Os Dez Mandamentos - O Nono e o Décimo Mandamento

Auxílio Homilético

10/03/1982

Não cobiçarás a casa do teu próximo. Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu empregado, nem a sua empregada, nem o seu gado, nem coisa alguma que lhe pertença

Erhard Gerstenberger

I – Meditação

1.Que é um mandamento sob o ponto de vista histórico e sociológico? É uma regra básica de comportamento humano sancionada pelo costume e, via de regra, pela religião (cf. Gerstenberger, Wesen). Qualquer grupo humano desenvolve, aos poucos, uma ordem de convivência. Um catálogo de mandamentos, sobretudo proibições, protege essa ordem. Advertida pelos pais e por outros adultos, já a criança aprende o que não se pode fazer dentro do grupo. Tal aprendizagem chamamos de socialização. Isto é, eu tenho que me adaptar às regras vigentes no grupo social com o qual quero viver. Geralmente as regras básicas são bem evidentes aos membros do grupo. Não precisam de qualquer codificação. São ensinadas e lembradas oportunamente de modo oral. Aquele marido que colocou na parede uma lista dos deveres da sua mulher se tornou ridículo. As normas principais da convivência são tão óbvias que Wickler as considera inerentes à própria vida, seja animal, seja humana.

Por que o Antigo Testamento apresenta os Dez Mandamentos através de uma revelação divina no monte Sinai? As regras fundamentais de comportamento protegem a vida do indivíduo dentro de seu grupo social. Garantem a sobrevivência. Deus é o Criador da vida. Ele tem um interesse vivo na preservação da vida. Teologicamente, portanto, os israelitas (e todos os demais povos primitivos) tinham toda a razão em afirmar que as normas de vida eram inspiradas e dadas pelo próprio Deus. Assim, nós encontramos no Antigo Testamento várias coleções desses preceitos éticos elementares: Êx 20.1-17; 22.27-29; 23.1-3, 6-9; 34.17-26; Lv 18.6-18; 19.3-4,11-18,26-36; Dt 22.5,9-11; 24.6,17; 27.15-26; 1 Sm 12.3; Os 4.2; Jr 7.5; Ez 18.5-9; SI 15.2-5; 50.16-20; Jó 31.1-34, etc. Todas elas são enquadradas num contexto teológico, ou seja, são sancionadas por Deus. Vale, portanto, o que Lutero diz na sua avaliação linal do Decálogo: O primeiro mandamento... resplandecerá sobre todos os outros, iluminando-os (Catecismo Maior, p. 105).

2. O Decálogo é uma compilação relativamente tardia de normas éticas. Uma análise profunda mostra os seus estágios de crescimento (Alt, p. 316ss; Gerstenberger, Bíblia, pp. 59ss). O mandamento Não cobiçarás ... fecha esse catálogo. É um único mandamento. Lutero, com razão, junta o seu nono e décimo preceito no Catecismo Maior. O objeto da cobiça é a casa, com tudo que nela se encontra: mulher, escravos, animais. Mas a mulher e a propriedade do próximo já não estão protegidas no Sexto e Sétimo Mandamentos? Por que essa repetição? Temos que considerar o complicado processo da origem do Decálogo. O copilador final recolheu pequenos catálogos de preceitos fundamentais já fixados para chegar a uma lista abrangente. Visivelmente, o Quinto ao Sétimo Mandamentos formam uma listagem original. Veja só a formulação compacta. Igualmente o Terceiro e Quatro (cf. Lv 19.3) e, respectivamente, o Oitavo e Nono (sempre contagem do Catecismo Menor) Mandamentos eram uma unidade pré-formulada. Esta última menciona duas vezes explicitamente o próximo, isto é, o membro do próprio grupo de convivência. O Décimo Mandamento, por sua vez, é nada mais do que uma elaboração do termo casa. Assim, pelo menos, conforme Êx 20.17, enquanto que Dt 5.21 distribui as propriedades do homem livre de maneira diferente. Em si, então, o Nono Mandamento correspondeu exatamente ao Sétimo. Será que o copiia-dor não percebeu isto? Provavelmente já foi ele que viu uma diferença entre os dois preceitos. Não furtarás para ele foi uma interdição do roubo comum, de objetos de valor. Não cobiçarás a casa do teu próximo, por outro lado, visava proteger os bens básicos de sustento ou, como hoje iríamos dizer, os meios de produção. Dt 5.21 significativamente acrescenta a terra do próximo. Ao que tudo indica, tal proteção do pequeno agricultor, de sua moradia, suas terras, seu pessoal de trabalho, era necessária numa época em que os grandes latifundiários aumentavam o seu domínio sobre a terra (cf. Am 2.6-8; Is 5.8; Jr 5.26-29; Ne 5.1-5; Gerstenberger, Terra).

3. A interpretação do Novo/Décimo Mandamento tem que partir das suas características próprias, levando em consideração a história da exegese, especialmente a opinião de M. Lutero. Que significa, então, cobiçar (em hebraico: HAMAD)? Os cristãos, desde o início, seguindo uma tradição judaica-helenista, colocaram muita ênfase nas conotações emocionais e individuais do verbo. O desejar em si, como sentimento ainda não articulado, já era considerado um pecado (cf. Mt 5.28 e a discussão em torno da concupiscência na Igreja Católica). A transgressão ocorre, conforme essa visão, no coração do homem. Herrmann comprovou, no entanto, que o sentido original do verbo cobiçar sempre inclui a execução do desejo egoísta. Toda a discussão teológica em torno da ética da consciência (Gesinnungsethik), de fato, não se pode basear no nosso mandamento (cf. Childs, pp. 425-428). Interessantemente, Lutero, no seu Catecismo Maior, não cai no psicologismo e individualismo da tradição cristã, mas concorda com a exegese moderna. Vê ele uma finalidade divina muito especial na proibição adicional ao Sétimo Mandamento, da avidez. A massa está compreendida no sétimo mandamento, agora Deus visa os senhores, nobres e príncipes (Catecismo Maior, p. 95) que enganam e desapropriam os outros sob pretextos legais. Sim, eles querem preservar uma boa aparência na sociedade e, por isso, empregam jurisconsultos e magistrados, aplicando e acomodando a lei aos fins que perseguem (Catecismo Maior, p. 95). Assim, eles brigam por grandes heranças ou pela posse de cidades e regiões e utilizam todos os truques possíveis em seus negócios para acumularem riquezas e posições (Catecismo, pp. 96s). Enfim, Lutero percebe muito bem a dimensão exploradora na atuação dos cobiçosos. Ele reconhece o sentido original do mandamento e consegue projetá-lo para dentro de sua própria realidade burguesa.

4. Infelizmente, Lutero não continua nessa linha de análise, quando trata da propriedade particular. Dá a impressão, em ambos os Catecismos, de que os bens, uma vez adquiridos, são intocáveis. Merecem, conforme ele, a proteção incondicional de Deus. Mas se o próximo se tiver enriquecido pela exploração brutal de outros, ainda vale a exortação do Catecismo, de servi-lo para conservar os seus bens e de aconselhar os seus empregados para que fiquem e cumprem o seu dever? Se Lutero reconheceu claramente que a ganância burguesa, muitas vezes disfarçada, era a força motivadora da sua época, por que ele não criticou as propriedades acumuladas dos gananciosos? De fato, as exortações positivas do Catecismo Menor, na tradição luterana, foram usadas unilateralmente para incutir no povo o respeito à propriedade. A própria Bíblia não fala assim. Os profetas condenaram veementemente a ganância dos ricos (cf. as passagens no fim da parte 2. e Am 5.11-12; Is 10.1-4; 58.1-12; Jr 22.13-17). E os Salmos abertamente incitam à subversão (cf. 1 Sm 2.4-8; SI 10.2-15; 12.6; 37.16-20; 68.6-7, 69.33-34).

5. Convém, agora, avaliar o mandamento à luz da nossa realidade (cf. também Gerstenberger, Bíblia). Nota-se um traço comum em toda a história humana: Os sistemas secundários da organização social - classes, nações, corporações, Igrejas — sempre são altamente opressores. O feudalismo da monarquia israelita, a burguesia urbana da época de Lutero, o complexo econômico-militar (expressão do general D. Eisenhower, que, ao deixar o cargo de presidente dos EUA, advertiu contra o poder desse complexo), as multinacionais ou o trilateralismo do nosso tempo, todos eles criaram e criam os seus marginalizados. Hoje a situação mundial é muito mais grave do que no passado. Um sinal alarmante, notavelmente na América Latina, é o deslocamento e empobrecimento nas últimas décadas, de milhões de pequenos proprietários. Apenas no Rio Grande do Sul, conforme o censo oficial, quase 40.000 agricultores perderam as suas terras. A migração Interna è um problema enorme no Brasil: Milhares são forçados a deixar os seus lugares. Dirigem-se para as favelas urbanas ou para as novas áreas de colonização, dentro do Brasil, ou ainda para outros países. O Paraguai já recebeu mais de 500.000 brasileiros. As reservas indígenas estão sendo invadidas, exploradas, desmaiadas, diminuídas. Poderíamos continuar relacionando grupos de fracos da nossa sociedade, como os trabalhadores nas indústrias, mulheres, crianças, idosos, excepcionais. Em todos os cantos a mão dos poderosos pesa sobre os humildes. ... cada qual procura se apropriar de quanto pode sem se preocupar com a sorte dos demais. Ao mesmo tempo, pretende-se ser muito piedoso e se consegue disfarçar a maldade e esconder a intenção perversa; inventam-se subterfúgios e manhas astutas (hoje muito em voga) fundadas, ao que parece, na lei, e apoiando-se e aferrando-se a esta sem querer confessar que se age por pura malícia ... (Catecismo Maior, pp. 94s).

O reformador tem razão: Atrás do comportamento discreto das elites está exatamente o cobiçar a casa do próximo, tão claramente proibido no Decálogo. Nem precisariamos acrescentar todos os escândalos, fraudes, sonegações que acontecem, ano após ano, em grandes empresas, bancos e administração, e que fazem com que ricos e dominantes aumentem o seu património cada vez mais rapidamente. Podemos resumir, dizendo que cobiçar as propriedades do próximo faz parte da filosofia e da realidade da vida capitalista. O nosso sistema polltico-econômico exige que cada um lute contra todo mundo para ganhar o máximo possível para si mesmo, às custas dos mais fracos da sociedade. Daí concluímos que não existe riqueza honesta neste mundo. Onde há acumulação de bens, podemos afirmar, com certeza, que houve fraude, corrupção, exploração. A cobiça e o desrespeito à vida do próximo fizeram crescer as fortunas celebradas em nosso meio.

6. Diante dessa realidade o Nono/Décimo Mandamento se volta unilateralmente contra a elite dominante. Proíbe a exploração do próximo, exige restituição dos bens roubados sob pretextos legais. O mandamento fomenta uma transformação social que impeça essa distribuição escandalosa de rendas e terras. Lembremos que mandamentos são normas sociais que pretendem proteger o indivíduo dentro do grupo. Essas normas querem equilibrar a sociedade, mas não proteger aqueles que a desequilibraram. O nosso mandamento tem hoje, em primeiro lugar, a finalidade de punir os cobiçosos do topo da pirâmide social humana. Em segundo lugar, quer assegurar as mínimas condições de sobrevivência para a grande massa da população, ou seja, moradia, alimentação, família, educação, saúde, paz. É necessário re-formular a explicação do mandamento para a prédica e a catequese:

Devemos temer e amar a Deus e, portanto,
não seguir as diretrizes da nossa sociedade,
de avançar por cima do nosso próximo,
de acumular bens e poderes às suas custas,
e privá-lo do sustento vital; mas devemos ajudar os oprimidos e explorados
a receberem de volta os bens e oportunidades deles roubados,
dando-lhes, assim, a chance de viverem dignamente.

7. A prédica ou catequese, então, deve tornar palpável essa leitura crítica dos Catecismos de Lutero. O melhor seria refletir, junto com a Comunidade, sobre as condições de nossa vida, as leis da nossa sociedade e economia e os procedimentos adotados na acumulação de riquezas. Existe muita literatura neste campo. Os livros indicados de Queiroz e Ribeiro são apenas pequenos exemplos. Recomendo uma abordagem lenta ao assunto, pois as Comunidades, via de regra, não estão acostumadas a pensar em termos realistas e evangélicos. Antes, cultivam o respeito absoluto ao poder e à riqueza, considerados bênção de Deus e não crime contra o próximo. Mas existem, por certo, dúvidas em qualquer Comunidade. Aí se abre uma porta para o diálogo e a reflexão. Será que a cobiça é elemento necessário para a nossa sociedade? Será que existe qualquer comunhão de homens sem competição e ganância? (Ironicamente, faz pouco tempo ouvi falar que algumas tribos africanas processam os seus caciques, caso estes acumulem riquezas maiores. A acusação é de que houve recurso a prática de magia negra para enriquecer-se.)

