Estimada comunidade,
Nas palavras de Jesus que ouvimos hoje nos deparamos com uma imagem bastante comum para sua época: o pastor de ovelhas cuidando do rebanho. Jesus usava imagens conhecidas pelo povo para ensinar e anunciar o Reino de Deus. O pastor das ovelhas era uma profissão que já existia a muito séculos na terra de Jesus e ainda nos dias de hoje quem visita Israel pode ver o pastor e suas ovelhas. O Antigo Testamento também faz uso desta imagem. As autoridades políticas como o rei ou as autoridades religiosas como os sacerdotes no templo eram comparadas ao pastor. Assim como o pastor cuidava das ovelhas, o rei ou os sacerdotes cuidavam do povo. E certamente entre nós, a figura do pastor de ovelhas mais conhecida é aquela do Salmo 23. O próprio Deus é o pastor que conduz o rebanho entre perigos e ameaças rumo aos pastos verdejantes e águas tranquilas.
Então Jesus está usando uma imagem conhecida: o pastor que entra no curral de ovelhas pela porta. O porteiro lhe abre o caminho para que o pastor possa chamar suas ovelhas. As ovelhas ouvem e reconhecem a voz do seu pastor, que as conduz para fora. As ovelhas seguem o seu pastor. Imagem tão bonita, tão campestre, tão confortante.
Mas o texto bíblico diz que a reação das pessoas foi de incompreensão. O versículo 6 diz, “Jesus fez esta comparação, mas ninguém entendeu o que ele queria dizer”. Como assim, as pessoas não compreenderam o que Jesus estava dizendo? E Jesus então continuo falando, dizendo “Eu afirmo a vocês que isto é verdade: eu sou a porta por onde as ovelhas passam . . . quem entrar por mim será salvo; poderá entrar e sair e achará comida. O ladrão só vem para roubar, matar e destruir; mas eu vim para que as ovelhas tenham vida, a vida completa”. Parece me que desta vez as pessoas enxergaram o que Jesus estava dizendo porque houve reações. As pessoas reagiram às palavras de Jesus. O texto bíblico inclusive relata que as reações às palavras de Jesus foram bastante fortes pois logo mais adiante está escrito (versículos 19,20,21), “Quando ouviu isso, o povo se dividiu outra vez. Muitos diziam, ‘Ele (Jesus) está dominado por um demônio! Está louco! Por que é que vocês escutam o que ele diz?’. Outros afirmavam, ‘Quem está dominado por um demônio não fala assim!’.
Ou seja, apesar desta imagem do pastor de ovelhas ser uma imagem tão bonita e campestre, esta imagem na boca de Jesus gera divisão, gera tensão, gera conflito. O que está acontecendo aqui? Qual o motivo para esta reação entre as pessoas?
Para entender precisamos observar que no evangelho em João, um evangelho cheio de simbolismos, Jesus muitas vezes vai falar de si mesmo usando comparações: “Eu sou a luz do mundo, Eu sou o pão da vida, Eu sou a videira verdadeira, eu sou o caminho, a verdade e a vida, etc., etc.”. Portanto, a comparação que Jesus faz de si mesmo como pastor de ovelhas ou como a porta pela qual as ovelhas entram e saem é mais uma comparação entre outras comparações que encontramos neste evangelho. Nestas comparações Jesus está falando de sua identidade e sua missão. E as pessoas estão reagindo.
Poderíamos meditar na imagem do pastor, do bom pastor que conduz as suas ovelhas, mas hoje chamo você para pensarmos juntos sobre esta imagem da porta. Jesus diz, “Eu sou a porta das ovelhas. Quem entrar por mim será salvo; poderá entrar e sair e achará comida”. Jesus se compara com a porta das ovelhas. Num outro momento no evangelho em João existe uma referência à porta das ovelhas. Isto está em João 5. Aquela história do homem paralítico que ficava à beira de um tanque de água aguardando a cura para sua doença. Um detalhe na história diz que o tanque de água ficava ao lado do Portão das ovelhas em Jerusalém.
Isto mesmo, existia uma porta de ovelhas em Jerusalém. Quem morava em Jerusalém sabia muito bem para que servia este portão – era a porta por onde as ovelhas eram conduzidas para dentro do templo de Jerusalém. As ovelhas que passavam por aquela porta não saíam mais. Entravam para serem degoladas, sacrificadas, e consumidas pelo fogo. Cada ovelha que entrava pela porta para ser sacrificada carregava consigo o nome da pessoa ou da família ofertante. Este era o ritual, o sacrifício prescrito no AT. O templo de Jerusalém era o local dos sacrifícios, o local onde as ovelhas e outros animais entravam e eram sacrificados pelos sacerdotes. Esta era a função do templo no AT e também na época de Jesus.
