim, bispos também. “Não devemos nos permitir ficarmos como presa do medo. Defenderemos nossa sociedade aberta e democrática.” É isto que falou o então primeiro ministro da Noruega, Jens Stoltenberg, quando foi louvado por sua resposta forte e empática ao massacre cometido por um atirador da extrema direita na Noruega em julho de 2011 que deixou 77 pessoas mortas e centenas de feridas. E acrescentou: “Depois do 22 de julho de 2011, os jornais mostraram imagens de um bispo e um imam abraçados numa mesquita em Oslo. Temos que manter viva a memória de tais imagens.” Nosso medo compartilhado e veneração de Deus podem tornar-se fontes de esperança, mesmo em sociedades caracterizadas por secularização e pluralismo.

Na base da fé cristã está a crença de que os pregos que o medo humano conduziu pelas mãos e pés de Cristo perderam seu poder. Seus discípulos estavam sentados atrás de portas fechadas, paralisados de medo até que ele apareceu diante deles e falou: “A paz esteja convosco! Assim como o Pai me enviou, também eu vos envio.” (João 20.21)

Ninguém de nós é invulnerável, nem fisicamente nem espiritualmente. Mas o temor a Deus faz nascer confiança, amor e a disposição de fazer o melhor que podemos. Isto incrementa as nossas chances de trabalhar os medos e as ansiedades legítimos da nossa vida e dos nossos tempos com maior sabedoria, habilidade e confiança. Isto pode nos ajudar a resistir à apatia e à resignação, e dar-nos coragem para lutar contra os poderes da destruição.

Responsabilidade pelo mundo deve falar de como podemos contrapor medo humano com liberdade. Este importante entendimento cristão não deve ser restrito à esfera privada (como é, muitas vezes, o caso na Suécia). Deve ser declamado de cima dos telhados! E os telhados dos nossos tempos não são apenas os púlpitos e as tribunas dos oradores; não apenas os talk shows da TV e os fóruns de discussão nos jornais. Acima de todos estes telhados paira o que é, provavelmente, o maior telhado do nosso tempo – a internet. A rede mundial é, hoje, o que foi a imprensa na época da Reforma. Lutero tinha Gutenberg, nós temos Google (com todas suas vantagens e desvantagens). Smartphones e iPads podem, também, ser colocados a serviço da liberdade e do temor a Deus em vez de serem utilizados para polarizar e difundir o ódio.

Hoje, também, a abordagem correta do medo é uma parte importante de assumir responsabilidade pelo mundo. O filósofo e teólogo dinamarquês Sören Kierkegaard (1813-1855) provavelmente tinha razão quando disse que quem aprendeu a ser ansioso do jeito correto aprendeu o mais importante. O medo correto é possível diante do grande movimento de liberdade adotado pelo Evangelho que supera o nosso medo dos ditadores do mundo e dos tiranos em nossas vidas em nome de Deus que é o único que vale ser temido e quem, sempre de novo, nos encontra com amor.  

4. Compreensão

Responsabilidade é, sempre, também a resposta a uma pergunta. Responsabilidade pelo mundo é a resposta às perguntas que o mundo nos oferece. Se quer dar a resposta certa, é preciso compreender a pergunta. Contudo, compreender também significa traduzir e interpretar. Sabemos disto há muito tempo, não apenas desde que Lutero escutava pessoas simples e depois traduziu a Bíblia na linguagem delas.

Contudo, temos realmente garantias de uma compreensão correta? “A verdade”, todavia, existe? Ou está tudo sendo dissolvido num relativismo sem forma?

Compreensivelmente, o amor da Reforma pela linguagem (a Palavra, viva vox evangelii) e pela educação também resultaram numa reconsideração do conceito de compreensão e da própria linguagem. É por isso é que a visão cristã da responsabilidade pelo mundo inclui considerar a teoria e a prática da interpretação e da compreensão, o que é chamado pelos peritos de hermenêutica. É, simplesmente, o que faz do vício da desconfiança uma virtude: a hermenêutica leva a sério todas as questões críticas da compreensão e da interpretação. É o caminho construtivo de lidar com a desconfiança e a suspeita que talvez nunca consigamos entender tudo direitinho.

Evidentemente, refletir sobre a linguagem é central para a hermenêutica. É alentador que também cientistas têm refletido, precisamente, sobre o papel da linguagem. Algo que o grande filósofo do iluminismo (protestante), Emanuel Kant, amplamente ignorou, foi discutido conscientemente pelos pioneiros da teoria quântica: em particular, que não são apenas nossas percepções de tempo e espaço que moldam nossa visão da realidade, mas que a linguagem também tem um papel fundamental. Tanto Niels Bohr quanto Werner Heisenberg examinaram a relação entre linguagem e realidade.

Em “A Parte e o Todo” (Der Teil und das Ganze), “um tipo de memórias sob forma de diálogos platônicos”7, Heisenberg relata discussões sobre a linguagem que manteve, principalmente com Bohr, numa cabana nas montanhas durante a páscoa de 1933. As reflexões deles estão centradas nas limitações da linguagem que não podem ser evitadas nem mesmo nas ciências da natureza. “A linguagem é, por assim dizer, uma rede estendida entre as pessoas, uma rede na qual nossos pensamentos e nosso conhecimento estão intrinsecamente imbricados”, afirma Bohr.8 Precisamente porque estamos presos nesta rede, não é nada surpreendente que os conceitos utilizados para descrever a teoria quântica são exatamente os mesmos que aqueles utilizados na física clássica – embora os dois mundos são radicalmente diferentes. A tentativa de escapar deste “caráter estranho, fluido”9 da linguagem por meio de meios de expressão estritamente matemáticos não encontraram sucesso afinal. Mesmo sendo uma ferramenta imperfeita, a linguagem permanece sendo pré-requisito para a ciência. Como afirmam Bohr e Heisenberg, “pois, se quisermos falar qualquer coisa sobre a natureza – e o que mais a ciência procura fazer? – temos que, de alguma forma, passar da linguagem matemática para a linguagem cotidiana. É desta última, afinal das contas, que trata a ciência.”10 Pouco  preciso, mas brilhante: é este, em suma, o conteúdo do entendimento que Bohr tinha enquanto lavava a louça nas condições bastante primitivas da cabana alpina. Acho que Heisenberg formulou bem da seguinte forma:

''Lavar louça é, exatamente, como a linguagem. Temos água suja e toalhas sujas, e ainda assim conseguimos deixar os pratos e os copos limpos finalmente. É semelhante com a linguagem, temos conceitos vagos e uma lógica que é restrita, de forma desconhecida, em suas áreas de aplicação, e mesmo assim conseguimos produzir clareza em nossa compreensão da natureza.'' 11

A realidade é igualmente pouco nítida, e ainda assim conseguimos descrevê-la. Conscientes que tanto a nossa existência quanto a nossa linguagem são pouco nítidas, pode não ser possível vivermos com exatidão, mas podemos viver suficientemente bem. Não podemos falar de um conhecimento estabelecido sem examinar a importância da cultura em geral e a influência de etnicidade, idade, gênero e, em especial, poder político e econômico sobre o nascimento de ideias importantes. Quem está financiando o quê, e porquê? As perguntas de quem estão no topo da agenda? As perguntas de quem nem sequer chegam a ser mencionadas? Tendo em vista tais perguntas temos que, cada vez mais, desenvolver a habilidade de posicionar nosso próprio conhecimento e nossos entendimentos num mapa global e relacionar a perspectiva global aos nossos contextos locais.

Uma reflexão como essa não garante, necessariamente, a tranquila satisfação de clareza serena; o caminho hermenêutico não nos leva ao topo da montanha onde estamos sendo transfigurados. Antes, estamos sendo forçadas para o meio do que a teóloga Rita Nakashima Brock chama de “vida no bagunçado meio das coisas”.12 E mesmo que este não seja o lugar mais atraente que almejamos, é o mais autêntico que posso imaginar – especialmente para uma igreja que proclama que, em Jesus Cristo, Deus, o criador e o mantenedor do universo, se tornou carne no bagunçado meio da história do mundo.

