Reflexões para o período de Epifania
Autor: Nestor Paulo Friedrich
Proclamar Libertação - Volume: XXVII
Tema: Epifania
1. Epifania: entre a manjedoura e a cruz!
O calendário eclesiástico começa com o primeiro domingo de Advento, passa pelo Natal e chega no período da Epifania. Logo depois vem o período da Quaresma. Tenho procurado marcar de forma bastante forte cada um desses momentos na caminhada das comunidades. Inclusive retomando e reforçando os assuntos abordados nos cultos. É uma pena que este período importante coincida com o período de férias e diminuição das atividades nas comunidades.
O período da Epifania fica entre o Natal e a Quaresma. As surpresas do Natal continuam. Deus se manifesta. Deus age. Sua ação provoca reações. Derruba muros. A salvação já não é exclusividade do povo escolhido da antiga aliança, mas tem como endereço a humanidade como um todo. A festa do nascimento de Jesus, contudo, já cedo mostra que nem tudo é alegria. Mt 2.1-12 mostra que a procura pelo novo rei por parte dos magos provoca alvoroço no rei Herodes e em toda a cidade. Herodes não admite nenhum rival. Ele convoca uma assembléia das autoridades religiosas para saber com precisão onde o Cristo devia nascer. A estrela guia os magos até o lugar onde Jesus está. Brakemeier chama a atenção para o contraste entre esses dois reis. “Por um lado, temos o recém-nascido em situação modesta, por outro lado, o velho rei em toda a sua pompa e na plenitude do seu poder. Herodes vê em Jesus um rival político. Por isso Jesus sofre perseguição já nos primeiros dias de sua vida”. Igualmente contrastante é a relação entre os magos e os sacerdotes e os escribas. Embora estes últimos soubessem a respeito do nascimento doSalvador, possuíssem o Antigo Testamento, nenhum deles vai para Belém. Pagãos são os primeiros a adorar o novo rei. Para os demais o nascimento do Messias passou despercebido. A história da adoração dos magos antecipa algo daquilo que mais tarde irá se repetir: a perseguição de Jesus por motivos políticos, a rejeição do povo de Israel, a cruz e a adoração dos pagãos, que ao achar o rei dos judeus são tomados de alegria” ( polígrafo p. 15-21).
2. Efésios 3.1-12
Um dos textos previstos para o período de Epifania é Ef 3.1-12. Ele já foi trabalhado duas vezes (PL XVI e PL XIX) . Retomo aqui algumas das idéias destes dois importantes trabalhos, que, na minha leitura, são relevantes. Para Günter Wolff, “a grande notícia do texto é a abertura da Igreja aos gentios. Isto não diz muito para nós hoje, porque não é um conflito que a comunidade vive. O conflito da comunidade é antes o abrir as portas aos marginalizados da sociedade e se engajar na transformação da sociedade como parte integrante da construção do reino de Deus” (p. 88). “A comunidade que não é missionária (voltada para fora) não é comunidade cristã, é um clube religioso auto-suficiente. Como esta comunidade revela às autoridades e aos poderes celestiais o mistério de Deus dada a ela revelar?” (p. 89)
Para Martim Volkmann, importante no texto é a palavra “mistério” (vv. 3,4,9). A “abertura” deste mistério se dá em Jesus Cristo. Qual é este mistério? Ele consiste no fato de que os pagãos, ou seja, os demais povos, além do povo escolhido, se tornam co-participantes das promessas de Deus (v. 6). Todos os povos se tornam herdeiros, conjuntamente com o povo da antiga aliança, da salvação oferecida por Deus. Há, a partir de agora, só um povo de Deus: formado por todas as pessoas que se deixam incorporar nessa nova “economia do mistério de Deus”, independentemente de raça, sexo, origem, nível, etc.” (p. 44-45). Qual é o resultado da revelação deste mistério? “Um mistério não pode ficar oculto. Deve ser revelado. O texto desafia a tornar este mistério conhecido. O processo desta revelação (vv. 7-9) se dá, num primeiro momento, por intermédio do apóstolo Paulo. No v. 10, este mistério dá-se a conhecer através da Igreja. Agora já é a Igreja, como instituição consolidada e depositária da Boa Nova, que detém o monopólio desse mistério.” “Enquanto detentora de um poder – a Boa Nova –, a Igreja enquanto tal se vê confrontada com outros poderes. Aqui retomamos a idéia que gira em torno da Epifania: trata-se da revelação do senhorio absoluto desse Jesus” (p. 45-46).
Qual é a intenção desta carta aos Efésios? Segundo Schrage, Efésios “quer atuar como mediador numa crise eclesial e teológica e com esse propósito medita, antes de tudo, sobre a Igreja” (p. 249). Nesta mesma perspectiva também argumenta Comblin. Efésios “vai fomentar durante muitos anos a devoção dos cristãos à Igreja”(...) “Foi a sua identificação com essa grande Igreja que ajudou os cristãos a desafiar o mundo romano. Identificando-se com ela, não corriam o perigo de ceder aos prestígios do império: resistiam a todas as tentativas de absorção”.
Fundamental para aquele momento histórico era reforçar a Igreja enquanto organização e fechar-se para enfrentar o Império Romano com toda a sua cultura. Para Comblin, “estamos numa fase de consolidação e não de conquista. Os cristãos querem afirmar, antes, do que conquistar o mundo” (p.10-11). A Igreja de Efésios é uma Igreja que precisa sobreviver e manter intacta a herança recebida. Sofre a pressão do contexto do Império Romano. Busca salvaguardar sua identidade, afirmar sua separação do mundo antes de insistir nas suas divisões internas. A luta contra o Império não é luta contra a perseguição, e sim contra a pressão dum mundo decadente (p. 23).
