Paróquia Ferrabraz

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Domingo da Humanidade | Gênesis 2.4-25

20º Domingo após Pentecostes | Série: Primavera: Estação da Criação | Episódio 2

10/10/2021

 

Amados irmãos, amadas irmãs,

Se fomos feitos da terra, cuidar da terra significa cuidar de nós mesmos. A humanidade está em crise. Valores e direitos fundamentais dos seres humanos tem sido deixados de lado em nossa sociedade cada vez mais vingativa e traspassada pela cultura do linchamento. A dignidade do ser humano e da própria criação já não são valores universais e sólidos como já fora outrora. Em tempos de pandemia, facilmente ouvimos frases como “cada um tem a sua hora”, ou “Deus quis assim”, ou “ninguém morre antes de Deus permitir”, assim por diante. A grande verdade é que desaprendemos tanto de falar sobre a dignidade e da importância da vida humana que quase nos tornamos frios e desumanos mesmo diante da morte das pessoas que amamos e/ou próximas de nós.

Os direitos humanos são uma importante bandeira do cristianismo. Claro – é verdade – que durante os séculos o próprio cristianismo se perdeu e diversas vezes infringiu tais direitos. Basta lembrarmos das milhares de mulheres queimadas nas fogueiras na Idade Média acusadas de bruxaria1. Isso aconteceu quando o próprio cristianismo se deixou seduzir pelo poder ao se tornar a religião oficial do Império Romano a partir de 325 d. C., pois fé cristã nunca combinou com poder; ao contrário, a fé cristã sempre teve maior relevância em contextos de fraqueza e opressão. O pastor norte-americano Timothy Keller nos diz: “Mesmo quando os cristãos eram minoria no Império Romano, a caridade surpreendente deles gerou um enorme respeito na população”2. O próprio Imperador Juliano admitiu: “Nada tem contribuído mais para o avanço da superstição dos cristãos do que a caridade para com os estranhos [...] os galileus ímpios cuidam não apenas de seus pobres, mas também dos nossos”3. A verdade é que embora quase todas as culturas antigas desconsiderassem o direito ao fraco e necessitado, o judaísmo e posteriormente o cristianismo sempre enxergaram o ser humano como digno por ter sido criado à imagem e semelhança de Deus. Na Grécia Antiga, por exemplo, as próprias mães tinham de jogar os filhos nascidos com deficiência no penhasco4. Também o filósofo Platão recomenda:

Por consequência, estabelecerás em nossa cidade médicos e juízes tais como os descrevemos, para tratarem os cidadãos que são bem constituídos de corpo e alma; quanto aos outros, deixaremos morrer os que têm o corpo enfermiço; os que têm a alma perversa por natureza e incorrigível serão condenados à morte.5

Portanto, dignidade e direitos humanos são uma invenção cristã e fazem parte da própria cultura cristã que não enxerga o outro apenas pela sua utilidade, mas como alguém que é digno por ter sido criado à imagem e semelhança de Deus. Não importa quem seja a pessoa – a melhor ou a pior do mundo –, o cristianismo sempre vai enxergar os direitos humanos como iguais a todas as pessoas e procurará realizar o julgamento digno e racional quando as ações humanas contradizem os direitos de outros.

Entretanto, por que ainda precisamos falar sobre esse assunto? Por incrível que pareça, a noção de dignidade da vida humana ainda não está consolidada em nosso mundo. Para provar que a dignidade humana está em queda, basta olharmos os seguintes acontecimentos:

• Os aviões que se chocaram às Torres Gêmeas do World Trade Center em 11 de Setembro de 2001, somando 2996 mortes;

• A guerra ao terror enquanto vingança dos Estados Unidos que somou a morte de mais de 900 mil pessoas;

• As ondas de refugiados fugindo da guerra na Síria e tendo as portas fechadas em vários lugares do mundo, resultando, inclusive, na foto de uma criança morta na praia, símbolo de que a nossa humanidade está escorregando das nossas mãos;

• O arrebentamento das represas de Mariana e Brumadinho em Minas Gerais onde se perderam mais de 200 vidas e até hoje nenhuma justiça foi feita aos poderosos omissos no cuidado em seus empreendimentos;

• As pessoas se segurando a um avião no aeroporto de Cabul no Afeganistão. Estavam tão desesperadas que não suportavam viver em um país onde o Talibã estabeleceria seu governo sem liberdade ou direito algum para a população;

• 600 mil mortes por covid no Brasil. Muitas poderiam ter sido evitadas pelo avanço da vacinação ou cuidados mínimos para com a dignidade da vida humana.

Este é o drama humano que temos visto nos últimos anos ou que vemos dia após dia. A vida humana perde a sua dignidade à medida em que o Ocidente abandona as suas raízes cristãs. Hoje o valor das pessoas é medido pelo seu desempenho, pela sua utilidade e pelo seu sucesso ao invés de ser pelas pessoas terem igualmente sido criadas à imagem e semelhança de Deus.

O pastor norte-americano Martin Luther King Jr. afirma em seu sermão intitulado “O Sonho americano”:

Sabem, os fundadores de nosso país foram bastante influenciados pela Bíblia. O conceito integral de imago dei, como expressado em latim, a “imagem de Deus” (...). E isso dá singularidade, valor e dignidade ao ser humano. Como nação, não podemos jamais nos esquecer disso: não existe graduação na imagem de Deus. Cada pessoa, desde a branca como marfim à negra como ébano, é importante ao teclado musical de Deus, precisamente porque cada uma delas foi criada à imagem dele. Um dia aprenderemos essa verdade. Saberemos que Deus nos criou para vivermos juntos como irmãos e respeitarmos a dignidade e o valor de cada pessoa. É por isso que temos de combater a segregação com todas as nossas forças, e sem violência.6

Com isso, ele quis dizer que os problemas da sociedade não são resolvidos com violência, mas através do julgamento digno e justo que é um direito de todos os seres humanos. Assim, aprendemos que dois males não fazem um bem e que a cultura da vingança e linchamento não condizem com a pregação e vivência do Evangelho. Ao contrário, respondemos ao ódio com amor e graça tal qual Deus fez por nós em Cristo na cruz.

Assim, hoje nós somos lembrados que se fomos feitos da terra,

1    ATACAR À TERRA É ATACAR A NÓS MESMOS

Do ponto de vista bíblico, o ser humano foi formado da terra. Este é um símbolo muito importante e significativo. Terra, em hebraico, é adamá. O ser humano é formado da terra, por isso ele se chama Adam. Adam vem de Adamá: o ser humano vem da terra. Além disso, Adam não significa apenas o nome próprio Adão, mas também significa humanidade.

Isso significa que Deus não criou o ser humano para que fosse um semideus que governasse com poder e glória sobre a terra; ao contrário, Adam significa que Deus criou o homem para que fosse humano e não Deus. Nossa humanidade sempre nos remete à terra de onde viemos. Somos à própria terra que adquiriu consciência ao receber de Deus o fôlego da vida.

Assim, não somos algo à parte da terra, mas a própria terra. Quando falamos da terra, estamos falando de nós mesmos em nossa origem. Além disso, se somos a terra que adquiriu consciência, isso mostra que temos fortes tendências suicidas, pois quando agimos contra a terra, estamos agindo contra nós mesmos, isto é, contra a própria humanidade.

Todos nós já sabemos disso. O aquecimento global é uma das maiores provas do quanto o próprio ser humano pode ser destrutivo para si mesmo. Destruindo a terra, destruímos a nós mesmos, pois nós somos a terra. Infelizmente, ainda há quem não acredite em aquecimento global e afirme que tudo não passa de um período normal da natureza. É muito fácil falar isso quando se está em um ambiente climatizado com ar-condicionado, com água potável na torneira e comida na geladeira. Infelizmente, muitas vezes temos a triste tendência de negar as mudanças que estão acontecendo bem debaixo dos nossos narizes.
Além disso, se fomos feitos da terra,

2    SOMOS PÓ

Esta é uma lembrança importante. A palavra no hebraico significa estrutura frágil. É isso que nós somos! Embora nos achemos “grande coisa”, não passamos de pó! Podemos estar bem. Porém, se por algum motivo ficarmos alguns minutos sem respiração, a vida se esvai. A vida é uma realidade complexa. O nosso corpo é um organismo complexo. Se pensarmos em tudo o que precisa estar acontecendo ao mesmo tempo para que a vida seja possível, logo perceberemos o quão frágil é a nossa própria vida.

Portanto, é importante lembrar que não passamos de pó. O orgulho, egoísmo e prepotência do ser humano não passa de pó querendo ser mais do que realmente é! Do pó viemos e ao pó retornaremos. A vida aqui é transitória e passageira. Somos feitos da terra e à terra tornamos no momento da nossa partida. Inclusive, quando aprendemos a pensar corretamente sobre a morte, aprendemos o quanto ela traz de sabedoria para a vida! Nos sepultamentos, jogamos a areia sobre o caixão dizendo as palavras terra à terra, cinza à cinza e pó ao pó. Estas palavras não são dirigidas à pessoa morta, mas aos vivos, para que lembrem da sua fragilidade e humanidade. Não passamos disso: pó que veio da terra e pó que voltará à terra novamente.

A maravilhosa notícia é que Deus não deixou de nos amar por sermos pó. Ele ama essa estrutura frágil. E fez-nos assim para que sempre nos lembremos que fomos criados à sua imagem e semelhança e que devemos ser humanos e não deuses. Aliás, é interessante que o próprio Deus quis “fazer a experiência” de ser humano como nós. Em Jesus Cristo, temos o próprio Deus que se fez homem tal qual você e eu. Em Jesus Cristo, temos o Deus-humano, de carne e osso. No século V d. C, o Bispo Sedulius disse: “Abençoado o criador de todas as coisas. Vestiu o corpo de um servo para que, libertando a carne através da carne, não perdesse os que criou”7. Se Deus se fez humano, por que nós quereríamos nos tornarmos deuses? O movimento é ao contrário: humanidade significa amor e compaixão mesmo diante das piores pessoas e das mais imerecidas de graça e misericórdia tal qual Deus fez por nós em Cristo Jesus. Preservar a humanidade significa preservar o amor ao próximo através do testemunho e da ação.

Amados irmãos, amadas irmãs,

Se fomos feitos da terra, cuidar da terra significa cuidar de nós mesmos. Esta é a mensagem para este Domingo da Humanidade. Não deixemos a nossa humanidade escorregar das nossas mãos. É verdade que somos “metralhados” todos os dias por notícias tão ruins que tendenciamos a ficarmos cada vez mais frios e indiferentes ao que está acontecendo. Quem de nós derrama uma lágrima quando vemos uma notícia de que uma bala perdida matou uma criança? Quem de nós chora quando vemos notícias de moradores de rua queimados por outras pessoas? Quem de nós se entristece quando vemos notícias sobre jovens perdidos nas drogas? Não choramos mais porque infelizmente nos acostumamos. Precisamos avaliar bem com o que estamos alimentando a nossa humanidade para que nada a tire de nós.

Martinho Lutero nos diz em seu Catecismo Maior sobre o Quinto Mandamento – Não matarás:

transgride este mandamento não só quem pratica o mal, mas também quem pode fazer o bem ao próximo – antecipando-se, impedindo, protegendo e intervindo para que não sofra dano físico – e deixa de fazê-lo. Quando você manda embora uma pessoa que não tem o que vestir, quando poderia vesti-la, você a deixou passar frio. Se você vê alguém passar fome, e não o alimenta, você o deixa morrer de fome. Se você vê uma pessoa condenada à morte ou em dificuldade semelhante e você não abrir a boca, quando conhece meios e formas de intervir, você a matou. E não adianta alegar que você não teve como ajudar, nem recurso nem meio disponível, porque você a privou do amor e do benefício pelo qual ela teria continuado a viver.8

Ele diz também: “Por isso, também é cabível que Deus chame de assassinos todos aqueles que não ajudam na necessidade e no risco para a saúde e a vida”9. Esta foi uma palavra norteadora para as decisões paroquiais e comunitárias neste tempo de pandemia. Há quem diga que fomos medrosos por termos ficado fechados por um ano e meio. Contudo, foi um ato de coragem puramente humano e em defesa da vida, seguindo as orientações da Palavra de Deus e da boa teologia luterana. Na visão Luterana, decisões desse nível não devem ser tomadas com base em fé, mas sim com base na inteligência que Deus nos concedeu ao nos criar à sua imagem e semelhança.

Da mesma forma em relação à criação de Deus. Cuidar dela também significa cuidar e preservar a própria humanidade. Precisamos nos envolver, mesmo que um dia a terra tenha um fim. Há uma frase atribuída a Lutero que diz: “Se eu soubesse que o mundo acabaria amanhã, ainda hoje eu pagaria as minhas dívidas e plantaria uma árvore”. Isso significa que o amanhã pertence a Deus e que hoje é o dia da nossa ação.

Há alguns dias – após se completarem os 20 dias da segunda dose da vacina – retomei minhas caminhadas de final de tarde. Faço ela de três a quatro vezes por semana. É uma maravilha. Sempre saio do bairro Sete de Setembro, vou até o Parcão, subo na Padre Réus e então retorno para casa. Nestas caminhadas, algo tem me chamado a atenção: a limpeza da nossa cidade no centro. Não sei como é em outros bairros que ainda não conheço muito bem, mas o nosso centro é de “tirar o chapéu”. Não se vê lixo nas ruas. Além disso, praticamente todas as ruas possuem árvores que além de ajudarem na produção de oxigênio, embelezam a nossa linda Cidade das Rosas.

Porém, não podemos cruzar os braços. É preciso continuar cuidando, pois cuidar da terra significa cuidar de nós mesmos; deixar de cuidar da terra significa suicídio, pois ao atacá-la, estamos nos atacando!

Sejamos humanos e humildes em todas as tarefas que o Senhor nos conceder. Busquemos a paz em todas as esferas da sociedade e para todas as pessoas. Façamos justiça ao pedirmos que os direitos mínimos de todo ser humano sejam respeitados e cumpridos. Não façamos justiça com as nossas próprias mãos, nem nos vinguemos ou incentivemos a cultura do linchamento, pois, se fizermos isso, imediatamente precisaremos abandonar a fé cristã. O Senhor nos conceda um coração compreensivo, gracioso e amoroso a todas às pessoas, a todos os seres vivos e à criação.

E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará os nossos corações e as nossas mentes em Cristo Jesus, amém.


20º DOMINGO APÓS PENTECOSTES | VERDE | TEMPO COMUM | ANO B

Série de Pregações: Primavera: A Estação da Criação | Episódio 2

10 de Outubro de 2021


P. William Felipe Zacarias 


 

1 Recomenda-se a leitura de: KRAMER, Heinrich. O martelo das feiticeiras. 28. ed. Rio do Janeiro: Rosa dos Tempos, 2020.

2 KELLER, Timothy. Justiça Generosa: a graça de Deus e a justiça social. São Paulo: Vida Nova, 2013. p. 29.

3 Apud KELLER, 2013. p. 143.

4 Cf. BELINI, Luiz Antonio. A justiça na República de Platão. Sarandi: Humanitas Vivens, 2009. p. 80-81.

5 PLATÃO. A República. Livro III, p. 135. Disponível em: <http://www.eniopadilha.com.br/documentos/Platao_A_Republica.pdf>. Acesso em: 09. out. 2021.

6 Sermão pregado na Igreja Batista Ebenézer, Atlanta, Georgia, em 4 de Julho de 1965. KING JR. Martin Luther. “The American Dream”. in: <https://kinginstitute.stanford.edu/king-papers/publications/knock-midnight-inspiration-great-sermons-reverend-martin-luther-king-jr-4>. Acesso em: 09. out. 2021. A parte oculta entre (...) diz: “é a noção de que todos os seres humanos têm dentro de si algo injetado por Deus. Isso não significa que tenham grande comunhão com Deus, mas que têm a capacidade de se relacionar com ele.” Esta parte foi oculta por transparecer a ideia da centelha divina dentro do ser humano, algo que não é confessado na teologia luterana.

7 Apud: WESTHELLE, Vítor. O Deus escandaloso: o uso e abuso da cruz. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2008. p. 42.

8 LUTERO, Martinho. Catecismo Maior do Dr. Martinho Lutero. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 2012. p. 55.

9 LUTERO, 2012. p. 55


Autor(a): P. William Felipe Zacarias
Âmbito: IECLB / Sinodo: Rio dos Sinos / Paróquia: Sapiranga - Ferrabraz
Área: Confessionalidade / Nível: Confessionalidade - Prédicas e Meditações
Área: Sustentabilidade / Nível: Sustentabilidade - Justiça socioambiental
Testamento: Antigo / Livro: Gênesis / Capitulo: 2 / Versículo Inicial: 4 / Versículo Final: 25
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Prédica
ID: 64709
MÍDIATECA

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Gálatas 3.27
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