A forma mais elevada de compreensão é do tipo que, até onde for possível, se dá conta de sua própria perspectiva e pode refletir sobre tal perspectiva. Friedrich Nietzsche disse certa vez de forma bastante forte quando deliberou sobre as possibilidades e limitações do olho:

''De agora em diante, senhores filósofos, guardemo-nos bem contra a antiga, perigosa fábula conceitual que estabelece um ‘puro sujeito do conhecimento, isento de vontade, alheio à dor e ao tempo’, guardemo-nos dos tentáculos de conceitos contraditórios como ‘razão pura’, ‘espiritualidade absoluta’, ‘conhecimento em si’; — tudo isso pede que se imagine um olho que não pode absolutamente ser imaginado, um olho voltado para nenhuma direção, no qual as forças ativas e interpretativas, as que fazem com que ver seja ver-algo, devem estar imobilizadas, ausentes; exige-se do olho, portanto, algo absurdo e sem sentido. Existe apenas uma visão perspectiva, apenas um ‘conhecer’ perspectivo; e quanto mais afetos permitirmos falar sobre uma coisa, quanto mais olhos, diferentes olhos, soubermos utilizar para essa coisa, tanto mais completo será nosso ‘conceito’ dela, nossa ‘objetividade’. ‘Mas eliminar a vontade inteiramente, suspender os afetos todos sem exceção, supondo que o conseguíssemos: como? — não seria castrar o intelecto? (GM III 12)...''  13

Com este pleito apaixonado por uma multiplicidade de perspectivas e – como poderíamos dizer hoje: por empatia – Nietzsche, sem dúvida, estava à frente do seu tempo. Afinal, ele escreveu estas palavras antes da idade de ouro do positivismo. Em suas ideias vejo o pré-requisito pela via média pela qual sempre temos que navegar quando se trata de compreender, especialmente aquele que nos preserva de cair na vala de relativismo sem limites, mas não nos leva para os becos sem saída das aspirações totalitárias de uma aderência rígida a princípios. Compreensão responsável não consiste tanto em manter princípios perpétuos, mas, antes, se configura numa perpétua crítica de princípios – uma crítica que previne princípios de petrificar-se num dogma. Estou convencido que tão somente navegando esta via média podemos formular e viver de acordo com uma ética adequada para o nosso tempo. Em 2016, o termo “pós-verdade” foi nomeado a palavra do ano pelo Oxford Dictionaries.14 A atualidade do termo certamente não diminuiu desde lá. Assim, encontrar esta via média se tornou até mais urgente.

A autocrítica do sujeito que percebe e o pleito por uma multiplicidade de perspectivas, como Nietzsche colocou, são, sempre, preferíveis à pretensão de que a clareza de compreensão seria a coisa mais natural do mundo. Talvez Nietzsche foi sábio em dizer que a crítica correta do saber pode levar a uma cultura da sabedoria. De acordo com ele, a característica da sabedoria é que

''... defronta com olhar imóvel o quadro total do Universo, procurando compreender neste o sofrimento eterno com simpatizante sentimento de amor, como sendo o sofrimento próprio.''  15

Em outras palavras, a sabedoria pode ser encontrada onde conhecimento se junta à empatia. Compreensão pode, assim, ser interpretada como educação do coração.

Também a pergunta por Deus pode ser novamente levantada aqui – de outra forma. Passaram-se os tempos nos quais você podia afirmar, sem medo de contraditório, que onde entra o pensamento moderno, Deus automaticamente sai. As teorias da secularização do século XX tem sido desmentidas.

Ao mesmo tempo, a ciência e as humanidades têm, novamente, sido aproximadas de certa forma. Uma via média é possível aqui também – na consciência de que, apesar da complexidade e diversidade das perspectivas tornarem qualquer exatidão impossível, isto não pode ser utilizado como escusa para um desleixo intelectual. A perspectiva da via média nos previne da idolatria, da demonização e da trivialização de outros, qualquer que seja o caso. A vontade de responder ao chamado de outros fomenta em nós a esperança.   

5. Esperança

O mundo pode aparentar estar bêbado, porque numa demasiada multidão de países, pessoas estão apreciando um coquetel feito de cinco ingredientes perigosos, cinco “p’s” venenosos: polarização, populismo, protecionismo, pós-verdade e patriarcado. Este veneno afeta a igreja e o mundo de igual forma. A polarização despedaça quem deveria pertencer junto e trabalhar junto. O populismo coloca o povo e as chamadas elites um contra o outro. O protecionismo coloca o próprio país, o próprio povo e os próprios interesses em primeiro lugar, às custas do bem comum. A pós-verdade é o desprezo da verdade que desfigura a tríade vital do verdadeiro, do bom e do belo, sem a qual não podemos viver. O patriarcado continua privando o mundo do florescimento pleno de mulheres e crianças, e, no final, desumaniza tanto mulheres quanto homens. Em seus caminhos bem particulares, estes cinco “p’s” são a expressão de uma falta de esperança.

Após anos, de fato décadas, de estabilidade relativa, descobrimos que os valores fundamentais necessários para uma sociedade democrática não são tão auto-evidentes como talvez tenhamos acreditado. Altos padrões de vida e um sistema escolar funcional não garantem, necessariamente, adultos democráticos, responsáveis, de mente aberta e cooperativos. A democracia não é um sistema que se sustenta por si mesmo, mas depende fundamentalmente de ser constantemente alimentado com valores, e alguns destes valores sempre terão raízes religiosas.

Os maiores desafios que a humanidade enfrenta clamam por soluções que exigem a cooperação de todas as forças que são uma expressão da dignidade humana. A questão da mudança climática é um claro exemplo: somente se a política, a ciência, a tecnologia, as empresas, a cultura e as comunidades religiosas trabalham em conjunto haverá esperança merecedora deste nome. Questões relativas ao destino sempre têm uma dimensão espiritual também, e negligenciar isto é nocivo não apenas para indivíduos, mas também para a comunidade como um todo.

Em sociedades crescentemente seculares, analfabetismo religioso, fundamentalismos dos mais variados tipos e medo do contato com a fé podem tornar-se problemas. Ao mesmo tempo, o desejo pela salvação e a necessidade existencial e espiritual não podem ser deixados fora da equação; simplesmente ressurgirão sob outras roupagens. Isto pode levar ao querer tirar proveito, mesmo com uma má religião, e pode resultar em extremismo e violência. Alternativamente, pode forçar pessoas a uma tentativa desesperada de projetos de auto-redenção e auto-melhoramento que contradizem os entendimentos-chave da teologia luterana – de repente, a salvação pode, novamente, ser comprada por dinheiro. O tesouro do Evangelho – liberado pela graça para uma vida cheia de amor – é, novamente, perdido; talvez não no campo (Mateus 13.44), mas no meio do alarido do comércio.

Hoje, em cada vez mais situações e relacionamentos, estamos sendo tratados como clientes. O site de uma pequena cidade sueca se refere aos seus habitantes como “nossos clientes”. Em minha própria igreja, nossos, todavia, bastante altos níveis de riqueza têm trazido a profissionalização da vida comunitária. Poderíamos facilmente ser conduzidos à impressão que a igreja consiste de empregados que propiciam experiências e serviços religiosos para seus membros. Membros da comunidade se tornam clientes, e a comunidade se torna algo amplamente girando ao redor de si mesma.

Uma igreja deste tipo não pode servir como fonte de esperança. Se enxergarmos a nós mesmos apenas como clientes e não como pessoas cidadãs, a esperança chegará em segundo lugar, bem longe do pódio. Precisamos de boa teologia, uma teologia que conscientemente executa suas importantes tarefas públicas de analisar o mundo presente e educar as pessoas.