Jesus, entretanto, está anunciando o fim deste ritual de sacrifícios. Ele é a porta pela qual as ovelhas entram e saem. Em Jesus, as ovelhas que entram não permanecem lá dentro para serem sacrificadas, mas saem para se alimentar do pasto, se alimentar de vida. Esta imagem usada por Jesus, ‘eu sou a porta das ovelhas’ é uma crítica ao templo de Jerusalém e seus rituais de sacrifício.
Esta não é a primeira vez no evangelho em João que Jesus critica o templo. Quem conhece este evangelho sabe que logo no início do evangelho, Jesus entrou no templo e causou um tumulto, expulsando os comerciantes encarregados de negociar as ovelhas para serem ofertadas em sacrifício. Jesus naquela ocasião chegou a prever a destruição do templo (Jo 2.19). Noutra ocasião, quando a mulher Samaritana argumentava com Jesus se o verdadeiro templo de Deus estava em Jerusalém ou noutro lugar, Jesus lhe disse, “chegará o tempo em que ninguém vai adorar a Deus nem neste monte nem em Jerusalém . . . mas virá o tempo, e, de fato, já chegou, em que os verdadeiros adoradores vão adorar o Pai em espírito e em verdade” (Jo 4.23). E quase no final do evangelho em João, por ocasião da ceia da Páscoa, Jesus resgata o verdadeiro sentido do sacrifício, que é o serviço ao próximo. Durante a ceia, Jesus se levanta e lava os pés de seus discípulos e lhes dá o mandamento do amor: o amor que se traduz no serviço ao próximo (Jo 13).
Jesus faz parte de uma tradição dos profetas do AT crítica do templo, crítica de uma espiritualidade vazia, crítica de um ritual religioso que não caminha ao lado do próximo, em justiça e solidariedade. Só para citar alguns destes profetas, eis suas palavras: “O que eu exijo de vocês é claro como a luz do sol. Eu quero que vocês me amem e não que me ofereçam sacrifícios; em vez de me trazer ofertas queimadas, eu prefiro que o meu povo me obedeça” (Os 6.6). “Eu odeio, eu detesto as suas festas religiosas; não tolero as suas reuniões solenes. Não aceito animais que são queimados em sacrifício . . . em vez disso, quero que haja tanta justiça como as águas de uma enchente e que a honestidade seja como um rio que não para de corre” (Am 5.21-24).
Será que agora estamos enxergando o que Jesus quer dizer para nós, “eu sou a porta das ovelhas”? Será que estamos compreendendo suas palavras, “o ladrão só vem para roubar, matar e destruir; mas eu vim para que as ovelhas tenham vida, a vida completa”? Para Jesus a fé verdadeira não é aquela que rouba a dignidade do próximo, usando os lábios para louvar a Deus e, ao mesmo tempo, falando maldades sobre outra pessoa. A fé verdadeira não é aquela que contribui fielmente na igreja, mas mata o próximo ao tirar de forma desonesta os recursos necessários para a sua vida. A fé verdadeira não é aquela que busca proteção e amparo de Deus dentro do templo, mas que do lado de fora destrói os laços de solidariedade e serviço que Jesus nos chama para praticar.
Será que estamos enxergando o que esta palavra de Jesus significa para nós hoje? Independente se atualmente os templos estão vazios por causa do covid-19 ou se os templos estão cheios quando retornarmos à convivência em comunidade, o que faz a diferença não é estar dentro ou fora do templo. O que faz a diferença é ouvir a voz do bom pastor e obedecer seu chamado. A fé verdadeira é aquela pessoa e comunidade que ouve a voz do bom pastor e que está atenta aos seus ensinos. A fé verdadeira confia em Jesus como caminho da reconciliação que aproxima pessoas, caminho da justiça que valoriza a vida de todos as pessoas e caminho do serviço ao próximo dentro e fora do templo. A fé verdadeira é solidária, disposta a compartilhar a vida, compartilhar a vida completa com as pessoas ao seu redor. Jesus o bom pastor nos chama para entrar e sair pela porta. Vamos ouvir sua voz e segui-lo? Amém.