Considerando o que vimos até aqui, podemos dizer que o interesse do autor da carta está na reflexão teológica da organização da vida cristã. A Igreja é um só corpo, no qual age o único Espírito, promovendo a união dos membros; este corpo, com os dons que recebe da cabeça, deve tornar-se cada vez mais o corpo de Cristo (4.3-6). Na parênese que segue na segunda parte da carta aponta-se para o risco de aqueles que professam a fé em Cristo serem “agitados de um lado para outro, e levados ao redor por todo vento de doutrina” (4,14) como os destinatários de Cl (2,8), Hb (13,9) e das cartas pastorais (1Tm 4,1).
3. Epifania: um só rebanho resgatado
Efésios 3.2-12 enfatiza que Deus fez uma opção pela humanidade como um todo. Nesta opção de Deus também nós estamos incluídos. Seu agir é marcado pela graça que não coloca condições. Deus não exige sacrifícios. Por intermédio de Jesus Cristo podemos chegar a Ele. Em uma sociedade excludente, sectarizada, certamente esta mensagem soará estranha. O mistério de Cristo é revelado: todos são alvo da ação salvífica de Deus (v. 6). Essa multiforme sabedoria de Deus, esse mistério deve tornar-se conhecido “aos poderes e domínios em todo o universo, por intermédio da Igreja” (v. 10).
Nosso texto enfatiza a Igreja como portadora desta mensagem, deste mistério de Cristo. O que significa isto? Significa que a Igreja é um espaço especial, privilegiado, de articulação do projeto de Deus que nem sempre combina com as propostas de vida, valores e ética propostos pela sociedade em que vivemos. Sugiro que esta dimensão seja enfatizada, valorizada. É importante mostrar que a Igreja é um espaço de articulação de propostas alternativas, de reflexão, de desenvolvimento pessoal, de crescimento, onde necessidades são atendidas. Nela Deus age, ela é sua criação. Ela tem uma tarefa já dada. Aponto para isto porque em minha experiência pastoral muitas vezes constatei o contrário. Há muita crítica destrutiva, pouca crítica construtiva e isto acaba se refletindo na vida comunitária e na postura de cada um dentro da comunidade. Dois exemplos: 1. Uma pessoa que não era da IECLB disse o seguinte: “No dia em que vocês (membros e pastores) pararem de falar mal da Igreja de vocês, então muita coisa vai mudar!”; 2. Um padre fez a seguinte observação sobre como as questões internas eram tratadas na comunidade evangélica: “Vocês alemães são uma parada! Vocês dão a ‘cagada’ no meio da rua e mostram pra todo mundo!”.
Menciono ainda o resumo que encontrei no “Serviço de notícias em português da Agência Latino-Americana e Caribenha de Comunicação” no dia 01 de junho de 2000 (os grifos são meus) e que reflete muito bem nossas dificuldades e iniciativas enquanto Igreja:
Cursos de capacitação de lideranças estão mudando o quadro de analfabetismo bíblico-confessional entre membros da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), que está empenhada em elaborar um plano de ação missionária voltado à sociedade brasileira.(...) A consciência de que a missão é de Deus livra-nos da ansiedade de produzi-la e da arrogância que nos levam à competição entre projetos missionários”, observou o pastor Oneide Bobsin (...) Boa parte dos projetos e das atividades sinodais está voltada à revitalização de grupos tradicionais, como Juventude Evangélica, Ordem Auxiliadora de Senhoras Evangélicas, presbitérios, sendo raras as iniciativas mais ousadas, nas bordas da tradição evangélico-luterana. Na análise de Bobsin, a falta de recursos financeiros, a mentalidade de igreja-clube, a pulverização geográfica, a baixa consciência eclesial e as disputas internas entre projetos missionários são fatores que restringem atividades missionárias mais audazes. (...) Ao despedir-se do Fórum, ontem de manhã, o secretário-geral do Conselho Latino-Americano de Igrejas (CLAI), Israel Batista, mostrou-se surpreso com a riqueza de iniciativas existentes nos Sínodos da IECLB, mas percebeu uma baixa auto-estima sobre o que se faz na Igreja, fator que, entende, deve ser resgatado com urgência.
Epifania aponta para a soberania de nosso Deus frente aos poderes e domínios que existem em nosso mundo, lembra a reação de Herodes que não admite concorrentes. O texto previsto para este Domingo de Epifania ressalta este papel da Igreja enquanto lugar privilegiado da ação de Deus, assim como também dos desafios e conflitos que dele decorrem.
Bibliografia
BRAKEMEIER, G. Preleção sobre o Ev. de Mateus (polígrafo).
COMBLIN, J. Epístola aos Efésios. Petrópolis : Vozes; São Bernardo do Campo : Imprensa Metodista; São Leopoldo : Sinodal, 1987.
SCHLIER, H. La Carta a los Efesios. Salamanca : Sígueme, 1991.
SCHREINER, J. e DAUTZENGERG, G. Forma e Exigências do Novo Testamento. São Paulo : Paulinas, 1977.
VOLKMANN, M. Meditação sobre Efésios 3.2-12. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1996. v. XXII, p. 43-47.
WOLFF, G. Meditação sobre Efésios 3.2-12. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1990. v. XVI, p. 83-91.
Proclamar Libertação 27
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia