Amados irmãos, amadas irmãs,
“Espelho, espelho meu, Deus ama alguém mais do que eu?”
Certamente você já ouviu essa frase na estória da “Branca de Neve e os sete anões” onde uma bruxa malvada olha ao espelho e pergunta se há alguém mais bela que ela. Como conhecemos na estória, o espelho não mente. O espelho só diz a verdade. O espelho só reflete o que é real. Por isso, o espelho respondeu à bruxa malvada que Branca de Neve era mais bela que ela. E então, sabemos o desenrolar da história.
Por incrível que pareça, isso está relacionado à nossa espiritualidade e ao nosso relacionamento com Deus. Todas as quatro leituras bíblicas deste Domingo apontam para o valor e a importância da Palavra de Deus, tanto escrita quanto a Palavra revelada no Cristo crucificado – ele que é a própria Palavra de Deus que se fez carne e habitou entre nós. O espelho só diz verdades! E a Palavra de Deus é um espelho que só diz verdades sobre Deus e sobre o ser humano – verdades que nem sempre gostamos de ouvir.
Como está o seu relacionamento com Deus? Há hoje uma grande busca por espiritualidades e há veículos de mídia que sabem aproveitar muito bem essa busca. Diante do vazio interior, pessoas buscam preencher este vazio através de experiências espirituais. E os meios para tal são diversos. Há também quem misture como se tudo viesse de Deus. Dizem que tais experiências são bonitas... Pois é, a isca também é bonita para o peixe que não sabe estar mordendo uma armadilha!
Muitas dessas experiências espirituais colocam todo o seu foco no ser humano. Enfatizam que o ser humano é capaz de se superar e conseguir a vitória que deseja. Não se fala mais da Palavra de Deus. Não se fala mais da queda de Adão e Eva, do pecado, da condenação. O foco está todo no ser humano e em seus “potenciais”. No individualismo, essas espiritualidades focam no “espelho que me faz mais amado/a por Deus que os outros”.
Entretanto, será que essa é uma espiritualidade verdadeiramente da Palavra de Deus? Será que o relacionamento real entre Deus e o ser humano diz respeito apenas a exaltar e levantar o ser humano acima de todas as coisas? Será que podemos diminuir a Palavra de Deus a meras pílulas motivacionais? Será que sempre a Palavra de Deus é Palavra que nos faz bem? Ou às vezes ela diz o que não gostamos de ouvir?
No momento em que vivemos, todo o foco está no ser humano! O foco foi tirado de Cristo. E se o foco foi tirado de Cristo, então Cristo deixou de estar no centro para o ser humano estar no centro. Nestes devocionários e nestes discursos motivacionais, não há o confronto – muitas vezes necessário –, mas apenas o conforto.
Muitas pessoas reclamam que já não ouvem mais a voz de Deus. Contudo, se você visitar a casa dessas pessoas e pedir uma Bíblia, é capaz da Bíblia ser trazida toda empoeirada. Oras, como você quer ouvir a voz de Deus se a sua Bíblia está fechada? Como você quer aprender mais sobre Deus se tudo o que você sabe da Bíblia é a leitura de um devocional diário? (O que é bom, claro, mas ainda é pouco).
Enfim, espiritualidades nós temos de sobra hoje – de tudo que é tipo e para toda gente. Uma das espiritualidades mais presentes no meio evangélico é a “espiritualidade preto e branco”. Essa espiritualidade faz uma distinção clara entre o antes e o após a conversão. A pessoa que aceita a Cristo como Senhor e Salvador passa a viver uma vida nova. Contudo, há um problema nesse tipo de visão: o problema está em que muitas vezes as pessoas que passaram por essa experiência esquecem que ainda são pecadoras e que precisam da graça de Deus como todo o restante da humanidade. Essas pessoas não são melhores que as outras – mas muitas vezes se acham melhores porque “elas já se converteram; as outras não”. Esse tipo de espiritualidade necessita urgente de um espelho para que a pessoa se veja como é caia em si. Essa é uma espiritualidade do egoísmo, da exaltação pessoal e da autossuficiência.
Outra espiritualidade presente no meio evangélico é a “espiritualidade da escada” onde a pessoa vê a vida cristã como uma jornada de santificação rumo a se tornar cada vez mais santa. Ela vai “sempre melhorando, sempre melhorando” até chegar a um nível elevado de santidade superior a outras pessoas. Todo o engajamento e todo o esforço é da própria pessoa. Novamente, o ser humano está no centro! Oras, sobre a melhora pessoal psicólogos e coachs falam muito bem. Portanto, isso não é espiritualidade cristã. Também aqui a pessoa precisa se olhar no espelho e descobrir que a salvação não está em seu próprio potencial de subir a escada e se tornar cada vez melhor espiritualmente. Não se enxerga. Precisa de um espelho.
Mas, então, qual é a espiritualidade verdadeiramente cristã? Como se dá o relacionamento de Deus com o ser humano de fato na perspectiva evangélica de confissão luterana? O P. Prof. Dr. Ênio Müller propõe o modelo do espelho – que gosto bastante. Mas, como funciona a “espiritualidade do espelho”?
Deus revelou sua Palavra a nós seres humanos. Êxodo 20.1-17 nos dá a lista dos 10 mandamentos – a Palavra escrita que contém a vontade de Deus para a humanidade; o Salmo 19 nos demonstra também a Palavra contemplada na Criação que, mesmo de uma forma mascarada, também fala de Deus à humanidade; João 2.13-22 nos apresenta a Palavra radical de Deus que expulsa o erro e conquista seguidores; e então, Paulo, em 1 Coríntios 1.18-25, nos apresenta a loucura da Palavra de Deus crucificada, escândalo para os judeus e loucura para os gentios.
A Palavra de Deus é Jesus! Na cruz, encontramos a imagem do Deus crucificado. E esse relato está nas Escrituras Sagradas. Portanto, a espiritualidade cristã não diz respeito ao potencial humano, mas à ação de Deus que se revelou a nós em sua Palavra. Essa é a “espiritualidade do espelho” onde o relacionamento do cristão com Deus acontece através de Jesus Cristo e, assim, o cristão pode refletir a presença de Deus em sua vida. Aqui, o foco não está no ser humano, mas em Deus. O próprio Deus é o agente principal.
Diante da cruz, o ser humano é despido e revelado tal qual ele é! Somos justos e pecadores por causa de Cristo! Não há visão otimista sobre o ser humano. Não há foco no potencial humano. Os 10 Mandamentos não revelam que o ser humano é bom, mas que é pecador, pois não consegue cumprir as Leis de Deus. Mas hoje ninguém quer ouvir sobre seus pecados, ninguém quer aprender sobre o que é a Palavra de Deus.
Ser relevante hoje é falar bem do ser humano, acariciar o seu ego, apontar suas qualidades, impulsionar seus potenciais. Ok. Vários profissionais fazem isso muito bem – e muitas vezes isso é necessário. Mas não confundamos otimismo barato com espiritualidade cristã ou com relacionamento com Deus. Espiritualidade cristã é olhar no espelho de Jesus – esse espelho não mente! Só diz verdades sobre o ser humano! A imagem pode não ser das melhores! Há confronto, mas também há cura, perdão e reconciliação.
Portanto, como ter um relacionamento com Deus? Através da Palavra – Jesus Cristo, o Deus-homem, Verbo encarnado. Fé cristã não é antropocentrismo. Deus se relaciona conosco pela sua graça. Esse é o significado do sacramento da Ceia do Senhor, pois a Ceia também é Palavra de Deus ao ser humano, Palavra que, através dos sinais visíveis, confirma o perdão dos pecados.
Além disso, o relacionamento com Deus passa sempre pelo nós. As espiritualidades contemporâneas são bastante individualistas e focam muito no desenvolvimento pessoal. Fé cristã é ser comunidade, corpo de Cristo, Igreja. Não há espiritualidade cristã sema vivência em comunidade.
Amados irmãos, amadas irmãs.
“vamos nos enxergar no espelho de Deus” onde, na imagem de Jesus, vivemos nosso relacionamento com Deus não na busca do futuro, mas na gratidão pelo passado. Deus já efetuou nossa salvação na Palavra crucificada Jesus Cristo. Ele cumpriu toda a lei por nós – pois nós não conseguimos cumprir a Lei. Ele é a própria e perfeita imagem de Deus. A partir do espelho de Jesus, reflitamos sua imagem no mundo através do testemunho em palavras e ações.
Relacionamento com Deus não é individualismo; relacionamento com Deus não é egoísmo; relacionamento com Deus não é “eu e Deus no sertão”; relacionamento com Deus não é coach; relacionamento com Deus não é pílula motivacional; ao contrário: relacionamento com Deus é confronto; relacionamento com Deus é perdão; relacionamento com Deus é arrependimento; relacionamento com Deus é conversão; relacionamento com Deus é amar ao próximo como a si mesmo; relacionamento com Deus é distinguir Lei e Evangelho; relacionamento com Deus é crer na promessa do batismo e da santa ceia.
Essa é a essência da espiritualidade cristã. Não é se achar melhor que os outros porque ainda não se converteram; não é achar que é melhor que os outros porque está em um grau mais elevado de santidade. Não! Relacionamento com Deus é reconhecimento da Palavra que acusa e perdoa, mata e ressuscita, derruba e reconstrói.
Estamos na Quaresma. Como está seu relacionamento com Deus? Sua Bíblia é aberta? Você se permite o confronto com a Palavra ou apenas o conforto? Que bom que a Bíblia traz conforto em momentos de angústia; mas que bom também que a Bíblia traz confronto para que não esqueçamos que neste mundo ainda vivemos com a marca do pecado – marca que levaremos conosco até o último suspiro. Somos simultaneamente justos e pecadores.
Viva um relacionamento de autenticidade com Deus. Permita que sua Palavra em Lei e Evangelho fale com você e quem está à sua volta. Não deixe sua Bíblia fechada. Não deixe de orar. E creia: não é a sua ação que faz a principal diferença, mas a ação que Deus já fez por todos nós na Palavra Cristo Jesus. A Palavra de Deus – Jesus Cristo – sempre é o único meio pelo qual Deus fala conosco, seres humanos, conforme as Escrituras.
E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará os nossos corações e as nossas mentes em Cristo Jesus, amém.
O conteúdo da pregação tem bastante inspiração no seguinte artigo acadêmico: MÜLLER, Ênio Ronald. “Espelho, Espelho Meu.”: Reflexões Sobre os Fundamentos de uma Espiritualidade Evangélica. Estudos Teológicos, 37(1), 5–27. Disponível em: < https://revistas.est.edu.br/periodicos_novo/index.php/ET/article/view/1657 >. Acesso em: 27. fev. 2024.