Isto inclui uma re-atualização do significado do batismo. Acima de tudo, o batismo é uma dádiva – uma dádiva de valor duradouro. Podemos começar a duvidar da nossa fé; podemos até perdê-la por inteiro. Mas o batismo nunca pode ser perdido: uma vez batizada, a pessoa sempre será batizada. A relação com Deus não depende de como você se sente num determinado dia: é indestrutível. Você tem uma cidadania irrevogável no Reino de Deus. É essa a dádiva. Mas o batismo é também uma tarefa que outorga significado. É um chamado constante a executar obras de amor: para Deus, para seu próximo, para a criação, para si mesmo. Sem o batismo, a ideia do sacerdócio de todas as pessoas crentes seria inconcebível. Sem este sacerdócio, a responsabilidade cristã pelo mundo permaneceria uma frase vazia; e sem responsabilidade pelo mundo podemos enxergar apenas com dificuldade que cristãos, cristãs e a igreja são, de fato, seguidores de Cristo e, portanto, pessoas portadoras de esperança.

A igreja, as pessoas cristãs – tem peso como fonte da esperança? E esta importância seria limitada a assuntos privados ou pode influenciar a vida pública também?

A relevância da mensagem cristã é provada sempre de novo pelo fato que a igreja é capaz de escutar, observar e analisar, de desenvolver, fundamentar e ponderar criticamente considerações – e depois contribuir com seus próprios entendimentos, entendimentos informados por seus dois mil anos de experiências. Sempre de novo é a disposição para amar nossos co-seres humanos que torna os tesouros teológicos públicos. E, sempre de novo, são os desafios de qualquer era que acordam a crença e vida cristãs da inércia e leviandade.

A questão da esperança é central. Como já foi claramente afirmado na primeira carta de Pedro: “Estejam sempre preparados para responder a todos os que vos interrogarem acerca da esperança que têm” (1 Pedro 3.15). A questão da esperança é central nos dias de hoje. Penso que a esperança consiste em pelo menos três componentes: raiva (sobre aquilo que conduz à morte em vez de afirmar a vida), coragem e humildade. Faremos esforços para formular e incorporar uma teologia da esperança para nosso tempo.

Com uma teologia adequada da esperança, há uma razão para esperar mudança. Pensemos na narrativa da mulher cananeia, em Mateus 15.21-28. Ela pede a Jesus ajuda para sua filha doente e ele a rejeita duas vezes, até mesmo comparando-a a um cachorro que não é digno de receber ajuda – mas ela persistiu e conseguiu que Jesus mudasse sua posição. Isto mudou seu sentido de missão e, portanto, a missão da igreja como um todo. Se uma mulher pode mudar a posição de Jesus, então a mudança de posições humanas certamente está ao alcance. Mudança de posição é possível, tanto quanto se trata de nós mesmos quanto de outras pessoas.

Com uma teologia da esperança seremos capazes de contrariar narrativas de ódio e de medo com narrativas de amor e de esperança. Se escutamos com cuidado a voz da esperança, vamos ouvi-la sempre de novo: “Agora faço tudo novo” (Apocalipse 21.5) – também por meio de nós, e certamente mesmo apesar de nós. Deus faz coisas novas e transforma as coisas. A mudança é possível.  

Deixem-me finalizar. A ideia de “A igreja no espaço público: igrejas luteranas assumindo responsabilidade pelo mundo hoje” é profundamente arraigada no Evangelho e na tradição da igreja, não por último na teologia conforme foi moldada na tradição da Reforma. Esta herança e vocação nos inspira para trabalhar para educação ampla, liberdade autêntica, medo adequado, uma boa compreensão e esperança corajosa – em breve: um profundo sentido de responsabilidade pelo mundo. Para pessoas cristãs, o motivo da responsabilidade pelo mundo é simples, mas poderoso. Martim Lutero bem o resumiu ao escrever: “Então o mundo está cheio de Deus. Em todos os becos, na sua porta, você encontra Cristo. Não olhe para o céu.”16
(Tradução: Rudolf von Sinner; revisão técnica: Jefferson Zeferino)

Notas Bibliográficas:

1 LUTERO, Martinho. Tratado de Martinho Lutero sobre a Liberdade Cristã. Obras Selecionadas vol. 2. 2. ed. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 2000. p. 435-460. p. 437.

2 Cometemos um erro categórico quando interpretamos o ensino de Lutero sobre os dois reinos como metáfora espacial. Não são dois âmbitos não relacionados, mas, antes, duas estratégias relacionadas. Nessan menciona que “’estratégia’ é uma tradução construtiva e dinâmica da palavra alemã Regiment como o termo inglês ‘regimen’ sugere uma estratégia”, NESSAN, Craig L. Reapproapriating Luther’s Two Kingdoms. Lutheran Quarterly, vol xix, p. 306, 2005.

3 Westhelle nota que a “doutrina” dos dois reinos é uma construção do século XX, originalmente cunhado por Franz Lau, em 1933. WESTHELLE, Vítor. God and Justice: The Word and the Mask. Journal of Lutheran Ethics, vol. 3, n. 1, p. 2, 2003.

4 WESTHELLE, Vítor. The Word and the Mask: Revisiting the Two-Kingdoms Doctrine. In: GREGERSEN, Niels Henrik et al. (Orgs.). The Gift of Grace: The Future of Lutheran Theology. Minneapolis: Fortress Press. 2005. p. 167-178.

5 WESTHELLE, 2003, p. 8. 

6 IECLB. Livro de Canto da IECLB. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre; IECLB, 2017. Nº 481. 

7 WEIZSÄCKER, Carl Friedrich von. Notizen über die philosophische Bedeutung der Heisenbergschen Physik. In: DÜRR, H.P. (Org.). Quanten und Felder. Braunschweig, 1971. p. 11.

8 HEISENBERG, Werner. Der Teil und das Ganze. 10. ed. München, 1987. p. 165. Versão inglesa: Physics and Beyond: Encounters and Conversations. Translated by Arniold J. Pomerans. New York: Harper & Row, 1971. p. 138.

9 HEISENBERG, 1987, p. 161; versão inglesa: p. 134.

10 HEISENBERG, 1987, p. 162; versão inglesa: p. 135. 

11 HEISENBERG, 1987, p. 163s. Para Bohr, no entanto, clareza na compreensão da natureza não significava desvendar a essência real dos fenômenos, mas simplesmente, até onde for possível, perseguir relações dentro da diversidade da nossa experiência (“men kun om i størst muligt omfang at efterspore sammenhæng i vore erfaringers mangfoldighed”); BOHR, Niels. Atomteori og naturbeskrivelse. Copenhagen 1958, p. 21.

12 BROCK, Rita Nakashima. Losing Your Innocence But Not Your Hope. In: STEVENS, Maryanne (Org.). Reconstruindo o símbolo de Cristo. New York: Mahwah 1993. p. 47. 

13 NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. Um escrito polêmico. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia de Bolso, 2010.

14 https://www.theguardian.com/books/2016/nov/15/post-truth-named-word-of-the-year-by-oxforddictionaries, acesso em 5 dez. 2016.

15 NIETZSCHE, Friedrich. Geburt der Tragödie, 18. KSA, Vol. 1, p. 118, 1980, tradução conforme NIETZSCHE, Friedrich. A origem da tragédia proveniente do espírito da música. Trad. e notas Erwin Theodor. Ebooks Brasil, 2006, disponível em http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/tragedia.html, acesso em 13 out. 2019. 

 16 „Also ist die Welt vol von Gott. In allen gassen, vor deiner thür findest du Christum. Gaff nicht ynn himel.“ WA 20:514, 27 et seq.


Observação: A palestra publicada tem um caráter interno. Não é permitido o seu uso em citações de trabalhos acadêmicos.


 
 
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