II - Subsídios litúrgicos

1. Confissão de pecados: Senhor, que está acontecendo em teu mundo? Milhões de pessoas sem condições mínimas de viverem, trabalharem, serem felizes. Crianças famintas. Colonos sem terras. Doentes não atendidos. Desempregados, inválidos, deficientes, índios, empregadas, pretos enganados e explorados. Senhor, será que eu também sou culpado dessa miséria? Eu quero receber um salário justo, mas gosto de pagar à minha empregada o mínimo possível. Fecho os olhos diante da injustiça e a opressão reinantes. Aspiro por uma vida em conforto. Não me preocupo com a sorte dos outros. — Sim, Senhor, no coração e na realidade sou um desses opressores que exploram os seus irmãos. Tem piedade de mim, Senhor!

2. Oração de coleta: Fala-se muito que o nosso culto é ineficaz e estéril. Só traz palavras, não chega a melhorar nada. É verdade, Senhor, nós somos muito lentos. Mas esperamos o teu Espirito. Ele vem nos ressuscitar. O culto de hoie seja como uma boa chuva depois da seca. Como um remédio oportuno para a doença. Como um beijo de namorados, uma canção na tristeza, uma porta aberta numa prisão. Vem, Espirito Santo, Criador e Conselheiro! Amém.

3. Assuntos para a intercessão: Os jornais da semana retrasada deveriam indicar assuntos suficientes. Colonos sem terra acampados na beira da estrada, perto da Fazenda Sarandi. Reserva indígena invadida por companhias ou colonos desesperados. Migrantes não assentados em Rondônia, Mato Grosso, Amazônia. Desempregados da construção civil e da indústria. Além disso, casos concretos que acontecem na própria Comunidade e que chamam a atenção. Uma família que veio do interior em busca de trabalho e sustento. Os marginalizados locais, A situação das empregadas domésticas.

4. Textos para a liturgia:

Intróito: Sl 12.5.
Absolvição: Ez 36. 26-27.
Leitura: Ne 5.1-12.

III – Bibliografia

ALT, A, Die Ursprünge des israelitischen Rechts. In: Kleine Schriften zur Geschictite des Volkes Israel Vol. 1. München, 1953, pp. 278-332.
CHILDS, B.S. The Book o fExodus. Philadelphia, 1974.
GERSTENBERGER, E.S. Wesen und Herkunft des apodiktischen Rechts. Neukirchen-VIuyn, 1965.
GERSTENBERGER, E.S. A terra e sua posse conforme o Antigo Testamento. In: Estudos Teológicos. Ano 16. Caderno 2. São Leopoldo, 1976, pp. 29-44.
GERSTENBERGER, E.S. A Bíblia e o nosso comportamento. In: Estudos Teológicos. Ano 19. Caderno 2. São Leopoldo, 1979, pp. 55-66.
HERRMANN, J. Das zehnte Gebot. In: Sellin-Festschrift. Leipzig, 1927, pp. 69-82.
LUTERO, M. Catecismo Maior. São Paulo, 1965.
LUTERO, M. Catecismo Menor. (s.l., s.d.).
QUEIROZ, J.J. ed. A igreja dos pobres na América Latina. São Paulo, 1980.
RIBEIRO, D. Os índios e a civilização. 3. ed., Petrópolis, 1979.

Proclamar Libertação – Suplemento 1
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia


Autor(a): Erhard Gerstenberger
Âmbito: IECLB
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1982 / Volume: Suplemento 1
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 7287
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Mesmo que não sejamos cristãos tão bons como deveríamos ser, e somos ignorantes e fracos tanto na vida como na fé, Deus ainda assim quer defender a sua Palavra, pela simples razão de ser a sua Palavra.
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